Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 222 - 28 de julho a 3 de agosto de 2003
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Artigo
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Humanidades num contexto de crise

O conceito moderno de Universidade que implica identificá-la como instituição social apoiada no reconhecimento público e destinada à produção de conhecimento crítico e reflexivo, parece esvaecer-se. Nas últimas décadas, como decorrência das transformações drásticas por que passa o capitalismo, implementou-se, em muitos países, a agenda das reformas do Estado de orientação neoliberal, que inclui cortes dos gastos públicos especialmente nas áreas sociais e, dentre elas, a educação em todos os níveis. A Universidade, nesse contexto, passa a ser identificada como instituição prestadora de serviços, ao mesmo tempo em que se evidencia a tendência de redução dos investimentos públicos necessários para a sua manutenção, indispensáveis não apenas para a sua sobrevivência como para a preservação da sua autonomia em relação a outras instituições e ao mercado. A exigüidade de recursos públicos tem compelido as universidades a buscar fontes alternativas de financiamento, especialmente junto a empresas privadas, o que tem levado à reorientação das suas atividades fins, à valorização de determinadas áreas cuja produção melhor atende às demandas dos agentes ligados ao sistema econômico e ao comprometimento do caráter crítico, reflexivo e independente do conhecimento por elas gerado.

Talvez um dos efeitos mais danosos de todo esse processo seja a incorporação por determinados segmentos da instituição universitária de uma lógica tecnicista que se expressa, dentre outras coisas, nos novos critérios de avaliação institucional - cada vez mais apoiados em parâmetros quantitativos - e na adoção, por parte das administrações, de métodos de gerenciamento empresarial. Nessa perspectiva, são valorizadas especialmente as áreas potencialmente produtoras de conhecimento científico e tecnologias capazes de atender às necessidades de setores empresariais, definidas muitas vezes como "demandas sociais". Na condição de canais privilegiados de ligação entre a Universidade e o sistema econômico, tais áreas tornam-se geradoras de receitas suplementares. Ao mesmo tempo, são beneficiadas com parcelas maiores dos recursos disponíveis tanto no âmbito das universidades como das agências de fomento à pesquisa. A insuficiência do financiamento público faz com que a instituição universitária volte-se cada vez mais para o atendimento daquelas demandas, o que acaba por restringir a sua autonomia e por orientar a sua produção para fins utilitaristas. Como disse o sociólogo Octavio Ianni, ao discursar no ato público realizado na USP, no ano passado, em defesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, "verifica-se no interior da Universidade o avanço do ethos tecnocrático em prejuízo do ethos humanístico".

Não se trata de pôr em questão o papel da Universidade na produção científica e tecnológica, mas sim de chamar a atenção para o desequilíbrio que se aprofunda entre a importância dada a essas áreas e às Humanidades, bem como as conseqüências disso para uma das principais atividades fins da Universidade que é a formação. Vale lembrar que no momento em que se consolidava a Universidade moderna na Europa, as Humanidades ocupavam posição de destaque tanto na Universidade alemã, de perfil mais especulativo, como na francesa pós-revolucionária, que se voltava, já naquela época, para a formação profissional. Mesmo no Brasil, a Filosofia e as Ciências Sociais sobressaíam no engajamento da Universidade em torno da construção de um projeto nacional-desenvolvimentista em meados do século XX. A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP talvez seja o caso mais emblemático. Desde a sua fundação no início da década de 30 até os anos 60, formou gerações de intelectuais cuja produção conquistou projeção nacional e internacional e contribuiu decisivamente para o aprofundamento da compreensão da realidade brasileira.

Mas é provável que as mudanças pelas quais passa a universidade não resultem apenas da crise de financiamento público e do estreitamento das relações com o sistema produtivo e com o mercado. Talvez esse diagnóstico decorra de uma percepção ainda superficial do problema. Transformações mais profundas que vêm ocorrendo no capitalismo contemporâneo que implicam o redimensionamento do papel da ciência e da técnica podem estar na base do problema.

De acordo com o sociólogo e professor do IFCH/Unicamp Laymert Garcia dos Santos, um dos processos que está na base das grandes mudanças que marcam o mundo contemporâneo é a "virada cibernética" que se consumou com a aliança entre o capital, a ciência e a tecnologia. A "tecnociência" resultante dessa aliança converteu-se na alavanca fundamental da acumulação capitalista nas últimas décadas. As tecnologias da informação, que não mais se restringem ao campo das mídias, "operam - em todos os campos - a codificação e a digitalização do mundo, ao manipularem a realidade informacional que permeia a matéria inerte, o ser vivo e o objeto técnico". Com a virada cibernética, o mundo é submetido ao controle tecnocientífico, via informação, transformando-se num "inesgotável banco de dados". A disparada da evolução tecnológica a partir de 1970, acompanhada pela descoberta da miniaturização, que permite a produção de mais com menos trabalho, energia e matéria-prima, e a propagação da informática na vida cotidiana, criaram as condições básicas das transformações recentes do mundo capitalista. As inovações tecnológicas na produção industrial deixam de ser orientadas pelo princípio do retorno do capital investido e se convertem em condição de sobrevivência das empresas. A rapidez com que ocorrem as transformações tecnocientíficas gera instabilidades que atingem todo o sistema produtivo. Ao mesmo tempo, a aliança entre o capital e a tecnociência intensifica a globalização e a inovação tecnológica, torna-se pré-condição para a conquista e a manutenção da supremacia econômica e política.

É nesse contexto que a tese a-crítica do avanço tecnocientífico como base do desenvolvimento econômico torna-se hegemônica no interior das universidades, das agências de fomento e indução de pesquisas, dos meios da comunicação, e converte-se em senso comum. A matéria publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, no dia 13/07/03, é reveladora. Sob o título "País produz pesquisa, mas poucas viram riqueza", o texto chama a atenção para o fato de que grande parte do conhecimento gerado pelas universidades não chega até as empresas. Portanto, a noção de riqueza está claramente associada à de acumulação de capital. É preciso destacar que o capitalismo na sua fase atual exclui muito mais força de trabalho do que incorpora. O fenômeno da exclusão deixou de ser expressão de crises conjunturais do capitalismo e tornou-se estrutural. Ganha atualidade surpreendente a tese de Marx sobre a "lei geral da acumulação capitalista", formulada em meados do século XIX: "Acumulação de riqueza num pólo [da sociedade] é ao mesmo tempo acumulação de miséria, de trabalho atormentante, de escravatura, ignorância, brutalização e degradação moral, no pólo oposto...".

Laymert chama a atenção para a necessidade de ser rever, no contexto atual, o significado atribuído ao Holocausto. Citando o teatrólogo alemão Heiner Müller, afirma que Auschwitz não foi apenas um episódio de barbárie nem uma irrupção de irracionalismo; "o campo de concentração significa o altar do capitalismo, o último estágio das Luzes e o modelo de base da sociedade tecnológica. (...)Auschwitz seria o altar do capitalismo porque ali o homem é sacrificado em nome do progresso, porque o critério da máxima racionalidade reduz o homem ao seu valor de matéria-prima; seria o último estágio das Luzes, como a realização plena do cálculo por ela inaugurado; e seria, enfim, o modelo de base da sociedade tecnológica porque o extermínio em escala industrial consagra até mesmo na morte a busca de funcionalidade e eficiência, princípios fundamentais do sistema técnico moderno." A incompatibilidade entre a recriação das condições de perpetuacão do capitalismo e a realidade demográfica atual é cada vez mais evidente. Nesse cenário, catástrofes como a multiplicação dos conflitos e guerras regionais, a fome, as epidemias, a ruína econômica de países do Terceiro Mundo, ganham um sentido assustador. Talvez essa seja a maneira pela qual o sistema econômico venha implementando a redução do contingente de descartáveis para se reproduzir.

É urgente e necessário retomar e aprofundar a crítica às noções de ciência, técnica, tecnologia, riqueza, desenvolvimento, progresso, etc. E cabe fundamentalmente à universidade esse empreendimento. É preocupante verificar que pesquisas dessa natureza são vistas, muitas vezes, como diletantes. Isso indica a necessidade da auto-crítica da universidade e do aprofundamento da reflexão sobre aspectos que vão desde o seu papel histórico e social, até os atuais critérios internos de avaliação de "produtividade". Nessa tarefa, as Humanidades (Filosofia, Ciências Humanas e Artes) têm um papel central, especialmente por serem disciplinas que de uma forma ou de outra refletem sobre a condição humana - "Nosso verdadeiro estudo é a condição humana", dizia Rousseau - e por tratarem com freqüência de questões ligadas às relações entre ética e conhecimento científico. Além disso, vêm principalmente dessas áreas pesquisadores e intelectuais que abordam criticamente os problemas associados à compartimentalização do conhecimento acadêmico. Talvez dessas disciplinas é que possam surgir iniciativas mais efetivas que possam reverter a especialização excessiva da produção do conhecimento, sem negar, evidentemente, as peculiaridades de cada área. Iniciativas de relier les connaissances, como propõe o sociólogo Edgar Morin.

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José Roberto Zan é sociólogo, diretor do Instituto de Artes e ex-presidente da Adunicamp.

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