| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Enquete | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 213 - 19 a 25 de maio de 2003
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Os sonhos não envelheceram para Elaine


MANUEL ALVES FILHO


Elaine Pereira da Silva não conhece ou simplesmente ignora o significado do verbo desistir. Filha de pai pedreiro e mãe empregada doméstica, desde criança desejava cursar Medicina para ajudar as pessoas a se livrar da dor. Hoje, aos 40 anos, ela atende como clínica no Posto de Saúde de Sousas, distrito localizado na região leste de Campinas, onde cumpre a missão que se impôs. Num país como o Brasil, essa mulher já seria um exemplo de superação apenas pelo fato de ter vencido limitações financeiras que impedem que a imensa maioria de jovens de origem semelhante curse a universidade. Mas ela teve que fazer mais. Além da pobreza, teve que vencer preconceitos e a doença. Elaine é negra e portadora de uma lesão neurológica. "Sabe por que eu consegui? Porque os sonhos não envelhecem" , afirma, emprestando os versos compostos por Lô Borges para a canção "Clube de Esquina 2"

Elaine é formada pela Unicamp. Na infância e adolescência, estudou em escola pública. Quando chegou o momento de cursar o ensino superior, as dificuldades se ampliaram. Não tinha dinheiro para pagar uma universidade particular e nem condições de disputar uma vaga em instituição pública com os vestibulandos que se prepararam durante meses em cursinhos. O jeito foi tentar se conformar, optando por um curso mais barato. Elaine, então, decidiu fazer Biologia. Trabalhava de dia como escriturária em um hospital e estudava durante a noite.

Naquela oportunidade, ela já apresentava os primeiros sintomas da neurocisticercose, doença causada pelas larvas da Taenia solium, presente na carne de porco. Quando se instalam no sistema nervoso, podem causar problemas como convulsões, hipertensão intracraniana e, no caso de Elaine, distúrbios de comportamento. "Naquela fase, eu tinha muito sono. Dormia praticamente a aula toda", conta. Meio dormindo, meio acordada, ela conseguiu se formar. Prestou um concurso do Estado e tornou-se professora. "Como o salário melhorou um pouco, decidi resgatar o sonho de me tornar médica. Com muita dificuldade, fiz dois anos e meio de cursinho e prestei o vestibular. Passei na Unesp, na Santa Casa e na Unicamp, mas optei por esta última porque ela oferecia moradia gratuita aos estudantes carentes", diz.

Morando de graça e recebendo uma bolsa do Serviço de Apoio ao Estudante (SAE), Elaine afirma que sentia "orgasmos múltiplos" por estar finalmente cursando Medicina. As adversidades impostas pelo fato de ser negra, pobre e introvertida iam sendo vencidas, embora com dificuldade. Mas a situação piorou muito em 1993, quando ela estava no 5º ano. Nessa época, foi internada pela primeira vez. Ficou 20 dias em coma no Hospital das Clínicas (HC) da Unicamp. Só então seu problema foi definitivamente diagnosticado, embora tivesse procurado auxílio médico várias vezes anteriormente.

"Quando a doença se agravou, as dificuldades aumentaram na mesma proporção. Por conta da lesão neurológica, eu enlouqueci. Gritava na rua. As pessoas, inclusive os colegas de classe, começaram a se afastar de mim", relata, emocionada. Uma das poucas exceções, segundo Elaine, ficou por conta de um de seus professores, o médico Jamiro da Silva Wanderley. "Ele me deu e continua me dando muita força. Dizia para eu não desistir, para me comportar. Tornou-se um segundo pai para mim". Ao todo, Elaine teve mais 19 internações, o que a obrigou a prolongar a sua permanência na universidade.

Ao fim de quase nove anos, ela finalmente obteve o tão sonhado diploma de médica. A sensação daquele momento, de acordo com ela, é indescritível. Atualmente, Elaine, que teve a sanidade mental diagnosticada por uma dos mais renomados especialistas da cidade, convive com algumas seqüelas da doença, como fortes dores de cabeça. Mas nada que a impeça de exercer sua profissão com "enorme tesão", como ela define. "Modéstia às favas, sou uma excelente profissional porque amo o que faço. E sabe por quê? Porque morro de medo de errar, assim como erraram comigo", afirma.

Além de atender no Posto de Saúde de Sousas, a doutora Elaine também atua voluntariamente junto a uma favela da cidade, seguindo o exemplo do seu colega e protetor, Jamiro Wanderley. Lá, ela viveu um dos momentos mais marcantes da sua carreira. Ao atender uma garota, percebeu, por meio do exame dos olhos, que a menina deveria estar com uma anemia muito forte. Pediu vários exames, que comprovaram que a paciente tinha leucemia. O diagnóstico precoce impediu que o tratamento fosse iniciado tarde demais, como ocorre em muitos casos. "Foi para isso que eu me tornei médica", diz Elaine, novamente tomada pela emoção.

Toda essa trajetória agora está sendo contada em livro, que a médica acaba de concluir. O título da obra é "Pérola Negra - História de um Caminho". Como o salário que recebe é suficiente apenas para pagar o aluguel de uma casa de fundos, a comida e o financiamento de um carro popular, Elaine ainda não sabe como levantará recursos para a publicação. "Vou precisar de um patrocínio, mas ainda não sei por onde começar", confessa. Qual a mensagem principal do livro? A própria autora resume: "Se você é pobre, as coisas tornam-se difíceis pra você. Se você é pobre e negro, tudo fica mais difícil ainda. Se você é pobre, negro e doente, a situação fica dificílima. Mas saiba que, a despeito de tudo isso, nada é impossível". Em outras palavras, segundo o manual da médica, o segredo é manter os sonhos eternamente jovens.

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