| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 353 - 26 de março a 8 de abril de 2007
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Acidentes de trabalho
 

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'A centralização política corrompe
a teoria e a prática federativas
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 (Foto: Antoninho Perri)JU - Fala-se que a violência gerou estados dentro do Estado, com leis próprias e uma dissociação crescente da sociedade civil. Até que ponto essa situação afeta o conceito de nação e de identidade nacional?

Luiz Eduardo Soares – Estou convencido de que o medo, de um lado (note-se que segurança é estabilização de expectativas positivas), e a desigualdade no acesso à Justiça (em seu sentido amplo, que envolve a abordagem policial etc, conforme já assinalado), de outro, interpelam e abalam experiências de coesão e identificação, ainda que dinâmicas gregárias continuem em curso e até se fortaleçam, na exata medida que a sociabilidade regida pela institucionalidade política entre em pré-colapso. Portanto, nada de alarmismos. Basta observarmos o vigor – e o fervor – religioso, na sociedade brasileira.

Roberto Romano – Se o Estado tem pelo menos três monopólios públicos, é para impor a soberania a todos os cidadãos. Como os fazendeiros desafiam a soberania – alguém tem notícia dos que mandaram matar os fiscais do trabalho em Unaí? –, o mesmo fazem poderosos em termos econômicos, que sequer acertam suas obrigações com o fisco etc. Existem verdadeiros exércitos de segurança privada, pagos pela classe média e rica, em detrimento da polícia oficial. E muitos policiais fazem o “bico” naqueles contingentes, porque os salários pagos na sua corporação atingem o nível da miséria. Tudo ocorre com as vistas grossas, cúmplices, dos políticos. Se a soberania é “relativizada” pelos que mandam no dinheiro e no poder, não surpreende que ela também o seja pelos pobres reunidos em quadrilhas – que, não raro, servem a interesses de muita gente fina que desfila nas colunas sociais. Se políticos responsáveis por cidades e Estados brincam com bicheiros e narcotraficantes no Carnaval, em palanques pagos pelos contraventores, como falar em respeito à soberania do governo?

Visto que o Estado, segundo Max Weber, é “uma organização que reivindica com sucesso um direito de fazer a lei num território, por força do controle do monopólio do uso da violência física legítima”, ele deve responder pelas situações em que a violência ilegítima se apresenta. Além do monopólio referido, o Estado possui pelo menos dois outros: o da norma jurídica e o que permite extrair impostos. Se os dirigentes, nas três faces estatais, não debelam o crime, não punem com eficácia, não usam bem os impostos, eles devem responder por isso.

Mas, no Brasil, os timoneiros do Estado raramente são responsabilizados, apesar do que diz a Constituição. O corporativismo do Legislativo absolve os legisladores improbos e indecorosos, falta  eficácia no Judiciário e surgem os sinais precursores de venalidade praticada por alguns juízes, e o Executivo optou pelas finanças em detrimento das políticas públicas. Em troca, a propaganda exige medidas draconianas contra “os bandidos”, “os monstros”. Quem adere a tais slogans esquece sua própria natureza humana, misto de ferocidade, desejo e força.

A propaganda vende a mentira de que existe um lado só, onde se reúnem cidadãos honestos e, de outro, apenas feras. No setor “honesto”, no entanto, muitos crimes são praticados. Notar este fato, prudencialmente, evitaria o privilégio, a impunidade, apanágio de poderosos e ricos, sobre os quais o holofote da mídia permanece tempo mínimo, se comparado ao gasto na exposição de transgressores pobres. Um jornalista importante mata sua namorada em plena luz do dia. A imprensa traz a noticia e depois cai o silêncio. O criminoso confesso é condenado e não é preso. Não se nota o escarcéu produzido quando alguém, desimportante para as colunas sociais e políticas, comete um assassinato.

JU – Há também quem coloque a violência brasileira no patamar de uma guerra civil, com a agravante de que os motivos não são ideológicos ou étnicos e os alvos são arbitrários. O que o sr. pensa disso?

Luiz Eduardo Soares – Os dados relativos à letalidade violenta intencional permitiriam essa analogia, mas ela é muito perigosa e eu prefiro evitá-la. Ela acabaria por justificar políticas de segurança pública irresponsáveis, criminosas, que definem favelas como territórios inimigos e seus habitantes como inimigos a serem enfrentados em incursões bélicas – ou como vítimas indiretas “naturais” de confrontos. Além do mais, não concebo uma guerra civil sem bandeiras e projetos de poder.

Roberto Romano – Existe uma guerra, antiga e trazida pelos colonizadores que exterminaram índios; antiga e violenta como a escravização dos negros; velha como o uso dos jagunços para intimidar e matar quem se levantasse contra os coronéis e fazendeiros etc. Como anda o processo da freira Dorothy Stang, uma entre milhares de pessoas assassinadas por encomenda de fazendeiros? Civil? Não sei. Mas insisto: os dados sobre a mortandade que resulta de assaltos, seqüestros, comércio de drogas, devem ser analisados em sincronia com os que indicam outras violências. Mata-se mais no trânsito brasileiro do que em muitas guerras. Todos conhecemos gente que fala de boca cheia contra os bandidos, mas desobedece o sinal vermelho, atropela e mata com frieza. E nunca vai para a cadeia. Falar em violência sem tocar nestes pontos é exercício inane ou técnica de pescar em águas turvas. O Brasil é a terra onde mais se repete o fato vivido pelo cínico Diógenes, citado pelo Padre Vieira em Sermão do Bom Ladrão: “Não são só ladrões (…) os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa: os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. — Os outros ladrões roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados: estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: — Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. — Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas! Quantas vezes se viu Roma ir a enforcar um ladrão, por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado uma província. E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um, chamado Seronato, disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar (…): Seronato está sempre ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. — Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só”.

Quando vemos no Parlamento demagogos que deblateram contra “o crime” e redigem leis severas contra o roubo, é bom recordar Diógenes e Vieira. O foro privilegiado é prova cabal de uso das prerrogativas políticas como passaporte para delinqüir. Deste modo, os projetos oriundos da pura demagogia são negados pela prática costumeira da impunidade, no próprio âmbito do Congresso Nacional.

JU – A última campanha eleitoral para presidente da República tratou muito superficialmente o tema da segurança pública, para não dizer que o evitou. Como explicar essa indiferença?

Luiz Eduardo Soares – É realmente incrível, mas já não nos deve surpreender. A esquerda nunca reconheceu a legitimidade do tema e sempre pensou a violência criminal como epifenômeno das macro-estruturas sócio-econômicas; nunca reconheceu a necessidade de políticas de segurança específicas; apenas valoriza políticas estruturais, voltadas para as verdadeiras e permanentes causas dos problemas, ignorando que há políticas preventivas locais e focadas, capazes de produzir efeitos imediatos. Além do mais, a esquerda não gosta da polícia, porque a identifica com a repressão de classe e não a percebe como instituição fundamental para a democracia, para a qual é preciso propor uma política, no sentido nobre da palavra. A direita, com sua soberba, sempre acreditou conhecer as soluções – que estão sendo aplicadas, aliás, desde sempre, com raras exceções, com os resultados que se vêem. Quando falha, a direita propõe mais do mesmo. É notável!

Roberto Romano – A última campanha presidencial tratou todos os assuntos segundo a propaganda. Nenhuma política pública foi debatida a sério pelos candidatos. A segurança não foi exceção.

JU – Além da ausência de propostas concretas – normalmente restritas aos períodos eleitorais, com suas pirotecnias imagéticas e acessos verborrágicos –, as esferas municipal, estadual e federal jogam uma sobre as outras o ônus da ineficiência. Que análise o senhor faz dessa prática?

Luiz Eduardo Soares – Todos têm e não têm razão. O problema está em nossa Constituição, quando nos impede mudanças profundas no sistema de segurança e nas polícias. Precisaríamos implodir o artigo 144 para criarmos o Susp (Sistema Único de Segurança Pública); liberarmos os Estados para criarem novas polícias, inteiramente diferentes, organizadas de outro modo, e fecharem as atuais polícias, se lhes parecer adequado, respeitando os direitos trabalhistas dos policiais e os reaproveitando, claro.

Bastaria uma legislação infraconstitucional para regular o Susp – impondo exigências mínimas às polícias, as atuais ou aquelas por serem criadas, de qualidade, eficiência, legalismo e valorização profissional, com transparência e participação da sociedade, metas e avaliações, sob condições que propiciem uma gestão racional. E seria suficiente retirar do artigo 144 a definição uniforme do modelo policial. Com isso, estaria transferida para os Estados a autoridade para mudar – se desejarem fazê-lo. Além disso, teríamos de adotar uma Lei de Responsabilidade Social, ou socioeducativa e penal, para obrigar os governadores a cumprirem a LEP e o ECA.

A União teria de assumir responsabilidades na organização do Susp e o município se tornaria protagonista importante no sistema, atuando sobretudo na prevenção.

Roberto Romano – É o fruto da centralização política. No Brasil, isto corrompe a teoria e a prática federativas. Como tudo é acaparado pelo poder central e, dentro dele, pelo Executivo, os Estados e municípios não têm autonomia para empreender políticas públicas próprias à sua realidade. Na segurança, a federação norte-americana admite margens de autonomia insuspeitadas entre nós. O prefeito tem a polícia sob seu comando, com normas próprias, sem depender para tudo de Washington. Aqui, o alfa e o ômega residem no Palácio do Planalto. Em situações de crise, como a do PCC em São Paulo, mostra-se a fraqueza jurídica e policial da centralização excessiva.

Os demagogos, na falta de autonomia dos poderes municipais e estaduais, em suas falas nos legislativos, separam indivíduos e grupos e os expõem à execração, sem observar leis, direitos etc. Eles falam em “monstros” da Febem, mas calam sobre as condições em que o Estado submete os menores, nada enunciam sobre pesquisas que mostram os abusos contra mulheres, meninos a meninas no “santuário” do lar, silenciam sobre a falência dos sistemas educacionais, calam sobre as moradias onde se amontoam seres humanos como se fossem lixo, ignoram as condições de transporte coletivos e, sobretudo, escondem a ação truculenta de grupos corruptos e selvagens das polícias.

De vez em quando, como no caso da Favela Naval, por obra de amadores, o espetáculo da violência cometida oficialmente vem aos olhos do público. Demagogos da mídia usam aquelas imagens por um dia para melhorar o Ibope. Depois as jogam no arquivo. Todos clamam por leis severas contra os criminosos. Poucos recordam que a própria lei, como diz Diógenes o filósofo, é uma teia de aranha que prende os fracos, mas não segura os fortes e poderosos.

JU – O Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros, feito pela Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, Ciência e a Cultura (OEI), põe cidades do chamado Brasil profundo no topo da barbárie, ao mesmo tempo em que joga ao pé do ranking regiões metropolitanas cujas populações vivem sobressaltadas. Essa leitura foi mal-interpretada ou está mesmo havendo um deslocamento dos focos de criminalidade? Dá para diferençar grilagem de terras, exploração ilegal de madeira, garimpo e contrabando – modalidades mais presentes no campo –, de seqüestro-relâmpago, furto, assaltos e latrocínios, que são ocorrências típicas da área urbana?

Luiz Eduardo Soares – Observe que esses dados não apontam queda da criminalidade nas grandes cidades. Mas, sim, apontam para a triste novidade, que é a nacionalização do problema, em sua diversidade. As razões são as mais diversas, mas o que se constata nessa pesquisa não surpreende. Eu tenho chamado a atenção há muitos anos – e não só eu, muitos colegas que pesquisam essas questões – para o fenômeno da nacionalização. O que está explodindo em cada região? Varia. Só estudos específicos nos dirão. Hipóteses há várias. De todo modo, tomemos cuidado. Numa cidade com 12 mil habitantes, um homicídio corresponde a mil homicídios na cidade de São Paulo. Se houver mil homicídios, em São Paulo, em um ano, e 1001, no ano seguinte, a variação não será sequer identificada. Mas se esse único homicídio, na cidade de 12 mil habitantes, for sucedido por dois homicídios, no ano seguinte, a estatística dirá que houve um crescimento de 100%. O que será verdade, mas não significará que a cidade vive uma situação mais grave do que São Paulo. Os números absolutos não devem ser esquecidos nas avaliações.

Roberto Romano – Minha resposta é negativa. É preciso tipificar cada ponto, caso oposto cai-se na inatividade e no desespero social, como está ocorrendo no Brasil.

Quem é Roberto Romano

Nasceu no Paraná. Estudou em várias cidades do país. Participou do movimento estudantil de 1962 até 1968. Foi integrante da Ordem dos Padres Pregadores (Dominicanos). Foi preso político no governo militar. Fez a graduação e a pós em Filosofia (USP) e o doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, no CETSAS (Centre d´Études Transdisciplinaires) com a especialização em Filosofia Política. A tese foi publicada com o título de Brasil, Igreja contra Estado (Kayrós, 1979). É autor também de Conservadorismo Romântico, (Editora Unesp), Silêncio e Ruído (Editora da Unicamp) e O Caldeirão de Medéia (Editora Perspectiva), entre outras obras. Trabalhou na Unesp (Marília e Araraquara), na Faculdade de Educação da Unicamp (FE) e atualmente está ligado ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH). Prestou concurso público para os cargos de livre-docente, adjunto e titular da Unicamp. Integrou a Congregação da FE e do IFCH. Participou da Cadi e do Consu, tendo também presidido a Comissão de Perícias da Unicamp. Publicou vários artigos especializados e colabora com diversos órgãos da mídia.

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