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Jornal da Unicamp 179 - Página 9

1 a 7 de julho de 2002
Agora semanal


Troco na mesma moeda?

Dissertação de mestrado mostra como o Mercosul poderia atenuar rivalidade entre Brasil e Argentina

Luiz Sugimoto

Se a rivalidade entre Brasil e Argentina se limitasse ao futebol, talvez o Mercosul já estivesse consolidado como exemplo de integração regional e de cooperação econômica e comercial, tal como a União Européia, que pelo visto continuará sendo apenas um modelo - inclusive de reconciliação de arquiinimigos, no caso, França e Alemanha.

Em sua dissertação de mestrado em ciência política, José Alexandre Hage procura analisar, a partir da assinatura do Tratado de Assunção em 1991, como o Mercosul poderia contribuir para diminuir os interesses nacionais de Brasil e Argentina e também para anular esse grau de rivalidade. O estudo teve a orientação do professor Shiguenoli Miyamoto, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Hage concedeu a entrevista abaixo ao Jornal da Unicamp.

Jornal da Unicamp - O que prevê o Tratado de Assunção em sua essência?

José Alexandre Hage - Ele tenciona aumentar em grande grau o intercâmbio econômico entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, procurando construir um projeto de integração regional. Um intercâmbio que ficou paralisado durante muito tempo, até a década de 90, em virtude dos projetos de substituição de importações, cujo princípio era justamente abastecer o mercado local com produtos fabricados no próprio país. Esta era uma realidade econômica, sobretudo para Brasil e Argentina, países que detêm parques industriais de relativa importância, mas que teriam de mudar suas visões dos problemas econômicos se fosse para adotar o Mercosul.

JU - E a realidade política, qual era?

Hage - O Mercosul procurou, com certo sucesso, angariar esforços de cooperação entre Argentina e Brasil para superar crises históricas de 30 e 40 anos atrás. Crises diplomáticas causadas pela construção da usina Itaipu Binacional - uma parceria do Brasil com o Paraguai -, bem como pela insistência do governo brasileiro em adquirir usinas nucleares a partir de planos conjuntos com a Alemanha. Esses projetos de infra-estrutura contribuíram para reforçar a idéia de que havia iniciativas de projeção hegemônicas, tanto da Argentina quanto do Brasil, na América do Sul.

JU - Embora não seja o foco do seu estudo, qual sua opinião sobre o peso do viés cultural nesta rivalidade (o futebol é o primeiro exemplo que surge)? Isso dificulta a interação regional.

Hage - É uma questão pertinente. São formações culturais bastante distintas. Para começar, a sociedade argentina é muito mais homogênea, enquanto a brasileira surgiu de maneira mais plástica, com alto grau de intercâmbio entre europeus, nativos e negros. Ainda que esta mescla étnica e cultural do Brasil tenha sido altamente conflituosa, negando a visão idealista do processo, há como afirmar sua presença e sua força nas manifestações culturais, artísticas e esportivas - na MPB, no carnaval e no futebol. Ou seja, mesmo que não se concorde com o pensamento de Gilberto Freyre, sobre uma possível civilização nos trópicos baseada na democracia racial, há preeminência de uma cultura que é resultado da mescla de povos.

JU- Ao passo que na Argentina...

Hage - Lá, não existe tal pressuposto. A cultura platina foi construída amplamente pelo imigrante europeu - mais ou menos 5 milhões de italianos, espanhóis e outros. Além deste ponto, os argentinos sempre tiveram tendência à urbanização, recebendo influências que esse tipo de vida traz; não é gratuita a imagem que se tem deles, como uma sociedade formada principalmente por uma classe média educada, pois a escolaridade do país sempre foi alta. Tenho a opinião de que os dois países haviam se ressentido pelo fato de não terem a clara visão de sociedade e de povo, sobretudo no final do século 19. No caso platino, houve a presença de um importante intelectual que acabou se transformando em presidente da República, o escritor Sarmiento, cujo dilema era justamente descobrir, afinal de contas, como refletir sobre a formação da sociedade argentina. O sonho do autor era reproduzir o teor de sociabilidade francês ou britânico para o Prata, a partir de estudos sobre pensadores europeus como Tocqueville e Montesquieu. É por isso que o grande dilema de Sarmiento era "civilização ou barbárie".

JU - Voltando à sua dissertação, poderia detalhar o que chama de "visão virtuosa" do Mercosul por parte da Argentina, em contraposição à do Brasil?

Hage - A Argentina via nesse plano de integração uma saída para sua economia estagnada por anos de crise e por projetos equivocados. O Mercosul poderia ser a "Arca de Noé" para dar cabo de anos de problemas econômicos, mas não se levou em conta que a manutenção de planos de integração exige bastante cálculo político e diplomático para preparar os países em momentos de conflitos inerentes ao plano, o que acabou acontecendo com o açúcar, com os automóveis e outros. Em outras palavras, o governo platino teve uma visão de virtude que, no fundo, o plano não tem.

JU - A opção pelo agrobusiness, adotada pela Argentina, ainda é defendida entre os especialistas brasileiros para nosso país?

Hage - Na verdade, isto é um dos elementos que provocam crise entre Buenos Aires e Brasília. Eles se ressentem da visão brasileira sobre o assunto, com queixas de que temos grande desejo no atraso econômico e tecnológico da Argentina. Há declarações saídas do governo federal sobre este parecer, ou seja, a formação de certa divisão internacional do Cone Sul, em que o Brasil seria o responsável pela produção em alta tecnologia industrial, enquanto a Argentina se encarregaria da produção agrícola em larga escala, vale dizer, do agronegócio que não tem grande valor agregado.

JU - Por que num período particularmente duro do regime militar no continente, no Brasil se preconizava a política desenvolvimentista, enquanto na Argentina (a partir de 1976) se desmontava o parque industrial?

Hage - Tenho duas opiniões sobre este ponto. A primeira é de que o processo de substituição argentino não logrou grande resultado, passando a imagem de que o parque industrial é despreparado e dispendioso. Assim, seria melhor um retorno à história recente, uma certa "busca do tempo perdido", quando a Argentina estava entre os cinco Estados mais ricos vendendo carne, lã e trigo. O segundo ponto é que a base sindical e política mais bem preparada estava justamente no campo industrial dos grandes centros, como Buenos Aires, Rosário e Córdoba; esta afirmação tem fundamento, ainda mais se se tratar da influência peronista nos meios operários e sindicais. E a primeira tarefa da junta militar era dar cabo do peronismo, sobretudo sua versão mais contestatória, que poderia se tornar difícil à ditadura.

JU - O senhor aponta Carlos Menem como um dos culpados pela impossibilidade de integração regional.

Hage - O governo argentino, a partir de Menem, militou para angariar forte transformação na sua diplomacia e, em curto tempo, abandonou o teor conflitivo do Terceiro Mundo (Grupo dos 77, do qual fizera parte) para se integrar em algo fluido, como a idéia de que poderia ser primus inter pares do "Primeiro Mundo". É deste comportamento diplomático que se origina a opinião de que a Argentina tem relações "carnais" com os países industrializados do hemisfério norte, sobretudo os Estados Unidos. São tais situações presentes no governo argentino que diminuíram a possibilidade de se valorizar o espírito integrativo do Mercosul. Mas não se pode dizer que tal malogro seja apenas unilateral, há também o papel representado pelo Brasil.

JU - E qual é a culpa do governo brasileiro para esta situação?

Hage - Nossa diplomacia nunca acreditou neste papel virtuoso do Mercosul como fonte de desenvolvimento. Da mesma forma, nunca houve no Itamaraty reformas que descaracterizassem sua tradicional postura, considerada sempre de prudência em relação ao hemisfério norte. O Tratado de Assunção é visto como um instrumento estratégico que pode angariar apoio e prestígio à liderança do Brasil na América do Sul, ainda mais em se tratando de resistir à Alca. O Brasil sempre se considera uma espécie de global player, um país com interesses em todo o globo, não apenas concentrados na região sul-americana.

JU - Com a crise sem precedentes na Argentina, qual o futuro do Mercosul?

Hage - O processo deve ficar estacionado, até que a Argentina encontre soluções para a crise. É preciso saber, inclusive, se ela vai manter seu interesse no acordo. Já se fala na inclusão de outros países, como México e Espanha. Seria o "Mercosul Plus", dando ao tratado um caráter apenas econômico e comercial, em detrimento da integração regional. Esta mudança teria o apoio dos Estados Unidos, que são frontalmente contra as pretensões de liderança do Brasil na América do Sul.