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‘A banalização subestima
a reflexão e a criatividade’

ÁLVARO KASSAB

EUSTÁQUIO GOMES

Ferreira Gullar, Lygia Pape, Theon Spanúdis, Lygia Clark e Reynaldo Jardim (sentado), em foto de 1957, no Museu de Arte Mode4rna do Rio; o local abrigou, em 1959, a I Exposição de Arte Neoconcreta (Foto: Acervo pessoal/ Ferreira Gullar)JU – O senhor concorda com a tese de que as tendências mais radicais das vanguardas destruíram as linguagens artísticas. Isso explicaria a ausência de manifestações de vanguarda no momento?

Décio Pignatari – Linguagens artísticas não se destroem, transformam-se. As chamadas vanguardas abrem à cultura novos campos abdutivos, ou seja, novas possibilidades sígnicas para as novas sensibilidades inteligentes. A vanguarda de um imediato ontem está na arquitetura de um Frank Gehry, mas teve início com as idéias de Robert Venturi, nos anos 60. A vanguarda no sentido tradicional, ou seja, a que ocorre num campo específico, hoje pode ser acompanhada no design – e, particularmente, na moda.

Ferreira Gullar – Em parte, explica. Como disse na resposta anterior, essa radicalidade não chegou, nas outras artes, ao ponto em que chegou nas artes plásticas, onde o predomínio mundial, hoje, é dessas tendências em que as linguagens foram desintegradas. Então, eu me pergunto – aliás, trata-se de uma indagação para qual eu não tenho resposta: por que razão só ocorreu isso nas artes plásticas?

Terá sido porque se criaram as bienais, os museus de arte, e essas instituições fomentam e dão estímulo a isso? Na verdade, essa desintegração é decorrente de muito fatores. Um deles, acredito, reside no fato de essas artes serem artesanais, e a nova civilização criada, é industrial, como eu disse anteriormente. Houve um embate entre a tecnologia predominante na época e o artesanato dos artistas.

"A arte foi inventada porque a vida não basta" (Foto:Eduardo Knapp/ Folha Imagem)O ready-made, do Duchamp, não é outra coisa, no meu modo de ver, se não uma manifestação desse conflito. No momento em que ele pega um urinol, produzido industrialmente, assina um pseudônimo e manda para uma exposição, o que ele está dizendo? Que não é preciso ser artista nem artesão e nem dominar técnica alguma para fazer arte. Ele está dizendo que a indústria faz arte, e faz até sem querer....E se você vai por esse rumo, no qual o Duchamp é um dos principais fomentadores dessa crise, vai desintegrando tudo.

Quando o cara se crucifixa na traseira de um fusca, ele não está fazendo pintura nem escultura. O que ele está dizendo, afinal de contas? Que a arte acabou, que ele é a vítima dessa destruição? Essa arte que está aí é resultado de uma crise. Ela é quase toda negativa e niilista. Você não encontra quase nada de otimista nessas manifestações.

Os artistas acham que estão fazendo vanguarda, mas é uma vanguarda que existe desde 1960. Sem falar no Duchamp, que vem de 1917. Mas, depois que virou um movimento internacional – e não só expressão pessoal dele – tem meio século. Não há nada de novo. Tudo o que é feito, de uma maneira ou de outra, é uma repetição do que já foi realizado antes.

Como não tem linguagem e não existe técnica, trata-se de um vale-tudo. É sempre assim: o cara tem uma idéia e a coloca em prática. É uma coisa aleatória, e isto é contra a natureza da arte. Ela não vive de coisas que sejam aleatórias, que tanto faz assim como assado. Quando você diz “a arte de falar”, o que significa? Que é falar bem, não é verdade? A palavra arte está sempre associada a uma coisa de excelência, e não a qualquer coisa. Como pode ser arte você botar cocô dentro de uma lata, assinar seu nome e mandar para a uma galeria? Isso só pode ser interpretado como quem diz: arte é merda.

Isso não conduz a nada. É uma bobagem, é fazer o contrário do que o ser humano necessita. Não foi Deus quem inventou a arte, foi o homem. E se ele a destrói, ele está dando cabo a uma coisa inventada para a vida ser melhor. A arte foi inventada porque a vida não basta.

Picasso disse que a arte é a mentira mais verdadeira que a verdade. É isso mesmo. O homem precisa inventar, precisa da fantasia. Ele precisa do sonho, porque ele vai morrer. Nós queremos é sonhar. De merda, de terrorismo e de guerra, nós já estamos cheios. Queremos beleza, sonho e felicidade.

Falo por mim. Na verdade, fui involuntariamente precursor do concretismo. Em meu livro A luta corporal desintegrei a linguagem e isso tornou necessário inventar-se outra linguagem, de onde surge a poesia concreta, criação de Augusto, Haroldo de Campos e Décio Pignatari.

Eu sei muito bem que você pode ser levado, em certos momentos, até a destruir as coisas, mas não pode ser com a intenção pura e simples de se acomodar nessa destruição. Por revolta, por conflito, você pode destruir, mas a intenção por baixo daquilo tem que ser a de reconstruir. Não pode ser a de destruir por destruir. A arte é uma coisa que existe há mais de 20 mil anos. Não é por acaso que o homem da caverna já a fazia sem saber. Não seria Duchamp que iria mudar a essência do ser humano.

Isso não se sustenta mais. Acredito que, fatalmente, haverá uma reversão desse quadro. As bienais, por exemplo, já estão mudando. As instalações já estão desaparecendo; as performances, nem se fala. O que ainda sobrevive é a vídeo-instalação, que é pobre. Trata-se de um sub-cinema, primitivo. O sujeito está voltando para antes do cinema; o pior é que ele acha que está adiante...

Uma vez fui ao Museu de Arte Moderna no Rio, e havia ali dois monitores de televisão, um sobre o outro, e nos dois aparecia uma pessoa lavando as mãos. Saí, dei a volta por todo o museu, vi as exposições, fiz anotações de que necessitava para escrever, voltei e aquelas mãos continuavam lá fazendo o mesmo gesto...Por que isso? É uma chatice, uma aporrinhação, uma bobagem.

Em Paris, ocorreu algo parecido numa visita que fiz ao Museu de Arte Moderna. Quando me aproximei de uma sala, comecei a ouvir uns berros. Ao entrar na sala, em dois monitores aparecia um cara se jogando no chão, berrando que nem um louco. Eu me perguntava o por quê daquilo tudo. Não dá, era um caso de internação... O cara precisava se tratar...

Entra aí a responsabilidade dos museus nesse estado de coisas. Se você fizer um livro idiota e entregar para uma instituição cultural, ela não vai fazer seu lançamento sem antes avaliá-lo. Não vai recomendá-lo aos leitores se o seu livro for uma bobagem. Não entendo por que os museus ficam divulgando esse tipo de arte. Falta coragem para dizer que tudo isso é tolice. Sou um dos poucos críticos que têm coragem de dizer que se trata de uma bobagem. A maioria, não tem. Os críticos têm medo de parecerem retrógrados. Só que tal arte inviabiliza a crítica. O que de dizer de um cara berrando e se jogando no chão? Seria preciso, para falar disso, talvez um crítico teatral, não um crítico de artes plásticas.

JU – Em que medida a mistificação promovida por setores do mercado colaborou para o esgotamento das vanguardas, caso isso tenha de fato ocorrido?

Décio Pignatari – Ante a jamais vista produção de bens materiais do planeta Terra, até o imponderável, ou seja, a informação, já passou à categoria de bem material. O que é verdade. A informação é o bem mais importante de nossa era. Por paradoxal que pareça, isto implica a idéia de idéia. “Poemas se escrevem com palavras, não com idéias”, disse Mallarmé a Degas, que lhe dizia ter boas idéias, mas não conseguia não conseguia escrever poemas aceitáveis.

Já o meu mestre Volpi, no tempo em que freqüentei o seu ateliê informalmente, dizia que o importante é ter a idéia. O resto, depois, era fácil. Segue-se que idéia verbal é uma coisa, idéia icônica, não-verbal, é outra. E a poesia segue sendo a mais enigmática das artes. Não tem mercado, não leva a nada, porque o seu “discurso”, sendo inconclusivo, não pode ser profissionalizado.

Por que isso ocorre? Porque a poesia opera e ocorre no limiar entre o verbal e o não-verbal. O seu diagrama lingüisticamente correto é subvertido por signos icônicos “incorretos” (som, ritmo, espaço, dimensão das palavras etc), o que a leva a um impasse. Só a prosa entra em lista de best-sellers. E mais: no Éden-Babel tecnológico em que vivemos, grandes poemas ainda podem ser feitos simplesmente com lápis e papel. E depois registrados e desenvolvidos em quaisquer meios. Isto é que é idéia.

Poesia é tecnologia no alto sentido semiótico e ideológico processado pelo Interpretante de Peirce; o poema é técnica. Estranhamente, são praticamente inexistentes as grandes poéticas de natureza ingênua, primitiva, naïve. De tal modo o domínio do código verbal é importante no Ocidente. Já no campo visual e visual-tridimensional, são notáveis as realizações do Douanier Rousseau, de José Antônio da Silva e do mais do que notável Artur Bispo do Rosário.

Ferreira Gullar – Até os críticos já reconhecem que a vanguarda se esgotou. Ninguém acha que a vanguarda está em pleno florescimento. Nem eles acham. Ocorre que eles a ficam justificando, como se isso fosse expressão artística. Um crítico americano escreveu o seguinte, em um artigo, há mais de quarenta anos: desde que os críticos franceses não conseguiram entender o impressionismo, e deram opiniões negativas sobre essas obras, eles ficam com medo de dar opinião. Eles têm medo de parecerem tão reacionários quanto aqueles que não entenderam Renoir e Monet.

O crítico, hoje, aprova tudo. Seja o que for, ele tem que ser mais de vanguarda que o próprio artista... Esse crítico americano dizia que se o artista espremesse uma bisnaga do nariz do crítico, este diria que se tratava de uma obra de arte. E é o que está acontecendo.

O mercado tem, obviamente, alguma culpa nisso tudo, mas a maior responsabilidade é das instituições. Se uma fundação de uma grande empresa financia uma obra, o presidente dessa empresa está pouco ligando. Ele não vai ver nada daquilo, não sabe o que está acontecendo. Ele simplesmente entrega a obra para a instituição.

Há um dado aí que não pode ser ignorado: o capitalismo é o regime da novidade, vive dela. Como a geladeira e o carro, por exemplo, duram mais do que o mercado gostaria, muda-se o desenho. A obsolescência planejada mantém as vendas. Produzir a novidade é fundamental para o capitalismo. A arte segue essa ordem, obedece.

Toda obra de arte envolve uma coisa nova. Agora, para ser novo, não precisa ser paletó de três mangas... Morandi pintava os mesmos objetos, e cada quadro dele era diferente um do outro. A arte nunca foi apenas a busca do novo. O principal defeito do novo é que ele fica velho...E arte busca sempre o permanente. Está implícito. Não vou, por exemplo, repetir num poema o que já disse em outro. Mas posso, com palavras muito parecidas e até sobre o mesmo tema, escrever um outro poema que seja diferente.

A mesma coisa faz o músico. Você pode pegar certas variações do Tom Jobim, das coisas lindas que ele fez, que você nota semelhança de acordes, de linha melódica, mas é outra coisa. Ele fez isso porque senão ia terminar que nem o John Cage: ia fazer a música do silêncio – toca uma nota aqui e, 40 minutos depois, toca outra. Ninguém agüenta: o espectador – ou ouvinte – fica pensando em outra coisa – na namorada, nas contas para pagar...O cara não é louco de esperar 40 minutos para ouvir outra nota. Mas se você não aceita isso é retrógrado.

No Jardim Botânico, um performático fez uma instalação com larvas de moscas e gias para o visitante observar as larvas por um microscópio. Serve para matar a curiosidade mas que tem isso a ver com arte? Mas como ninguém compra larva de mosca, o artista vende desenhos... Isso é apenas marketing.

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