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Jornal da Unicamp 180 - Página 12

10 a 21 de julho de 2002
Agora semanal


Morreu Maria

A pesquisadora Sheila dos Santos mostra como estudantes que convivem com a violência criam linguagem particular para se protegerem

Luiz Sugimoto

Na sala de aula, a aluna conta para a professora que o lobisomem "forte, grande e peludo" queria pegar a mulher e a menina. Do meio da sala, um menino busca o olhar da colega e põe a palma da mão direita no peito, deslocando um pouco o corpo para trás; com o polegar da mesma mão, aponta para trás do ombro. É um sinal: "morreu Maria'. Ou traduzindo melhor: "acabou o assunto". Neste episódio, o menino tenta proteger a menina, pensando que ela está denunciando à professora três colegas que cobram um "pedágio" - balas, figurinhas, chicletes e mesmo dinheiro - para permitir que as crianças entrem ou saiam da sala. Um desses colegas tem um apelido que lembra o lobisomem, personagem criado pelo imaginário social. Na verdade, a garota estava narrando a violência de que é vítima no meio familiar.

Durante três anos (de 1996 a 1998), no canto da sala, estava a pesquisadora Sheila Daniela Medeiros dos Santos, observando o comportamento das crianças de uma escola do ensino fundamental na periferia de Campinas. A escola fica entre duas favelas e, desnecessário dizer, sob clima de cotidiana violência. A proposta inicial da dissertação de mestrado de Sheila, pela Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, seguiria preceitos pedagógicos clássicos para avaliar a não-participação de alunos nas atividades escolares: falta de motivação, bloqueios psicológicos, problemas neurológicos, pressão de um universo cultural estranho sobre quem vivencia a miséria.

Mas, "num dia de outono, no mesmo instante em que o sinal de saída tocou estridente", como ela recorda, o enfoque do seu trabalhou mudou. Ao ver, através da janela da classe, algumas crianças caminhando cabisbaixas em direção ao portão, enquanto outras saíam alvoroçadas ciscando pela direita e esquerda, a cena corriqueira lhe pareceu inédita. Olhando nos olhos das crianças cabisbaixas, ela mudaria seu próprio olhar de pedagoga, para perceber os traços e os contornos acústicos de uma realidade dramática revelada por meio de uma linguagem – oral, escrita, gestual - que nós, deste lado do mundo, ignoramos. A dissertação de Sheila virou livro: "Sinais dos Tempos - Marcas da violência na escola", que foi lançado em 25 de junho pela Editora Autores Associados, com apoio da Fapesp.

"Quando me lancei na aventura de observar e vivenciar o cotidiano de uma escola pública, pude perceber que a maioria das crianças das salas de aula não se envolvia com as atividades escolares. Algumas ficavam desenhando ou enviando bilhetinhos para os colegas, outras cantavam em voz alta e outras silenciavam por longo tempo", lembra a pedagoga. Em contrapartida, as mesmas crianças que silenciavam, em determinados momentos envolviam-se com a leitura e a escrita, participando da aula, fazendo comentários e levantando questões. "Mas esse envolvimento sempre se dava fora do contexto em que as atividades estavam sendo propostas pela professora e sempre se relacionavam aos assuntos mais estranhos e ininteligíveis".

Aventura - De professores e da administração da escola, Sheila ouviria as explicações pedagógicas clássicas: imaturidade biológica/cognitiva, problemas emocionais/neurológicos, processo de escolarização excludente, falta de motivação. Dos pais, atitudes punitivas - surras - ou de premiação - promessas de piscina e presentes - para que as crianças cumprissem seus deveres. Mas foi na declaração de uma das mães que nenhuma providência tomaram, que a pesquisadora encontrou o foco para sua pesquisa: "Não é burrice nem preguiça, o problema dela é ver gente morrendo", disse a mãe de Edi.

Mergulhando no bairro em que viviam os alunos, Daniela descobriria um dia-a-dia de atropelamentos, crimes, bares com bebidas alcoólicas e sinucas, vídeolocadoras onde só se alugam filmes de violência, vizinhos que desconfiam de vizinhos, gangues em conflito que recrutam os próprios estudantes e depredam e roubam a própria escola. A pedagoga ainda precisou de muita precaução e persistência para que essas crianças abrissem seus corações e traduzissem seus códigos, propiciando depoimentos, cartas e outras manifestações que se revelaram como um pedido de socorro e ajudaram a completar as mais de 200 páginas do livro que leva a uma revisão da metodologia dos estudos sobre violência até agora praticados.

Prudência – Sheila Daniela desenvolve atualmente sua tese de doutoramento em ciências sociais, mas decidiu mudar a linha de sua pesquisa. Optou pela prudência, ao menos momentaneamente, em respeito a novos sinais enviados pelas crianças. Quando do início das entrevistas para a dissertação de mestrado, ela recebeu o desenho de um coração com a palavra "entre" - um convite de Rô para que penetrasse em sua vida. No final dos trabalhos, recebeu outro coração, mas desta vez com uma faca encravada, sangrando – era Ive prevenindo a pesquisadora de que ela fora incluída na lista das gangues.

FRASES

"Para compreender a vida, basta ficar em silêncio e ouvir a voz do coração. Há sempre uma boa lição!" (Rô)

"Há muitas coisas que estão presas na garganta e que não podem ser ditas". (Alê)

"Mesmo que a boca estiver calada, resta o peito para sentir e fora a boca e peito resta a cabeça para pensar". (Eli)

"Eu vim pra escola pra aprende a lê e a escrevê. Sabe por que, tia? Porque as gangue que mata os moleque tem uma lista dos nome que eles vão matá e se um dia eu vê a lista, eu vô podê avisa os conhecido pá fugi". (Edi)