| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 353 - 26 de março a 8 de abril de 2007
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Pesquisa de doutorado resgata os primórdios e a
consolidação da unidade, hoje referência no país

Tese acompanha trajetória da
FCM em três áreas de vanguarda

O sociólogo Miguel Ângelo  Montagner, autor do estudo: FCM passou por três fases distintas (Fotos: Antoninho Perri)Imagine um grupo de pesquisadores, de uma mesma instituição mas de ramos diferentes, conversando sobre suas trajetórias, práticas e valores enquanto cientistas. Para quem acha o tema árido demais, a tese de doutorado do sociólogo Miguel Ângelo Montagner, recém-defendida na Faculdade de Ciências Médicas (FCM), reserva surpresas. Orientado pelo professor Everardo Duarte Nunes, o trabalho resultou num inusitado diálogo entre as áreas de Clínica Médica, Medicina Experimental e Saúde Coletiva, três vertentes com lógicas diferentes, mas que têm em comum o reconhecimento no cenário nacional por seu trabalho de vanguarda.

“Procurei mostrar a relação dos hábitos científicos dos pesquisadores com o espaço social no qual se inseriram, construíram suas trajetórias e formaram seus grupos”, explica Montagner. Para isso, o sociólogo analisou um grupo de 184 professores plenos da FCM, de produção científica significativa e cujas carreiras se confundem com as próprias raízes da FCM. Desse total, 17 foram entrevistados. A tese também resultou num importante resgate histórico, aprofundando a memória coletiva da unidade.

Produção científica de docentes foi analisada

Considerada o embrião da Unicamp, a FCM, segundo o estudo, passou por três fases distintas. No primeiro período, que vai da sua criação, em 1963, até 1976, tudo estava por fazer e a ênfase era instalar o curso com suas disciplinas. De 1976 a 1990, deu-se a fase de institucionalização, com instauração dos primeiros cursos de pós-graduação, definição das estratégias para as pesquisas iniciais e formação de quadros adequados. E de 1990 a 2006, consolida-se a fase de excelência ou de consagração da pesquisa, com um grande aumento da produção científica. Só a publicação de artigos em revistas internacionais saltou de 51 em 1993 para 271 em 2006, embora o número de professores tenha diminuído de 414 para 358 no mesmo período.

Aula inaugural da FCM, em maio de 1963, ano em que a unidade se instalou na Maternidade de Campinas: segundo a tese, prioridade no período era a consolidação do curso e das disciplinas“As três vertentes foram consideradas vanguardas, entre outras coisas, pela grande participação na produção científica durante todo esse processo”, observa Montagner. Do Projeto Genoma a novas e revolucionárias técnicas cirúrgicas, passando pela formulação de políticas públicas de âmbito nacional, os pesquisadores da FCM participaram de praticamente todos os grandes projetos voltados para a saúde no País. “Muitos deles, mais conhecidos no exterior do que no Brasil, tornaram-se citação obrigatória em artigos científicos”.

A primeira vanguarda, segundo o pesquisador, é caracterizada pela Cirurgia e Clínica Médica. “Sua legitimação está ligada à tradição”, diz Montagner. Já a Medicina Experimental ou Laboratorial tem como traço predominante a racionalidade ligada a fins específicos. “É representada pelos ‘fundamentalistas’ ligados a disciplinas novas e revolucionárias”. Por sua vez, a Saúde Coletiva tem como foco a vontade política. “Representa o cruzamento das ciências humanas, da epidemiologia e do planejamento com a saúde”. A conjunção desses campos culminou com a construção de uma prática científica inovadora dentro das ciências da saúde.

Pesquisadoras em laboratório no Departamento de Genética Médica: segundo o autor do estudo, área é representada pelos "fundamentalistas" ligados a disciplinas novas e revolucionáriasEmbora recheado de números e indicadores que buscaram descrever o campo, é no depoimento dos professores que o trabalho ganha vida. Nas entrevistas, fica patente a diferença de visão que os grupos têm sobre um mesmo tema. Fica evidente, também, que essa mesma pluralidade constituiu um dos principais ingredientes para o sucesso da unidade. Apesar dos entrevistados desfrutarem de prestígio no meio científico, o sociólogo decidiu não revelar as fontes, optando por pseudônimos.

Os relatos revelam que desde o início se estabeleceu o viés científico da unidade. Segundo os entrevistados, o fundador Zeferino Vaz empenhou-se pessoalmente para implantar uma cultura de pesquisa como atividade-fim. “Suas exigências com relação à pesquisa eram terríveis”, disse um dos entrevistados. Mesmo assim, a dificuldade era grande. Os professores ensaiavam empiricamente alguns resultados e acabavam inventando possibilidades novas. “Esse processo foi empolgante”, diz Montagner. “As coisas eram resolvidas na boa vontade, você largava tudo na cidade e vinha, trazia o seu cachorrinho. E saíram muitas teses no começo, teses de cirurgia, saíram de um laboratório pequeno”, relata outro professor.

Os integrantes do grupo tradicional apontam uma grande diferença entre o mundo acadêmico e o mercado. “Campinas é uma cidade que tem muitos especialistas. Não há pacientes sobrando. Antigamente talvez se vivesse só de paciente particular; hoje em dia ninguém mais vive. Hoje em dia é convênio, e convênio é produção, coisa rápida”, disse um dos entrevistados.

Outros revelam certa preocupação com residentes que são ótimos pesquisadores mas não apresentam o mesmo talento na relação médico-paciente: “Eu, por exemplo, fico muito assustado quando um residente chega para um paciente e fala: ‘o senhor vai ser submetido a uma larinjectomia subglótica para o esvaziamento do cervical homolateral pois o senhor tem um tumor T4 e ...’ Bom, um residente ou docente que fala isso para um paciente deve estar meio fora da realidade, não é?”

Na média, os entrevistados do grupo tradicional concordam que o bom médico tem de realizar pesquisa, dar aulas e fazer assistência. “Não adianta o sujeito ficar só no laboratório mexendo com ratos, não serve”, opina um dos professores. Há, porém, quem reconheça a dificuldade de se sair bem nas três frentes: “o que eu vejo de colegas e que eu tenho uma certa dor de cotovelo, é que geralmente eles são bons professores, são bons pesquisadores, mas em três áreas ao mesmo tempo eu não tenho visto”, relata outro entrevistado.

Apesar de reconhecer que a produção científica consolidou-se como um dos principais ramos da FCM, o grupo da Medicina Experimental diz que foi preciso um período de transição para chegar ao patamar atual. O principal motivo foi o fato de a FCM ter sido criada antes da Unicamp. “Naquela época, o pessoal nem falava em pós-graduação”, diz um dos pesquisadores. Havia uma surda desconfiança quanto ao futuro dessa empreitada, como revela esse professor: “antigamente as pessoas falavam assim: ‘vocês são loucos de fazer isso (pesquisa), vocês vão ganhar mal’ e a gente dizia: ‘mas esta é uma opção de vida’.

A pesquisa que hoje este grupo realiza começou em um pequeno laboratório instalado no Hospital das Clínicas, onde os pesquisadores podiam “dosar” o seu próprio material. Um dos entrevistados relata que, de 1979 a 1985, trabalhou nesse laboratório e, desse período, conseguiu institucionalizar estudos com outros profissionais que se formaram a partir daquele núcleo. “Quando eu vim não tinha ninguém nessa área, aí eu comecei a organizar o laboratório, posteriormente vieram outras que já tinham treinamento, ‘background’, do tipo que é comum nas universidades americanas”.

Cosmopolitas – A passagem pelo exterior também é apontada pelo grupo experimental como importante na formação do pesquisador: “É importante que a pessoa tenha convivido e saiba o que é uma universidade com centenas e centenas de anos de experiência, é diferente quem esteve em Oxford de quem nunca saiu da Unicamp. Ela sabe o que é a tradição, o que levou essa instituição a ser centenária, o que é produzir conhecimento. Sem esse estágio no exterior a pessoa fica com uma visão muito estreita da pesquisa”, acredita um dos entrevistados.

Para muitos, trabalhar em outro país também ajudou a mudar a visão pouco animadora que se tem da pesquisa no terceiro mundo: “Eu diria que esse preconceito não é muito grande, é menor do que a gente imagina. Às vezes o complexo de vira-latas nosso é maior que o preconceito. A oportunidade de estar nos Estados Unidos tirou-me esse mito de que as pessoas eram impossíveis de acessar”, analisa um dos entrevistados.

Segundo Montagner, destaca-se como uma das características desses professores a capacidade de internacionalização de suas pesquisas. “Ela só é possível a partir de uma estadia no exterior, fator-chave nessa interiorização de novos modos de ver a ciência”, observa. “Eles incorporaram a capacidade lingüística, assumem o inglês como a linguagem da ciência, perdem o ‘complexo de terceiro mundo’ ”, completa.

A citação dos trabalhos pelos colegas é a moeda mais forte para a maioria dos pesquisadores do grupo experimental, como revela esse professor: “É o reconhecimento da comunidade porque você atinge a sociedade como um todo através da comunidade científica, há repercussão”. Há, porém, outros indicadores de prestígio, como relata esse outro: “Ser convidado para dar palestra em congressos, para rever artigos em revistas; considero que sou reconhecido, todas as principais revistas mandam trabalhos para que eu revise na minha área”.

Das três vertentes pesquisadas, a Saúde Coletiva caracteriza-se por agregar profissionais da área de humanas, como antropólogos, sociólogos e assistentes sociais. Em geral, mostram uma preocupação maior em compreender a sua prática de forma mais reflexiva. “De repente, os professores perceberam em si mesmos um certo interesse humanitário, difícil de classificar, mas tangível”, diz Montagner. “Eu tinha uma série de convicções de como deveria ser uma medicina bem praticada. Porque minha mãe sofreu muito o atendimento deficiente do sistema de saúde da época”, relata um dos entrevistados.

Resultante de uma série de debates internacionais na década de 1950, a Saúde Coletiva surgiu da necessidade de incluir o social na medicina. Na década de 1960, a FCM foi a segunda escola médica do Brasil a instituir um departamento de Medicina Preventiva, depois da USP em Ribeirão Preto. “A Unicamp foi precursora e avançou uma série de tópicos realizados pela reforma universitária de 1968 no Brasil, pois foi instituída como um modelo à parte e já moderno”, diz Montagner.

Essa vanguarda era norteada pela lógica política, como evidencia esse depoimento: “Eu vinha de uma tradição; a minha geração é da década de 60 e tinha um engajamento na época de faculdade, eu era do centro acadêmico, tinha já minha posição em relação à esquerda e ao movimento estudantil, ao chegar aqui isso se exacerbou. Engajei-me na política universitária e no movimento docente”. Na mesma linha, completa outro entrevistado: “Nossa área tem um caráter de militância. Não aquela militância estreita, partidária, mas uma militância de lutar pela questão da saúde pública, do direito à saúde, da ética”.

Segundo Montagner, o estudo das três vanguardas esclareceu aspectos importantes sobre a atividade científica. “Mostrou que é preciso acreditar em algo para podermos ser racionais, e ao mesmo tempo não acreditarmos em nada que não seja passível de estudo racional”, diz. “São necessários valores, e valores utópicos, para se atingir a verdade, não a verdade absoluta, mas temporária, parcial e frágil, mesmo assim uma visão do absoluto”, conclui.

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