| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 384 - 17 a 31 de dezembro de 2007
Leia nesta edição
Capa
500 patentes
Creme para diabéticos
Patente com marca registrada
Água na agricultura
Lançamento
Niemeyer
Mata Atlântica
Filmes de diamantes
Farinha de arroz
Controle da Dengue
Estação Guanabara
Painel da semana
Teses
Livro da semana
Novo laboratório
Um aluno na batuta
 


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Niemeyer
Um modernista centenário
desenha utopias no horizonte

ÁLVARO KASSAB

Marco do Valle em frente ao Itatiaia, edifício campineiro projetado por Niemeyer em 1952 (Foto: Antoninho Perri) A influência exercida por Oscar Niemeyer moldou de certa forma a trajetória do escultor e arquiteto Marco do Valle. O artista assume o relevo desse traço. Ao reconhecê-lo – e se reconhecer nele – Valle presta mais que um tributo: traduz o estado – e a leveza – da arte do arquiteto carioca.

O contato inaugural, aos 14 anos de idade, foi obra de uma cilada do inconsciente – Valle desenhou Brasília em sua primeira tela. Anos depois foi orientado por José Resende e Luiz Paulo Baravelli, dois de seus mentores de ateliê, a procurar sua formação em arquitetura para escorar a atividade artística que aflorava. A arquitetura, ponderavam Resende e Baravelli, daria régua e compasso para vôos teóricos mais altos.

Assim foi feito. O escultor penetrou de vez no universo de Niemeyer, não por acaso objeto central de estudo ao longo da graduação de Valle, hoje docente do Instituto de Artes (IA) e da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp.

É de autoria de Marco do Valle a primeira tese de doutorado defendida sobre Niemeyer na FAU-USP, berço da escola paulista. Em “Desenvolvimento da Forma e Procedimentos de Projeto na Arquitetura de Oscar Niemeyer – 1935-1989”, o escultor fez um dos mais completos estudos sobre a obra do carioca. O professor do IA mostra como, depois de dar os primeiros passos sob o repertório de Le Corbusier, Niemeyer redesenha o repertório de seu mestre para criar uma arquitetura com características próprias.

Ao estabelecer a genealogia das formas adotadas por Niemeyer, o docente conclui que a origem de seu repertório está montada em duas obras de 1941: a Pampulha e o projeto não executado do Estádio Nacional do Rio de Janeiro. “Tento entender como ele vai fazer essa arquitetura leve, que colocará a engenharia sob tensão até virar uma arquitetura na qual o desenho e a forma são a mesma coisa”.

A forma não é prioridade no trabalho de escultor desenvolvido por Valle. Paradoxalmente, revela, é por meio da arte que a trajetória do arquiteto que completou 100 anos no último dia 15 mais se aproxima do seu percurso. “Niemeyer é o Picasso da forma. Ele a desdobra”. E em que lugar mora a convergência? “Meu trabalho de escultor contemporâneo tem a ver com essa idéia de deserto presente no repertório dele. Trata-se de uma obra limpa, que parece desprovida de matéria”.

Essa afinidade fez de Valle um dos idealizadores da proposta, encaminhada pelo IA e aprovada pelo Conselho Universitário da Unicamp em 2001, de concessão do título de doutor honoris causa a Niemeyer.

Marco do Valle teve oportunidade de ser interlocutor privilegiado de Niemeyer quando assessorou o prefeito Antonio da Costa Santos, que sonhava em dar a Campinas um teatro à altura da tradição musical da cidade. A máquina pública tratou de engavetar o onírico. Valle revela a seguir os bastidores dessa história e fala da importância de Niemeyer para a cultura brasileira.

Acima, Marco do Valle mostra sua tese de doutorado a Niemeyer em março de 2001, em foto tirada pelo prefeito Antonio da Costa Santos; à direita, Niemeyer esboça em seu escritório o projeto do teatro que seria construído em Campinas, cuja maquete foi feita pelo professor da Unicamp (abaixo) (Foto: Antonio da Costa Santos/Divulgação)Jornal da Unicamp – Qual o maior legado de Oscar Niemeyer?
Marco do Valle – Costumo fazer a seguinte analogia, quase uma brincadeira, para dar uma noção da importância de Oscar Niemeyer para a cultura brasileira: basta pensar que o país tem 500 anos e ele fez 100. Em pelo menos 72 anos deste século de vida sua produção foi ininterrupta. Está certo que ao longo desse período ocorreram muitas coisas que contribuíram para o reconhecimento do conjunto de sua obra, mas outros fatores devem ser colocados na balança, a começar do fato de o país passar a ter uma arquitetura com identidade própria.  A Casa Rosada, por exemplo, sede do governo argentino, é um exemplar de arquitetura eclética. Há ali uma profusão de estilos, nada que remeta a uma escola arquitetônica argentina. Já o Brasil produziu uma identidade com a construção de Brasília. A arquitetura de Niemeyer foi muito importante para a consolidação dessa identidade. Ele, Lucio Costa e muitos outros tinham, evidentemente, uma ambição muito maior. Acreditavam que o país poderia ser detentor de uma cultura desenvolvida. Havia todo um conjunto de produtores desse desenvolvimento cultural.  

JU –Vingaram ou não os ideais desse movimento que uniu várias correntes e era visto por alguns como utópico e por outros como o mais fértil da cultura brasileira contemporânea? 
Marco do Valle – Não deixou de ser uma utopia. Essa identificação do Brasil com uma arquitetura moderna surgiu no bojo da modernização do país. Essas idéias são convergentes, diria que complementares. O país estava se inserindo em novos modelos econômicos. Mas, de certa maneira, os ideais que nortearam esse trabalho foram postos de lado com o golpe militar de 64.  

Os processos que vinham se desdobrando e que mais tarde culminariam na globalização calaram toda uma geração. O próprio Niemeyer, ao tentar fazer o projeto do aeroporto de Brasília, passou a ser desprestigiado pelo governo, decidindo se auto-exilar em 1968 na França. Sua fama já havia ultrapassado fronteiras. Tanto que Charles de Gaulle [presidente da França, 1890-1970] assinou um documento o autorizando a construir em todo o território nacional. O reconhecimento de sua produção foi imediato. Essa estada de Niemeyer na França resulta na difusão dessa arquitetura brasileira internacional, cujo exemplo inicial seria Brasília, nossa maior utopia.  

JU – Que análise o senhor faz dessa inserção internacional?
Valle – Tenho uma hipótese para explicar essa arquitetura que é, ao mesmo tempo, brasileira e internacional. Quando Niemeyer faz a sede do Partido Comunista francês, por exemplo, ele de uma certa maneira transfere para lá a cúpula de Brasília. Ele leva Brasília em sua arquitetura, fundindo-a ao imaginário francês, que é historicamente permeado pelo ideal de liberdade e pela aceitação de outras culturas. 

Já quando produz sua arquitetura na Itália, Niemeyer usa arcos – que foram inventados pelos romanos. Ocorre que seus arcos não são como os concebidos pelos romanos – há sempre um quê brasileiro, trabalha ritmos diferentes como os da Mondadori, em Milão. O mesmo ocorreu em países árabes, sobretudo na construção de mesquitas. O desenho tem a ver com Brasília, mas a tradição árabe se faz presente – até na utilização de elementos como o narguilé. A arquitetura de Niemeyer invariavelmente foi figurativa, carregando, portanto, sempre o componente popular.  

JU – O que restou desse período de utopias e distopias?
Valle – É importante registrar que a resistência à ditadura fez com que o Brasil vivesse um dos momentos mais ricos de sua cultura, que lutou e foi militante. Os desdobramentos levam à abertura. Houve, porém, em minha opinião, uma grande desilusão depois desse processo.

JU – Em que medida?
Valle – O processo de abertura significou a democracia, mas essa democracia não é tão democrática... Faltam as mudanças necessárias para que ela vigore em sua plenitude, a começar pela implementação das reformas nos campos da política e do judiciário. Sem essas transformações, não teremos um país democrático. Ademais, temos ainda desigualdade social e o desmantelamento da educação, que foi iniciado durante a ditadura e até hoje ainda não foi solucionado. O resultado foi catastrófico. 

JU – Niemeyer nunca escondeu suas convicções políticas. Entretanto, sua arquitetura é desideologizada. Como o senhor vê essa separação?
Valle – Niemeyer nunca teve a ilusão de que a arquitetura seria um instrumento de transformação social. Ao mesmo tempo, ele sempre teve uma intensa militância política, inclusive se arriscando, ajudando os companheiros de esquerda. Basta dizer que ele cedeu a própria casa para o [Luiz Carlos] Prestes morar. Sua ligação histórica com o Partido Comunista o impede até hoje de entrar nos Estados Unidos, país que o considera persona non grata. Isso fechou muitas portas para ele.  

Por outro lado, apesar de não ter nenhuma ilusão, acho que Niemeyer tentou contemplar todas as camadas sociais no projeto de Brasília, feito por ele e Lucio Costa. A proposta original acabou descaracterizada por uma série de interferências geradas pela lógica do capital, mas a proposta está lá, em muitos traços.    Niemeyer costuma dizer que a vida é mais importante do que a arquitetura. Ele percebe claramente que a arquitetura não faz revolução.        

JU – Quais seriam as características dessa arquitetura, digamos, militante?
Valle
– O barateamento de construção é uma delas. Ocorre que, quando opta por esse processo de redução de custos, o arquiteto acaba trabalhando para o banco... Niemeyer sempre teve essa consciência.  

JU – A obra de Niemeyer foi objeto de sua tese de doutorado. Na pesquisa, o senhor faz um apanhado histórico da arquitetura brasileira. Com base em seu estudo, o senhor vê algum profissional que ombreie com o arquiteto carioca? Qual seria a marca registrada de sua obra?
Valle – Dada a longevidade da trajetória, é muito difícil encontrar no Brasil ter um arquiteto com tantas obras construídas e idealizadas. Essa história começou com a vinda, em 1936, de Le Corbusier [1887-1965] ao Brasil, a convite de Lucio Costa. Niemeyer aprende muito com o arquiteto suíço. Ao mesmo tempo, ele parte do repertório corbusiano para criar o seu, visto que a arquitetura de Le Corbusier tinha questões abertas. Ou seja: Niemeyer desdobrou e ampliou esses repertórios. Esse é o foco de minha tese. 

JU – O que emergiu desse desdobramento?
Valle
– Uma das características que o diferencia do mestre é a leveza. Enquanto a arquitetura de Le Corbusier seria mais dórica, mais pesada, a arquitetura de Niemeyer seria mais jônica, mais leve. Essa experiência começou em 1936 na construção do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, cujo projeto final se deve à concepção estrutural de Niemeyer. Foi o primeiro prédio do que a gente chama de “pano de vidro” das Américas.

A partir daí, consolida-se a chamada escola de arquitetura carioca, formada, entre outros, por Niemeyer, Lucio Costa, os irmãos Roberto, Afonso Reidy e Jorge Moreira. É bom lembrar que o Rio de Janeiro era a capital federal. 

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