| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Enquete | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 213 - 19 a 25 de maio de 2003
.. Leia nessa edição
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::Comentário
::Lenda urbana
::Maturidade sexual
::Inovacamp
::Óleo de copaíba contra o
cancêr
::Polímetro de silício

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::Painel da semana
::Teses da semana
::Biodiesel reduz poluição
::Os sonhos de Elaine
::Ver, ouvir e interagir
 

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Levantamento inédito no País, feito com
sete mil crianças e jovens, vai servir de padrão de referência

Lenda urbana agora é lei

MARCELO KNOBEL

Diariamente somos inundados por inúmeras promessas de curas milagrosas, métodos de leitura ultra-rápidos, dietas infalíveis, riqueza sem-esforço. Basta abrir o jornal, ver televisão, escutar o rádio, ou simplesmente abrir a caixa de correio eletrônico. A grande maioria desses milagres cotidianos são vestidos com alguma roupagem científica: linguagem um pouco mais rebuscada, aparente comprovação experimental, depoimentos de "renomados" pesquisadores, utilização em grandes universidades. São casos típicos do que se costuma definir como "pseudociência". A definição de pseudociência é muito genérica, e pode incluir, além dos poucos exemplos citados, uma miríade de fenômenos paranormais, sobrenaturais, extra-sensoriais, e qualquer conjunto de procedimentos e "teorias" que tentem se disfarçar como ciência sem realmente sê-la.

A discussão dos limites entre ciência e pseudociência certamente inclui uma questão mais profunda: o que é ciência? Como defini-la? Esse é um assunto complexo e delicado, e impossível de tratar neste breve artigo. Entretanto, vale a pena discutir porque devemos nos preocupar com as pseudociências. Alguns dos exemplos citados, e os respectivos personagens envolvidos, não passam de objetos de ironia e diversão para uma camada da população mais instruída. Aparentemente, não podem causar mais impacto do que simples arranhões à já consolidada imagem da ciência, que é geralmente vista como um pilar firme no qual a sociedade se apóia. Entretanto, vale lembrar que inúmeras vezes a pseudociência é utilizada com má-fé, destinada a usurpar o dinheiro da população em geral que ingenuamente acredita em evidências casuais, rumores e anedotas. Esse fato torna-se ainda mais drástico quando essas crenças atingem a área de saúde, onde o prejuízo financeiro pode vir acompanhado de um irreparável dano físico e/ou mental.

Em casos extremos, as pseudociências podem levar a situações insólitas, onde não é necessário acreditar em algo, nem ser ingênuo a ponto de cair em algum "conto do vigário". Essas situações ocorrem quando os políticos, sem quaisquer justificativas técnicas, resolvem criar leis que são, no mínimo, contestáveis. A seguinte nota foi publicada na revista Veja desta semana:

"Agora, falar ao celular em posto de gasolina vai dar multa de 400 reais: a prefeita Marta Suplicy regulamentou a lei na semana passada. Quem for pego usando celular pagará a multa, cujo valor dobra em caso de reincidência. O motivo seria evitar que ondas eletromagnéticas ou mesmo uma faísca produzida pelo aparelho venham a explodir os tanques de combustível, o que é considerado muito improvável por especialistas. André Valentim. Veja SP, 14/05/2003. http://veja.abril.com.br/vejasp/140503/misterios.html"

De fato, foi regulamentada a Lei 13.440 que proíbe o uso dos telefones celulares em postos de combustíveis da cidade de São Paulo. A lei, de autoria do vereador Wadih Mutran (PPB), fixa multa de R$ 400,00 tanto para o proprietário do posto quanto para o dono do aparelho. Em caso de reincidência, o valor será dobrado. Considerando as condições dos postos de gasolina e as tecnologias dos celulares, a probabilidade de haver alguma explosão causada pelo uso desse tipo de aparelho é extremamente remota. O perigo relacionado com as ondas eletromagnéticas é simplesmente inexistente. Com relação às faíscas, é interessante lembrar que todos os carros possuem baterias, e a possibilidade de que essas baterias soltem alguma faísca certamente é muitas vezes maior do que a probabilidade de que faíscas provenientes do celular possam provocar algum dano. Isso poderia ocorrer, por exemplo, se o aparelho caísse das mãos de uma pessoa, soltando a bateria, e provocando uma faísca que tenha posteriormente contato com alguma poça de gasolina. Até a faísca provocada pela eletricidade estática quando a pessoa desce de um carro (principalmente quando usa roupa de lã em dias secos) pode ser mais perigosa do que o uso do celular! De todas as maneiras, estudos indicam que a soma de todos os riscos de faíscas dos veículos somados é ainda extremamente baixa, o que torna a recente lei um verdadeiro absurdo.

Aparentemente a origem deste temor surgiu em 1999, com a circulação na Internet de uma série de mensagens alertando para o perigo iminente de usar celulares em postos de gasolina, relatando o caso de algumas supostas explosões (que na realidade foram desmentidas pelas empresas). Basta uma rápida pesquisa na Internet para verificar que hoje em dia estas mensagens são sumariamente classificadas como "lendas urbanas", ou seja, um subgrupo das pseudociências. Apesar disso, para se precaver de quaisquer problemas e eventuais processos, tanto as companhias de celulares quanto os postos de gasolina optaram por desaconselhar o uso de aparelhos celulares nos postos, baseados no conceito "melhor prevenir que remediar". Entretanto, no caso específico da cidade de São Paulo, quem pagará a conta é a população, que deve se adaptar a uma lei incoerente e sem nenhum suporte científico. É uma lenda urbana que virou lei... Na realidade esta é relativamente inócua e até cômica. Haverá outras?


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Marcelo Knobel é professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) e coordenador do Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (NUDECRI)

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