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Pesquisa de doutoramento mostra que discriminação da
sociedade faz com que mulheres enfrentem pressões de toda ordem

Mães lésbicas são vítimas de preconceitos que vêm do berço

MANUEL ALVES FILHO

A cientista social Érica Renata de Souza: "Só com muita luta elas estão conseguindo fazer prevalecer seus direitos e desejos". (Foto: Antoninho Perri)As mulheres que articulam a maternidade com a homossexualidade tornam-se socialmente vulneráveis, visto que a sociedade considera as duas práticas como incompatíveis. Não raro, elas enfrentam uma série de pressões e se vêem forçadas até mesmo a renunciar à sexualidade ou à profissão para poder exercer o direito de educar seus filhos. Estas constatações fazem parte da pesquisa de doutoramento da cientista social Érica Renata de Souza, apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. No trabalho, a especialista promoveu um estudo comparativo dos efeitos dessa articulação nas regiões metropolitanas de Campinas e Toronto, no Canadá. Embora a questão da diversidade sexual seja tratada de forma distinta nos dois países, Érica identificou pontos de aproximação entre as lésbicas brasileiras e canadenses. "De modo geral, eu diria que elas são muito corajosas por lutarem por seus direitos e desejos, independente das estratégias e dos recursos disponíveis".

Estudos tem casos de Toronto e Campinas

De acordo com a cientista social, os movimentos homossexuais têm demonstrado cada vez mais organização em todo o mundo. Entre as reivindicações mais freqüentes desse segmento aparecem questões relativas à família, ao casamento e à filiação. Dessa forma, afirma Érica, novas práticas sociais surgem à medida que ocorre a associação entre a maternidade e a homossexualidade. "Tais práticas ganham formas distintas e particulares, variando conforme o contexto sócio-cultural em que essas mulheres vivem", afirma. Em sua pesquisa, Érica tomou nove casos para análise, sendo seis deles de Campinas e três de Toronto. Por meio de entrevistas, a cientista social procurou entender os jogos de poder construídos nas relações entre as mulheres, entre elas e a lei e entre elas e a sociedade.

E mais: também tentou compreender aspectos ligados às expectativas sobre a maternidade, às hierarquias, à violência, às políticas identitárias e à busca pelo reconhecimento e pela igualdade, uma vez que a maternidade surge como definidora dos lugares de cada sujeito nas redes de relações sociais. Os nove casos estudados, informa a especialista, podem ser divididos em dois perfis de família. O primeiro refere-se a mulheres com um passado heterossexual, mas que se envolveram em relações lésbicas e trouxeram seus filhos para essas relações. O segundo diz respeito àquelas que optaram pela maternidade por meio de tecnologias reprodutivas, como a inseminação artificial.

Desenhos de cartilha distribuída por organização não-governamental na região metropolitana de Toronto: para a criança aprender a conviver com a diversidadeNo Brasil, segundo a autora da tese de doutorado, a maioria dos casos analisados corresponde ao primeiro perfil, mas há um em que ambas as situações se articulam, já que havia ocorrido, anteriormente, uma tentativa de inseminação artificial. "Este caso ainda se torna distinto por envolver um processo de adoção", explica Érica. Já no Canadá, todos os casos com os quais a pesquisadora teve contato encaixam-se no segundo perfil. Todas as mulheres relacionadas na pesquisa eram brancas, pertencentes à classe média e, na sua maioria, com nível superior de escolaridade. A cientista social esclarece que esse recorte não foi proposital, mas uma conseqüência da sua rede de relações particulares e acadêmicas, que possibilitou o contato com as entrevistadas. Todas elas, diz, enfrentaram e continuam enfrentando muitas adversidades por conta de uma orientação sexual que é entendida como incompatível com a maternidade, mas estão conquistando seu espaço na sociedade.

Entre os casos brasileiros, Érica cita a experiência de uma mulher, Roberta, mãe de dois filhos, que acabara de sair de um casamento heterossexual conflituoso. O marido, usuário de drogas, era muito violento. Roberta optou então por se separar. Posteriormente, foi morar com uma mulher. Esta, por sua vez, se dava bem com o filho caçula da companheira, mas encontrava resistência por parte do filho mais velho. Para completar, o ex-marido de Roberta, apoiado pela família, fez uma série de gestões contra o relacionamento, chegando a ingressar na justiça para obter a guarda das crianças. Tudo isso, conforme Érica, ajudou a desgastar a união. Um dado curioso foi a sentença dada pelo magistrado que cuidou do caso.

Conservadorismo - De acordo com a cientista social, o juiz concedeu a guarda dos filhos para Roberta, mas condicionou a decisão à saída da sua companheira da casa. Atualmente, Roberta está morando com outra mulher e o filho mais novo. O aspecto que salta aos olhos nessa história é a postura do juiz, que segundo a ex-companheira de Roberta, era bastante conservador. Ou seja, no entender dele, para exercer o direito de conviver com os filhos, Roberta tinha de renunciar à sua sexualidade e à formação de uma família alternativa. "Na visão desse magistrado em particular, assim como na de boa parte da sociedade, maternidade e homossexualidade são incompatíveis", destaca Érica.

Ainda entre os casos brasileiros, Érica deparou com o que poderia ser classificada de uma família alternativa privilegiada. Uma senhora, já avó, saiu de um casamento heterossexual, e algum tempo depois conheceu uma mulher, via internet. Elas decidiram morar juntas. A primeira, de nome Flávia, já vivia com a neta pequena e o filho adolescente. Posteriormente, a companheira dela trouxe um sobrinho, também adolescente, para morar na mesma casa. "Todos se davam muito bem. Inclusive as duas filhas casadas de Flávia mantinham uma boa convivência com a mãe e sua companheira, apesar da resistência inicial da filha mais nova", conta a cientista social.

Mas nem todos os relacionamentos gays conseguem superar facilmente as pressões exercidas pela sociedade, como revela o estudo de Érica. Mesmo no Canadá, onde existe uma boa infra-estrutura de apoio à comunidade de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros e um maior respeito pela diversidade sexual e pelas famílias alternativas, as lésbicas que optam pela maternidade muitas vezes são obrigadas a fazer determinadas renúncias para assegurar a condição de mãe. Isso ocorre porque as mulheres que optam pela adoção não têm um status social de mãe tão valorizado quanto o da mãe biológica. Lá, assinala a pesquisadora, organizações não-governamentais desenvolvem programas nas escolas para ensinar as crianças e adolescentes a conviverem com as diferenças.

Por meio de uma série de atividades e exercícios, os voluntários falam aos estudantes sobre a importância de respeitar as famílias alternativas, o portador de deficiência física, as diversas etnias, etc. Isso sem falar na legislação, que assegura vários direitos aos gays, como a união estável e, em algumas províncias, o casamento e a adoção. "Há situações em que filhos de gays e lésbicas vão aos colégios para dar palestras e falar de como é a vida numa família alternativa", conta Érica. Nos três casos canadenses tomados para análise, segundo a cientista social, as mulheres optaram pela inseminação artificial, o que configura a constituição de uma família planejada.

Entre os critérios usados para definir qual das mulheres deve engravidar estão a idade (preferência inicialmente pela mais velha) e a crença no "instinto materno", por exemplo. Um fato curioso é que o casal normalmente quer encontrar um doador de sêmen que apresente características físicas semelhantes às da mãe não-biológica. "Trata-se da busca por um vínculo biológico fictício", esclarece a autora da tese de doutorado. Outro aspecto importante é que a mãe não-biológica opta, com relativa freqüência, por suspender os estudos ou a carreira profissional para dedicar-se exclusivamente à criação do filho nos seus primeiros anos de vida, enquanto a companheira segue sua vida normal. "É como se esse contato mais intenso com a criança conferisse à mãe não-consangüínea o mesmo grau de importância que a sociedade atribui à mãe biológica", diz a especialista da Unicamp.

Nesse aspecto, continua Érica, as canadenses apresentam uma fragilidade social semelhante à das brasileiras, a despeito de contarem com uma ampla infra-estrutura de apoio. "Elas também são levadas a abdicar de aspectos importantes, como o trabalho ou o estudo, para poder exercer a maternidade, enquanto das brasileiras exige-se uma renúncia da sua homossexualidade e da formação de uma nova família. Considero essas mulheres, sejam brasileiras ou canadenses, corajosas, porque só com muita luta elas estão conseguindo fazer prevalecer seus direitos e desejos", afirma a cientista social, que foi orientada pela professora Mariza Corrêa e contou com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

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