Leia nessa edição
Capa
Artigo: Biotecnologia agrícola
Cartas
O Ofício de cada um
Estrada vira obra de arte
Reestruturação da indústria
Jaguaribe
Bebida à base de soja
Leite de cupuaçu
Tática para escanteio
Painel da semana
Unicamp na mídia
Oportunidades
Teses da semana
Artigo: 2004 não acabou
Financiamento da agricultura
Anatomia de Michelangelo
 

2


Artigo

Biotecnologia
agrícola e desenvolvimento

ANTÔNIO MÁRCIO BUAINAIN e JOSÉ MARIA DA SILVEIRA



Antônio Márcio Buainain e José Maria da Silveira (abaixo) são professores do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisadores do Núcleo de Economia Agrícola (NEA-IE) e do Grupo de Estudos da Organização da Pesquisa e da Inovação (Geopi-IG) Quando a Organização das Nacões Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), dedica sua mais importante publicação The State of Food And Agricultures a responder à pergunta: agricultural biotechnology, meeting the needs of the poor?, é natural que o tema volte às páginas da grande imprensa. Trata-se de uma análise abrangente e balanceada da trajetória de evolução tecnológica aplicada à agricultura, das vantagens já confirmadas e potenciais da biotecnologia agrícola, das limitações e dos riscos envolvidos. Embora inequivocamente favorável à Revolução Genética, o documento aponta também as restrições, problemas e desafios, e neste sentido municia aqueles que vêm se posicionando contra a geração e utilização de produtos GM.

Antônio Márcio Buainain (acima) e José Maria da Silveira  são professores do Instituto de Economia da Unicamp, pesquisadores do Núcleo de Economia Agrícola (NEA-IE) e do Grupo de Estudos da Organização da Pesquisa e da Inovação (Geopi-IG) As leituras são diversas. Aqueles contrários aos transgênicos enfatizam a conclusão da FAO de que a biotecnologia não é uma panacéia, de que a agenda de pesquisa, dominada pela grandes multinacionais, é excludente, não incorpora possíveis soluções para problemas críticos enfrentados pelos pequenos agricultores pobres, e que por isto não resolverá a fome do mundo se não vier acompanhada de políticas específicas voltadas para o social; também ressaltam a constatação que não há consenso científico acerca dos possíveis impactos dos transgênicos sobre o meio ambiente e que por isto cada caso deve ser avaliado individualmente.

Já aqueles que vêm defendendo a necessidade de definir um marco regulatório que incentive a pesquisa e a produção de plantas transgênicas, com segurança, direitos de propriedade, informação adequada ao consumidor e controle sobre possíveis monopólios com base em leis anti-truste, festejam a confirmação das potencialidades abertas pela revolução genética e a conclusão de que algumas biotecnologias de 1a. geração, já disponíveis, como o caso do algodão Bt, têm impacto favorável não somente na produção, mas sobre o ambiente, reduzindo custos e aplicação de pesticidas.

Mais além dessas leituras, o importante é que a pergunta da FAO e o conteúdo do documento contribuem para limpar o debate e colocá-lo em uma perspectiva histórica e de longo prazo sobre o desenvolvimento da agricultura, incluindo os agricultores pobres que vêm ficando à margem dos progressos nas últimas décadas, a redução da fome e da pobreza no mundo.

A FAO analisa a Revolução Genética como desdobramento da Revolução Verde, responsável pela elevação sustentável dos rendimentos dos principais produtos agrícolas, inicialmente a partir da combinação de variedades de sementes selecionadas, insumos químicos e mecanização, e posteriormente pela introdução de métodos de manejo de solo. Chama atenção para os efeitos positivos da modernização tecnológica e para o papel desempenhado pelos institutos internacionais de pesquisa na Revolução Verde, cujas inovações foram tratadas quase como bens públicos, em contraposição ao domínio das grandes corporações na definição da agenda de pesquisa e das inovações geradas pela RG.

No entanto, é preciso indicar que se os resultados produtivos da Revolução Verde são inquestionáveis, não se pode dizer o mesmo dos impactos sobre o meio ambiente e sobre os agricultores pobres. Vários estudos revelam que embora a tecnologia pudesse ser neutra à escala, um conjunto de fatores que inclui desde o perfil socioeconômico dos agricultores, em particular o nível de educação e experiência profissional, até acesso a crédito e mercados, acabou determinando a exclusão de muitos agricultores pobres dos benefícios da nova tecnologia. Essa análise revela que na maioria das vezes a exclusão tecnológica não é pré-determinada pelas características da tecnologia em si, mas sim pelas condições que cercam sua adoção, e que embora as características da tecnologia sejam relevantes, a capacidade de inovação está muito mais relacionada aos outros fatores mencionados acima.

As novas tecnologias de base genética alteram profundamente as condições de acesso, em alguns casos favorecendo a adoção pelos agricultores mais pobres (reduzindo, por exemplo, a necessidade de insumos químicos), em outros dificultando (maior exigência de capacitação em gestão, adequação às regras de biossegurança etc.), mas não modifica, em essência, a conclusão de que a inclusão ou exclusão dos agricultores mais pobres será fundamentalmente decidida pela capacidade de inovação destes grupos, ou seja, pela capacidade de apropriação das novas tecnologias para reforçar vantagens potenciais (como por exemplo a associada à utilização da mão-de-obra familiar) ou reduzir desvantagens (como por exemplo a pequena base de recursos naturais). Não se pode atribuir às tecnologias virtudes ou defeitos que não lhe pertencem, e não há razão para julgar o potencial da biotecnologia pela capacidade de gerar tecnologias ditas “adequadas” aos agricultores mais pobres.

É também preciso considerar o contexto institucional que marca a geração tecnológica. No caso da Revolução Verde, o foco da pesquisa pública internacional foi um grupo de grãos, inicialmente trigo, milho e arroz, cultivados em larga escala por pequenos agricultores e com papel relevante na alimentação mundial. O objetivo básico era elevar o rendimento dos cultivos em condições ambientais variadas, e aos poucos foram sendo agregados outros objetivos, como melhorar a resistência a pragas e a condições de produção específicas. Para as grandes corporações da área, a chave para o sucesso de uma tecnologia era fundamentalmente sua superioridade econômica, traduzida em redução de custos, simplificação e homogeneização do processo produtivo e ou do produto. Não houve qualquer preocupação explícita com impacto ambiental e durante um período até mesmo aspectos sanitários foram negligenciados.

A situação hoje é radicalmente diversa. A questão ecológica e a preocupação com o meio ambiente, até poucas décadas restrito a pequenos grupos de contracultura, foram incorporados à agenda política, transformaram-se em políticas e deram origem a um novo marco institucional, mais exigente e restritivo do que o anterior. Neste novo contexto, uma tecnologia dificilmente poderá se afirmar apenas pelas vantagens econômicas para os produtores; além disso, será preciso passar por um forte crivo social, que inclui seu impacto ambiental e sobre a saúde humana.

Esses condicionantes estão embutidos na própria lógica da busca de novos produtos GM. Dado o marco institucional adequado, baseado no tripé incentivo à pesquisa com princípio da responsabilidade do inovador, mecanismos de avaliação de impacto e de monitoramento de riscos e finalmente informação ao consumidor, dificilmente tecnologias GM serão lançadas no mercado e poderão se afirmar se não oferecerem externalidades positivas. Isto significa que as novas tecnologias, ao contrário do que afirmam os que a elas resistem, são mais virtuosas que as anteriores, e são potencialmente portadoras de vantagens micro e de externalidades positivas para toda a sociedade.

A despeito dos estudos de impacto do milho Bt, do algodão Bt e da soja transgênica identificarem impactos positivos para os agricultores, assim como para os produtores de sementes e outros insumos para agricultura, a questão central do estudo da FAO volta à baila: e os pequenos agricultores? E a questão distributiva? Se com técnicas consideradas menos poderosas de melhoramento genético chegou-se a resultados extraordinários de ganho de produtividade e gerou-se impactos negativos para os chamados países retardatários, que não conseguiram montar as redes de pesquisa relevantes, o que ocorrerá se a pauta ficar limitada a estratégias que atendam a visão das empresas “life sciences”, que por sua origem, é muito parecida com a das líderes farmacêuticas do mundo?

De fato, as grandes corporações trabalham com produtos “plataforma” que sejam capazes de viabilizar uma estratégia mundial para a biotecnologia. Sem dúvida isto condiciona sua pauta de pesquisa a poucos produtos e poucas linhas. Foco, grande competência em pesquisa e orçamento adequado definem os vencedores de uma corrida cheia de riscos e incertezas, e que impõe fortes penalidades àqueles que entram com atraso ou por qualquer razão perdem o ritmo, como no caso da soja no Brasil.

Qual a alternativa para essa constatação, que de resto reafirma o padrão anterior? Reter o progresso tecnológico? Propor estratégias tecnológicas alternativas que ignoram vantagens econômicas e que só poderiam se afirmar por meio de imposição de elevados custos de transação e restrições institucionais (geradoras de conhecidas distorções como os mercados paralelos, importações ilegais etc.)?

A resposta da FAO está na articulação em rede da pesquisa pública, nos moldes dos institutos internacionais criados nos anos 60, mas com foco na potencialização da produção familiar, cujas vantagens competitivas são colocadas na capacidade em atender mercados específicos, produzir alimentos e produtos de alto valor como flores, a partir da presença atuante dos membros da família que teoricamente reduz os custos de transação. Neste sentido, a biotecnologia poderia ser uma ferramenta importante, com impacto favorável em vários campos, do controle sanitário à recuperação de ambientes degradados. Todavia, no passado, a constituição das redes de pesquisa acentuou desigualdades entre países, mantendo muitos na dependência de pesquisas realizadas nos Centros Internacionais da FAO e sem mesmo condições científicas e tecnológicas para sequer transferir e adaptar tecnologias geradas nos países centrais.

Revitalizar a pesquisa pública para enfrentar esse desafio é necessário, mas não necessariamente uma tarefa fácil. Vários estudos, inclusive elaborados por centros de pesquisa da Unicamp, como o GEOPI/DPCT do Instituto de Geociências e NEA, do Instituto de Economia, mostram como a evolução da agricultura vai criando, como pré-requisito e resultado, instituições de pesquisa e de prestação de serviços tecnológicos, como a APTA de São Paulo, a Embrapa, o centro tecnológico da Coopersucar, a Coodetec ligada às cooperativas do Paraná, os serviços de controle microbiológico de inoculantes no Rio Grande do Sul, etc.., sustentada em parte por fundos públicos e por arranjos privados complexos. Esse tipo de arranjo e competência é resultado de um processo, e não emerge de um dia para outro por decisão política e disponibilização de recursos.

O relatório da FAO faz o alerta de que biotecnologia é promissora mas não é panacéia. Não autoriza relacionar diretamente biotecnologia ao combate à fome, ou biotecnologia à redução direta da pobreza. Todavia, também alerta para a importância de inserir o desenvolvimento da biotecnologia na agenda de política pública de apoio de promoção da pequena agricultura, principalmente nos países, como o Brasil, que já deram um grande passo. Trata-se de uma tarefa hercúlea e que deve ser alvo deliberado da intenção estratégica dos governos. Implica orçamento para a pesquisa, fortalecimento da rede de apoio à pequena agricultura e um sistema sustentado, economicamente viável, de biossegurança e de informação.

Isto feito, em poucos anos voltaremos a identificar problemas, fazer balanços de prós e contras, mas em outro patamar. Adaptando e transformando tecnologias da Revolução Verde o país chegou à posição de líder mundial em commodities agrícolas. Com o apoio da biotecnologia, seremos protagonistas de um sólido e diverso desenvolvimento rural, produtor e exportador de produtos de maior alto valor agregado com base em empreendimentos de pequeno porte.


SALA DE IMPRENSA - © 1994-2003 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP