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Na opinião de especialistas, distúrbios ocorridos
no ambiente do futebol são representações da sociedade

Por que a violência
embola o meio-de-campo

MANUEL ALVES FILHO

Policiais militares tentam conter torcedores durante partida no estádio do Pacaembu, em São Paulo (Foto: Ari Ferreira)A violência presente no futebol não é um fenômeno próprio do esporte, mas uma representação do que ocorre na sociedade como um todo. A análise, que vai além das freqüentes considerações imediatistas e superficiais sobre o tema, pontuou as palestras e debates do “Fórum sobre violência no Futebol”, realizado em 19 de abril no Centro de Convenções da Unicamp. O evento, promovido pela Faculdade de Educação Física (FEF) da Universidade, reuniu especialistas de diferentes áreas, que abordaram assuntos relacionados à questão central do encontro. O objetivo do Fórum, conforme os organizadores, foi justamente estimular a reflexão sobre a problemática da violência associada ao futebol a partir de uma visão mais ampla e conseqüente.

Fórum da FEF reuniu especialistas de várias áreas

O professor Maurício Murad, da UERJ: "Medidas preventivas e punitivas são indispensáveis para que haja um maior controle"  (Foto: Antonio Scarpinetti)De acordo com o professor Maurício Murad, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é um equívoco considerar a violência relacionada ao futebol brasileiro como um episódio isolado do restante da sociedade. “Assim como é um erro responsabilizar as torcidas organizadas pelos atos violentos praticados no estádio ou no seu entorno. Meus estudos indicam que apenas 5% dos indivíduos vinculados a essas agremiações agem de forma agressiva ou transgressora. Ou seja, trata-se de uma minoria dentro de uma minoria, visto que as organizadas constituem apenas uma parcela do público que costuma acompanhar o futebol’, afirmou. O docente lembrou que o tema violência começou a ganhar espaço no noticiário e a preocupar a sociedade brasileira nos idos dos anos 60, período do regime militar. Vinte anos depois, o fenômeno também atingiu o futebol de forma mais pronunciada.

Atualmente, insistiu Murad, os atos violentos praticados por ocasião dos jogos estão restritos a alguns grupos. Não raro, são os mesmos que também se infiltram nos bailes funks, nos grandes shows musicais e nas festas de carnaval para causar confusões e brigas. “São grupos formados predominantemente por jovens entre 15 e 24 anos, que vivem em áreas de risco ou dominadas pelo crime organizado, onde serviços públicos como saúde, educação e lazer praticamente inexistem. Mas não se trata de dizer, evidentemente, que violência é exclusividade de pobres e de indivíduos com baixa escolaridade. Nada disso. Muita gente de classe alta e com curso superior também é adepta da pancadaria”, advertiu.

A médica Maria Fernanda Tourinho Peres, do Núcleo de Estudos da Violência da USP: "O fenômeno está nacionalizado" (Foto: Antonio Scarpinetti)Para o docente da UERJ, uma evidência de que a violência relacionada ao futebol não está tão generalizada quanto alguns acreditam é o fato de a maioria dos torcedores presentes ao estádio aplaudir quando um indivíduo é preso pela Polícia Militar após uma agressão, por exemplo. “A violência no futebol não assumiu proporções tão grandes quanto a violência em geral justamente porque a maioria dos aficionados é contra a sua progressão. Isso não significa que a violência presente no esporte não deva ser combatida. Medidas preventivas e punitivas são indispensáveis para que haja um maior controle sobre o problema”, defendeu Murad.

A professora Heloisa Reis, da FEF, reforçou o fato de a violência no futebol estar estreitamente ligada à violência mais geral, cujas raízes encontram-se na baixa qualidade do ensino público, na alta taxa de desemprego, na impunidade e no desrespeito aos direitos dos torcedores (leia-se cidadãos), entre outros fatores. Desde os primórdios, segundo ela, a prática do esporte é acompanhada de brigas, seja entre jogadores, seja entre torcedores. “Trata-se, portanto, de um fenômeno histórico que deve ser abordado no contexto cultural no qual se desenvolve”, destacou. A docente chamou igualmente a atenção para os riscos das generalizações. Assinalou que os jogos de futebol constituem um espaço significativo de reunião da juventude, que precisa ser preservado como tal. “Nem todos os jovens, obviamente, são violentos. Demonizar as torcidas organizadas, que na sua maioria é formada por homens de 15 a 25 anos, não é um bom caminho para tentar compreender e, conseqüentemente, controlar o problema”, pontificou.

A professora Heloísa Reis, da FEF: "Demonizar as organizadas não é um  bom caminho para tentar compreender o problema"  (Foto: Antonio Scarpinetti)Embora não acredite na possibilidade de erradicar os episódios violentos do âmbito do futebol, a docente considerou ser factível minimizá-los, a exemplo do que fizeram alguns países, notadamente a Espanha, onde a pesquisadora realizou estudos sobre o tema. Segundo Heloisa Reis, algumas medidas já foram adotadas nesse sentido no Brasil, como a criação do Estatuto do Torcedor e a instituição da Comissão Paz no Esporte. Recentemente, a Federação Paulista de Futebol (FPF) lançou a idéia de premiar as torcidas organizadas que melhor se comportarem durante as partidas. “Mas ainda temos muito que fazer: desde qualificar o policiamento para atuar em eventos esportivos até reformar nossas arenas, passando evidentemente pelo combate à impunidade e à corrupção”, sugeriu.

Via alternativa – Mas se a violência relacionada ao futebol é uma representação do que ocorre na sociedade brasileira, que modelos estão sendo adotados para prevenir o problema no plano mais geral? De acordo com Theodomiro Dias Neto, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), existe uma visão equivocada da violência urbana no Brasil. Freqüentemente, disse, a questão é analisada a partir de uma perspectiva criminalizante. “Existe uma hegemonia do discurso repressivo, o que torna os debates pouco elucidativos. A tendência tem sido de combater os sintomas e não as causas do problema. Fazendo uma comparação livre, é como se estivéssemos administrando um remédio numa pessoa doente, sem saber para que o medicamento serve”, analisou.

Diante da ineficácia das ações, prosseguiu o especialista, a sociedade fica inclinada a pedir a intensificação das medidas, geralmente por meio de uma resposta penal mais severa. Ou seja, aumenta-se a dose do remédio, estabelecendo um círculo vicioso. “Criminalizar um fato social é, muitas vezes, um bom caminho para agravar o problema”, afirmou Theodomiro Dias Neto. O professor da FGV relatou, entretanto, que está emergindo no país um modelo progressista que faz uma abordagem diferenciada da questão da segurança urbana. Este, segundo ele, emprega um discurso técnico em contraposição ao discurso repressivo, que entende que a solução da problemática está no combate a alguns tipos de crimes [homicídios, roubos etc] e em reduzir a política de segurança a uma política estritamente criminal.

Theodomiro Dias Neto informou que as localidades que conseguiram diminuir significativamente os índices de criminalidade só obtiveram êxito porque entenderam que existem medidas fora da esfera penal. Bogotá, conforme o docente da FGV, é um bom exemplo nesse sentido. As autoridades da capital colombiana entenderam que gerir a segurança urbana é o mesmo que administrar problemas. Perceberam, ainda, que existe uma diferença entre o crime e o medo do crime. Por último, reservaram um olhar multidisciplinar para os conflitos que teriam que enfrentar. “A primeira medida adotada em Bogotá foi tornar o trânsito mais civilizado. A iniciativa teve um caráter simbólico importante, pois ajudou a transformar as relações urbanas e a enfrentar a violência de forma mais abrangente”, explicou.

Além disso, a população de Bogotá aderiu amplamente a uma campanha batizada de “Livros que voam”. Esta consiste em deixar livros em locais públicos, como pontos de ônibus, para que outras pessoas possam lê-los. “Essa experiência demonstra que a política de segurança urbana exige os seguintes pressupostos: análise local do problema, descentralidade das ações, olhar contextualizado da realidade e participação da sociedade civil. No lugar de programas como tolerância zero, o que se espera atualmente é que haja uma máxima tolerância na convivência urbana. Voltando ao exemplo do remédio, eu diria que a resposta penal é o medicamento mais forte de que dispomos. Como tal, ele só deve ser usado em situações extremas”, concluiu o professor da FGV.

O assunto violência também foi abordado pela médica Maria Fernanda Tourinho Peres, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. De acordo com os números divulgados por ela, entre 1980 e 2002 foram registrados 673.762 homicídios no Brasil, sendo que 110 mil (16,4%) vitimaram crianças e jovens na faixa etária de 0 a 19 anos. Destas, 87,6% tinham entre 15 e 19 anos. A maioria dos crimes (60%), conforme a especialista, foi cometida com armas de fogo. Os dados fornecidos por Maria Fernanda Peres também indicaram que a criminalidade não é mais um problema específico do eixo formado pelas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Vitória. “O fenômeno está nacionalizado”, disse.

A pesquisadora do NEV afirmou que a maioria das crianças e jovens assassinados residia em áreas periféricas dos grandes centros urbanos. Assim como outros analistas, ela advertiu que não se trata de dizer que a pobreza em si é responsável pela ampliação da violência. “O que ocorre é que nessas localidades a população está exposta a uma superposição de privações, como baixa renda, baixa escolaridade, falta de atendimento em saúde, desemprego etc. Se quisermos reduzir a violência, essas questões precisarão ser atacadas”, explicou. Para o diretor da FEF, Paulo César Montagner, o “Fórum sobre violência no futebol” foi uma demonstração de que a Universidade é capaz de gerar conhecimentos que contribuem para a melhor compreensão dos problemas que afligem a sociedade.

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