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Linha de pesquisa estuda o saber e os conceitos
sobre biologia presentes em comunidades de pescadores

Mar afora, rio adentro

MANUEL ALVES FILHO

Porto de Sauípe, Bahia: método usado através de coletas, para obter informações sobre a biologia das espécies de peixes desembarcadas por meio da pesca artesanal (Foto: Antoninho Perri)Quando os pescadores artesanais deixam suas moradias e seguem em direção ao rio ou mar, dificilmente saem a esmo. Baseados em anos de experiências, eles sabem onde e em que época do ano encontrar determinados peixes. Além disso, detêm informações importantes sobre os hábitos alimentares, o tipo de reprodução e o comportamento migratório de variadas espécies. Esse conhecimento natural, também chamado de popular, está ganhando cada vez mais espaço no meio acadêmico. Graças à etnobiologia, ciência que estuda o saber e os conceitos sobre biologia desenvolvidos por certas comunidades, como as dos caiçaras da Mata Atlântica ou caboclos da Amazônia, os pesquisadores têm queimado etapas dentro do esforço para compreender melhor a natureza. O objetivo dos cientistas é também conceber modelos que permitam a conservação da biodiversidade e a gestão sustentável dos recursos naturais.

Pescadores guardam informações importantes

Na Unicamp, a professora Alpina Begossi, pesquisadora do Museu de História Natural do Instituto de Biologia (IB), tem trabalhado há cerca de 20 anos com a etnobiologia, mais especificamente com uma linha de pesquisa intitulada “Ecologia de Pescadores”. De acordo com a pesquisadora, os estudos tratam de aspectos biológicos, mas têm como objeto principal os grupos de pescadores artesanais. “Essas pessoas têm uma interação muito forte com a natureza. Tanto o pescador do Rio Negro, na Amazônia, quanto o de Copacabana, no Rio de Janeiro, apresentam essa característica. O que nós tentamos fazer é entender como se dá essa relação e que tipo de conhecimento ela tem gerado”, explica.

Quando sai a campo, a equipe da professora Alpina trabalha com modelos de ecologia junto às comunidades. Uma das primeiras missões é compreender como os pescadores percebem o recurso e o classificam. “Nós humanos classificamos tudo, de cores a objetos. O pescador, por sua vez, tem uma classificação própria em relação aos peixes. Normalmente, ao ser colocado diante de fichas com imagens de várias espécies, ele as agrupa de acordo com a morfologia ou os hábitos alimentares. Ao proceder assim, demonstra deter informações importantes, que muitas vezes não são do conhecimento da academia”, afirma a pesquisadora.

A professora Alpina Begossi, que vem trabalhando há cerca de 20 anos com a etnobiologia: gestão sustentável dos recursos naturais (Foto: Antoninho Perri)Mais recentemente, prossegue, os especialistas da Unicamp estão incorporando novos fatores às investigações, tais como migração e reprodução. A professora Alpina assinala que nem sempre interessa se as informações dos pescadores concordam com o que está registrado na literatura. Muitas vezes, diz, o que eles contam não foi descrito pela ciência simplesmente porque nenhum pesquisador havia tomado conhecimento do fato anteriormente. “Isso nos obriga a investigar, por exemplo, se determinada espécie se alimenta daquilo que o pescador disse. Com isso, estamos adquirindo conhecimento biológico”. A idéia, conforme ela, é usar o saber popular, portanto não sistematizado, para acelerar o processo de compreensão da natureza.

No lugar de começar do zero, observando o comportamento e o desenvolvimento de uma espécie, os cientistas aproveitam o que os pescadores já sabem sobre ela. Normalmente, trata-se de um conhecimento bastante sólido, acumulado através de gerações. “A academia deve considerar outras fontes de conhecimento. Por exemplo, o saber popular, devidamente analisado, também pode ser valorizado e empregado em benefício da sociedade”, pondera. Um exemplo da importância dessa parceria vem de um trabalho desenvolvido por uma aluna de doutorado da professora Alpina, Priscila Lopes, que, ainda em sua tese de mestrado, detectou queda na diversidade do pescado numa dada região, indicativo da necessidade da implantação de planos locais de manejo e preservação.

A comunidade, sabedora do problema, solicitou à pesquisadora que fizesse um estudo específico sobre o robalo, espécie muito cobiçada tanto por pescadores artesanais quanto por turistas. “Esse dado é bastante significativo, pois tem pelo menos duas implicações. A primeira diz respeito à sobrevivência das famílias dos pescadores. Com a redução da oferta de peixes que geram interesse comercial, elas podem vir a ter a renda comprometida. A segunda refere-se ao empobrecimento da dieta do brasileiro. A pesca artesanal, responsável pela metade da produção pesqueira brasileira, oferece muita diversidade. Já a pesca industrial concentra-se em poucas espécies”, adverte a professora Alpina.

Atualmente, a pesquisadora do IB está demarcando os pontos de pesca ao longo da Mata Atlântica, numa faixa litorânea que vai do sul de São Paulo até a Bahia. Para isso, ela também está se valendo de dados coletados junto a comunidades de pescadores. A professora Alpina esclarece que, quando vai para o mar, o pescador não conduz o barco ao acaso. Ele sabe exatamente onde procurar o peixe. Esse processo de decisão obedece ao conhecimento que ele tem sobre a migração dos cardumes e os locais onde certas espécies buscam alimento ou proteção contra predadores, por exemplo. Além do mais, o pescador também avalia com razoável precisão o custo/benefício da atividade.

Pesca com zagaia no Rio Negro (Foto: Divulgação) Ou seja, ele sabe se compensa financeiramente ir mais longe em busca de um determinado tipo de pescado. “Ao demarcar esses pontos, o que eu identifiquei é que eles já são objeto de uma divisão informal por parte das comunidades adjacentes. Como sabem onde estão os recursos e qual a sua disponibilidade, os pescadores conseguem dividi-los, evitando sobreposição na exploração dos recursos. Essa regra pode muito bem ser aproveitada para o desenvolvimento de planos de manejo e conservação”, analisa a pesquisadora. Segundo ela, os locais de pesca praticamente não variaram nos últimos 30 anos, o que demonstra que têm estabilidade.

De posse desse conjunto de informações, insiste a pesquisadora da Unicamp, é possível estabelecer ações de monitoramento da pesca, de forma a impedir que os recursos sejam exauridos. “As migrações das espécies ocorrem em épocas diferentes. Sendo assim, não adianta definir apenas um período para a pesca, sob o argumento da preservação. Isso não funciona. E funciona menos ainda se o conhecimento natural não for levado em consideração. Conservação é desde sempre um assunto local”, afirma Alpina.

Carência de profissionais – Apesar dos esforços da equipe de pesquisadores da Unicamp, assim como de outras instituições, o Brasil ainda carece de informações sobre a sua biodiversidade, tida como uma das maiores do planeta. De acordo com a professora Alpina, o país se ressente de um maior número de biólogos. Os profissionais que estão no mercado, diz, não dão conta do trabalho que precisa ser feito. “Nós não conseguimos sequer listar ou dar nome a uma vasta gama de espécies animais e vegetais. Isso afeta especialmente a etnobiologia, uma vez que é uma ciência que ajuda não só a inventariar as espécies, mas principalmente obter e gerar informações biológicas de curto prazo. Estas, por sua vez, são indispensáveis para montar programas de manejo e monitoramento. O que a gente não conhece, não preserva e nem tampouco consegue explorar de forma sustentável”, lembra.

E por que o manejo e o monitoramento são tão importantes, afinal? Para responder a essa questão, a professora Alpina cita o trabalho de um pesquisador, Leandro Castello, que realizou um estudo sobre a biologia do pirarucu na Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, na Amazônia. Durante a pesquisa, Castello percebeu que os pescadores conseguiam contar os pirarucus que ocorriam nos lagos da reserva. Ele imaginou, então, que se os indivíduos podiam ser enumerados, também seria possível estabelecer critérios para o monitoramento e o manejo da espécie, que está ameaçada de extinção. Passados cinco anos, essa cota já foi ampliada significativamente. “Ou seja, na medida em que percebem que o recurso pode se esgotar, os pescadores se engajam nesse tipo de programa. Sem a colaboração deles, dificilmente qualquer proposta pode ser exitosa”.

Livro reúne pesquisas

A linha de pesquisa em etnobiologia conduzida pela professora Alpina Begossi, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, tem gerado uma série de estudos, boa parte deles em nível de mestrado e doutorado. Além de produzir novos conhecimentos, as pesquisas também têm ajudado a formar profissionais altamente qualificados para atuar no mercado. Recentemente, algumas das experiências realizadas por esses especialistas foram transpostas para um livro intitulado "Ecologia de Pescadores da Mata Atlântica e da Amazônia". A obra, organizada pela própria Alpina, conta com capítulos escritos por ela e por sete de seus ex-alunos.

O livro, que contou com apoio da Fapesp e do CNPq e foi editado pela Hucitec, descreve métodos de pesquisa em ecologia de pescadores e em ecologia de pesca, apresentando uma ampla bibliografia nas áreas biológica e antropológica. Ao longo dos seus nove capítulos, a obra trata de temas como etnobotânica, agricultura de pescadores, uso de recursos naturais por ribeirinhos, dieta e tabus alimentares e manejo e conservação de recursos pesqueiros. Os autores são Andréa Leme da Silva, Cristiana S. Seixas, Fábio de Castro, Juarez Pezzuti, Natália Hanazaki, Nivaldo Peroni e Renato A. M. Silvano. Os interessados em adquirir um exemplar podem fazer a encomenda por meio do site da editora.

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