| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 353 - 26 de março a 8 de abril de 2007
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'É preciso se libertar do jogo entre reatividade e voluntarismo'

 (Foto: Antoninho Perri)JU – A recente polêmica em torno da violência social brasileira, na qual o filósofo Renato Janine Ribeiro foi acusado de abandonar o cânone do politicamente correto, é um sintoma de que os intelectuais começam a guindar o assunto ao primeiro plano? Como o sr. analisa esse debate?  

Luiz Eduardo Soares – Acho que o professor Renato Janine foi profundamente infeliz, mas não creio que esteja havendo um movimento em uma nova direção negativa, contrária aos direitos humanos. O que me parece é que o tema está chegando à agenda pública, finalmente, e aqueles que nunca se devotaram a estudá-lo, mesmo sendo intelectuais qualificados, tendem a pensá-lo como o faz o senso comum, o que é compreensível, ainda que, eu espero, talvez seja apenas o primeiro momento de um despertar para a gravidade das questões. Interessados pelo assunto, talvez os intelectuais se disponham a ler o que já se acumulou na matéria e logo descobrirão que caminhos racionais existem, desde que o problema seja armado com alguma sofisticação.

Roberto Romano – Peço desculpa, mas prefiro não responder a esta pergunta.

JU – Reduzir a maioridade penal é uma solução?

Luiz Eduardo Soares – Começo perguntando ao leitor, à leitora: você está satisfeito com o funcionamento de nosso sistema penitenciário, esse que tem atendido aos maiores de 18 anos e que muitos querem ver atendendo também aos menores de 18? Você acha que a aplicação das penas privativas de liberdade aos maiores de 18 os está impedindo de praticar crimes? Nossas prisões estão inibindo, prevenindo ou contendo a criminalidade? Estariam reeducando ou ressocializando os apenados? Como sabemos, as penas distribuídas pela Justiça não têm o propósito de vingar o mal feito, impondo ao malfeitor sofrimento equivalente àquele que ele infligiu à vítima. Por isso, não pergunto se alguém se sente saciado ao visitar nossas prisões e constatar a que extremos a vendetta foi conduzida.

Mas as perguntas não param aí. Gostaria de saber se alguém considera que o Estatuto da Criança e do Adolescente vem sendo aplicado, consistentemente? As normas que zelam pela separação entre as idades e os tipos de transgressão vêm sendo cumpridas? O processo socioeducativo vem sendo respeitado, em todo o seu rigor, em todos os níveis que envolve? As instituições responsáveis pela aplicação do ECA têm se mostrado equipadas e qualificadas? O acompanhamento posterior à internação, assim como a avaliação das trajetórias individuais têm respondido às exigências estipuladas pelo Estatuto? E as polícias têm se revelado preparadas para cumprir sua parte na aplicação do Estatuto?

Acredito que os leitores tenham respondido negativamente aos dois blocos de perguntas, porque, hoje, está óbvio que o nosso sistema penitenciário está falido. Na verdade, tornou-se uma gigantesca, caríssima, irracional máquina de moer espíritos, escola do crime e fonte de ressentimentos. As penas privativas de liberdade não têm servido aos seus propósitos originais. Pelo contrário, além de se revelarem inúteis como fator de inibição da criminalidade, têm concorrido para seu crescimento. Ademais, o Estatuto da Criança e do Adolescente nunca foi aplicado para valer, em todas as suas dimensões e com o rigor de todas as suas exigências.

Ora, se todos respondem negativamente aos dois blocos de perguntas que formulei e, portanto, se concordam com as duas afirmações acima, estamos todos de acordo com o seguinte: 1) O que está falido não serve de modelo nem deve ser proposto como solução e muito menos faria sentido defender a ampliação de sua abrangência. Ou seja, se nosso sistema penitenciário é essa tragédia, é o desastre que todos conhecemos, em nome de quê poderia fazer qualquer sentido propor que, além de (des)servir ao público maior de 18 anos, ele estendesse suas funções, ampliasse suas responsabilidades e passasse a se ocupar também das crianças e dos adolescentes? 2) Antes de concluir pelo fracasso do ECA ou mesmo de criticar sua ineficiência (reeducativa e inibidora da prática de transgressões), antes de propor sua alteração ou substituição, não seria conveniente testá-lo?

Aliás, é curioso como, no Brasil, tendemos a achar sempre que nosso problema é a falta de leis e que a existência de leis adequadas seria suficiente para mudar a realidade. E é surpreendente como, em geral, estamos mais dispostos a propor mudanças legais do que a tentar aperfeiçoar a aplicação das leis que temos. Os problemas, em geral, não estão nas leis, mas na deficiência de sua aplicação. De resto, seria irracional trocar uma legislação sem lhe dar a chance de ser testada a sério.

Portanto, não creio que faça sentido torpedear o ECA antes de aplicá-lo com o rigor que merece e requer. Tampouco me parece razoável sugerir a extensão de um de nossos maiores fracassos nacionais, o sistema penitenciário, através do expediente legal da redução da idade de imputabilidade. Já não chega o tamanho de seu fracasso? Em lugar de sub-repticiamente postular sua extensão, deveríamos propor sua reforma radical e urgente.

Finalmente, um esclarecimento: a verdadeira dicotomia, que opõe os defensores do ECA e seus críticos, não pode ser traduzida pela diferença entre transigência e severidade. O ECA não retrata, decreta, institui ou legitima a transigência com a transgressão ou o crime. A oposição não é generosidade solidária e ilimitadamente compreensiva, portanto leniente e leviana, versus severidade e rigor na aplicação dos limites legais. Se a oposição continuar a ser apresentada à opinião pública nesses termos, não haverá nenhuma chance para os defensores do Estatuto.

O ECA é severo, se for realmente aplicado com o respeito devido a todas as exigências que contempla. Afinal, o Estatuto prevê a internação e determina medidas unilaterais, imperativas. Nenhum menino pede a aplicação das medidas socioeducativas. Elas não são voluntárias. São fortes e rigorosas. O fato de diferenciarem-se do encarceramento não as torna menos severas. Torna-as mais eficientes, se a meta a alcançar é a ressocialização, a redução da reincidência e a sinalização inibidora. As medidas socioeducativas do ECA diferenciam-se da mera privação penal da liberdade justamente porque o encarceramento não funciona, é contraproducente em todos os níveis. O que está em jogo, portanto, é o sentido da severidade. O que está em disputa é a definição prática, moral, legal e política dessa severidade. O verdadeiro dilema é saber qual deve ser a nossa severidade. Qual é a severidade mais apta a cumprir as funções sociais às quais se aplica com o rigor que lhe define o significado?

Qual severidade melhor serviria à sociedade brasileira? Aquela que é adjetiva, isto é, que faz profissão de fé na retórica da intolerância, da dureza policial, do vigor punitivo, mas que, na prática, concorre para a reprodução da irracionalidade institucionalizada, alimenta um sistema penitenciário apodrecido, um aparato de segurança degradado, a violência policial e o desenvolvimento da criminalidade nas instituições que deveriam cuidar da ordem pública? Essa seria a severidade do fracasso e da impotência.

O Estatuto da Criança e do Adolescente é severo e poderá realizar seu potencial construtivo se for, algum dia, efetivamente aplicado. A severidade do Estatuto é aquela que se compatibiliza ao mesmo tempo com o respeito aos direitos humanos e com um sentido construtivo de responsabilidade, porque se volta para o futuro, repelindo a vingança.

Roberto Romano – As medidas simplistas, costumeiras no Brasil, apenas indicam uma pobreza de políticas públicas. Sempre que especialistas apresentam planos para atenuar a violência, indicam toda uma constelação, um sistema de providências a serem tomadas. Infelizmente, as questões de âmbito público são decididas no Brasil não com base em saberes, mas com fundamento na propaganda, no proselitismo demagógico de partidos, na pressão de setores sociais arcaizantes, beneficiários da mais injusta distribuição de renda do continente.  

JU – Que cenário o sr. antevê para o futuro próximo?

Luiz Eduardo Soares – Já vivi muitos momentos em que a profundidade da crise me fez crer que chegáramos a um ponto em que se tornaria racional a união de todos em torno de um projeto viável de mudança, com políticas preventivas inter-setoriais e reformas das polícias, das entidades socioeducativas e do sistema penitenciário, e em torno também de um efetivo esforço de redução das desigualdades no acesso à Justiça. Nada aconteceu, depois do espasmo das primeiras reações. Aprendi que não é a racionalidade que move a política.

Portanto, minha esperança hoje reside na conscientização das universidades, dos agentes de cultura – sobretudo jovem –, dos agentes sérios da mídia mais responsável, das lideranças sociais, daqueles, enfim, que poderiam contribuir para a sensibilização da opinião pública. Só assim, talvez, de fora para dentro – quem sabe? –, as lideranças políticas e os gestores comecem a se movimentar em uma direção mais consistente, para além da emergência e da crise, construindo um futuro que possa vir a ser menos marcado pelas crises –para que nos libertemos, finalmente, do eterno jogo entre reatividade e voluntarismo no varejo, refratário à construção sistêmica e sustentável. Uma fonte preciosa de esperança seria o desenvolvimento de uma consciência não-corporativa dos policiais. Mas isso parece estar ainda muito longe.

Roberto Romano – Todos os cenários são possíveis. Do inferno aberto à violência mascarada. O necessário é conseguir impor a soberania popular (consagrada em nossa Constituição), com a exigência da prestação de contas dirigida aos operadores do Estado nas suas três faces. Sem fé pública, os cidadãos honestos continuarão desconfiando do mundo político e jurídico e os desonestos terão maior latitude para delinqüir, não raro em companhia de legisladores. Sem acabar com este paradoxo, tudo o que se fizer é de fato paliativo. “Instale-se a moralidade, ou locupletemo-nos todos!”, seja de quem for a frase, ela é a única correta em termos éticos.

Se os políticos permanecem impunes, é tarefa da hipocrisia exigir a punição dos bandidos. Estes devem ser presos e condenados com rigor. E também aqueles. Se o procurador-geral da República teve a coragem e a lucidez de se referir a um número apreciável de legisladores como “quadrilha”, o final da frase deveria ser o seguinte: “que sejam condenados à maior pena do Código”. As ações  das engravatadas excelências refletem-se nas metralhadoras dos que dominam as ruas do Rio, de São Paulo etc. E se forem mantidos os privilégios dos parlamentares, ministros e quejandos, ninguém mais sentirá necessidade de ser honesto. E breve será oficialmente instituída a república bandalha.

Quem é Luiz Eduardo Soares

Luiz Eduardo Soares é mestre em antropologia social, doutor em ciência política, com pós-doutorado em filosofia política. É secretário municipal de Valorização da Vida e Prevenção da Violência de Nova Iguaçu, RJ; professor da Universidade Cândido Mendes e da Uerj. Foi professor do Iuperj e da Unicamp, pesquisador do Iser, pesquisador visitante do Vera Institute of Justice, de New York, e professor visitante da Columbia University, University of Virginia e University of Pittsburgh. Foi secretário nacional de Segurança Pública (entre janeiro e outubro, de 2003); subsecretário de Segurança e depois coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro (entre janeiro de 1999 e março de 2000); e consultor da prefeitura de Porto Alegre, responsável pelo plano municipal de segurança desta cidade (em 2001). Seus últimos livros são: Meu Casaco de General: 500 dias no front da segurança pública do estado do Rio de Janeiro (Cia das Letras, 2000); Cabeça de Porco, com MV Bill e Celso Athayde (Objetiva, 2005); Elite da Tropa, com André Batista e Rodrigo Pimentel (Objetiva, 2006); Legalidade Libertária (Lumen-Juris, 2006); e Segurança tem saída (editora Sextante, 2006).

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