| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 384 - 17 a 31 de dezembro de 2007
Leia nesta edição
Capa
500 patentes
Creme para diabéticos
Patente com marca registrada
Água na agricultura
Lançamento
Niemeyer
Mata Atlântica
Filmes de diamantes
Farinha de arroz
Controle da Dengue
Estação Guanabara
Painel da semana
Teses
Livro da semana
Novo laboratório
Um aluno na batuta
 


7

Niemeyer
Um modernista centenário
desenha utopias no horizonte

ÁLVARO KASSAB

Niemeyer esboça em seu escritório o projeto do teatro que seria construído em CampinasJU – Foi alimentada durante um bom tempo uma suposta rivalidade com a escola paulista de arquitetura. Ela existia de fato? Quais eram – ou são – as diferenças entre as duas escolas?
Valle – A chamada escola paulista está diretamente ligada à construção da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Vilanova Artigas é seu principal nome. Ocorreu um fato curioso: em 1948, Oscar Niemeyer prestou um concurso para ser professor da FAU-USP e foi reprovado. Naquele momento, ele estava no centro do tiroteio entre as tendências. Ambas são muito interessantes. A escola paulista está mais montada nas estruturas e referências construtivas da arquitetura.  

Na verdade, a experimentação da forma desenvolvida por Niemeyer vai dar o élan da arquitetura brasileira como um todo. Predominaram os pilares e as marquises em forma de ameba ou antropomórficas – como, por exemplo, no caso do Ibirapuera, quando vista de cima. A arquitetura mais plástica, carioca, foi vencedora na representação brasileira.

Outros fatores pesaram, mas eu destacaria um em especial, além do fato de Niemeyer carregar essa bandeira durante tantos anos: a questão política. O fato de o projeto de Brasília ter sido escolhido foi crucial nesse contexto. Bons tempos aqueles em que nós tínhamos duas boas escolas de arquitetura... 

JU – Qual é, na sua avaliação, a situação hoje?
Valle
– É bem mais difícil. Temos bons cursos e excelentes profissionais, mas não temos escolas de arquiteturas. Não temos grupos hegemônicos discutindo propostas ou projetos, sejam eles utópicos ou não. Predominam os projetos individuais inspirados em tendências globalizadas pós-modernas.    

JU – A que o senhor atribui esse estado de coisas? Que avaliação o senhor faz da arquitetura pós-moderna?
Valle
– Enquanto no modernismo tivemos a experiência de ter um precursor como Le Corbusier, que era praticamente da segunda geração do movimento, nossa experiência com o pós-moderno é muito pobre. Trata-se de um trabalho muito inferior ao feito por nossos arquitetos modernos. Fomos melhores na passagem para o moderno do que estamos sendo nessa discussão sobre o pós-moderno e seus desdobramentos. 

JU – O senhor endossa a tese de que a experiência bem-sucedida do modernismo acabou interferindo – ou aprisionando – as correntes subseqüentes?
Valle
– Nossa grande experiência foi sem dúvida com o modernismo – e, conseqüentemente, com todas as utopias que o movimento pressupunha, inclusive com relação às cidades e aos problemas urbanísticos. É verdade, por outro lado, que nossas grandes cidades praticamente ignoraram nossos grandes arquitetos. Nossas metrópoles são marcadas pela desigualdade social, por periferias sem-fim e novas centralidades da globalização. Trata-se de um desafio imenso.  

É importante registrar também que, embora nossa adesão ao modernismo tenha sido tardia, a Europa entrou em guerra. Assim, de 1936 a 1945, só se via a arquitetura moderna do Brasil. Os países europeus foram demolidos. O cerco, na verdade, começou antes. A Bauhaus, por exemplo, foi fechada por Hitler em 1932.  

JU – E a produção dos Estados Unidos, não estava no mapa?
Valle
– A primeira exposição sobre a arquitetura brasileira feita no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, em 1943, que retratou inclusive o nosso passado barroco, trazia os seguintes dizeres na capa do catálogo: “os brasileiros, nossos aliados na guerra”. Não foi por acaso, portanto, que nossa arquitetura estava exposta no primeiro museu de arte moderna do mundo: os americanos viam com admiração nossa produção.  

De resto, os americanos estavam tentando entender o que era arte moderna. Apenas a partir dos anos 1950 eles vão ter um trabalho identificado como sendo genuinamente norte-americano, com o expressionismo abstrato, depois a pop art. Só aí que eles passam a ser hegemônicos, mudando o eixo da produção artística mundial.   

JU – Voltando ao empobrecimento da arquitetura mencionado pelo senhor. Em que medida esse movimento se estendeu a outras áreas, sobretudo aquelas relacionadas à criação?
Valle
– Acho que o Brasil vive hoje uma ressaca, depois de tantos anos de luta e de utopia. É como se o processo de globalização penetrasse no conjunto das instâncias, pegasse todas as nossas veias. Acho que isso fez com que desaparecem as grandes questões – do desenvolvimentismo à identidade nacional – vividas intensamente por gerações anteriores.

A não-fronteira, a internet e outros fenômenos jogaram por terra muitos dos conceitos. Não tenho nada contra a internet, vejo muita coisa positiva – nos anos 1980, por exemplo, fiz uma das primeiras comunicações via satélite de artistas brasileiras. Mas a diluição predomina, o empobrecimento no campo das idéias é geral. No caso da arquitetura, ocorre a mesma coisa. Niemeyer ainda está aí, mas fica a indagação: e na sua ausência? 

JU – Niemeyer sempre teve no Estado um cliente potencial. Por outro lado, suas relações com o mercado renderam vários projetos. Como ele conseguiu equilibrar-se?  
Valle
– Curiosamente, ele sempre foi bem nos dois lados (risos). Em relação ao mercado imobiliário, ele vai fazer em São Paulo, na década de 50, vários empreendimentos em parceria com o Banco Nacional de Investimentos [BNI]. Seu escritório na capital paulista foi responsável, entre outras obras, pelos projetos dos edifícios Montreal (1950), Copan (1951), Califórnia (1951), Eiffel (1953) e Triângulo (1955). Data também dessa época, mais exatamente de 1952, o projeto do Edifício Itatiaia, erguido no centro de Campinas. 

É muito curioso você ter um edifício como o Copan, que é uma mega-estrutura, com mais de 5 mil pessoas, funcionando bem. E isso é uma proposta de arquitetura chamada de Super-estrutura. Sua competência quanto ao resultado plástico e funcional é impressionante.  

Ele estava ganhando muito dinheiro com esses projetos. Mas, com o convite para tocar o projeto de Brasília, ele decide abandonar os escritórios de arquitetura e dedicar-se exclusivamente à nova capital. Foi uma atitude muito corajosa. Ele poderia ter continuado nas duas áreas, mas foi trabalhar como funcionário público.  

Na verdade, sua relação com o Estado começa em 1936, no projeto do Ministério da Educação e Saúde e continua na década de 1940 com a experiência de Pampulha, a convite de Juscelino, então prefeito de Belo Horizonte. Depois de Brasília, também sob Juscelino, agora presidente da República, Niemeyer passa a representar a modernidade e a identidade nacional. Não havia um político que não queria ter um projeto seu, até por ambição ou para ser identificado como um novo Juscelino.  

Essas questões simbólicas foram transferidas para a figura de Niemeyer. A maioria das grandes obras do Estado acabou ficando com ele, até mesmo pela aceitação popular. Ademais, ele nunca fez restrição partidária ou ideológica. 

JU – O senhor foi um interlocutor privilegiado de Oscar Niemeyer na gestão do prefeito Antonio da Costa Santos [Toninho]. Como foi essa experiência? 
Valle
– Fui convidado pelo Toninho, que sabia que eu havia defendido a tese sobre a obra de Niemeyer, para auxiliá-lo no projeto de construção de um novo teatro em Campinas, que se chamaria Carlos Gomes. O prefeito pretendia juntar os nomes do maestro e de Niemeyer para consolidar o projeto. Chegamos, eu e Toninho, a ir ao escritório do arquiteto no Rio de Janeiro, para detalhar nosso projeto.  

No dia em que Toninho morreu [o prefeito foi assassinado em 10 de setembro de 2001, no nono mês de sua gestão], eu e ele passamos a manhã discutindo como seria a agenda do Niemeyer em Campinas. Sua visita estava agendada para dois dias depois, uma quarta-feira [Toninho morreu na noite de segunda-feira]. 

A proposta de Toninho era reconstruir no Centro, num terreno atrás da Catedral Metropolitana, onde a cidade teve dois teatros demolidos. No dia em que o prefeito morreu, inclusive, ele fez um desenho para me mostrar suas intenções. Perguntou se eu achava que Niemeyer aceitaria fazer um projeto naquele espaço.  

Respondi que achava difícil por uma simples razão: Niemeyer precisa de um deserto para colocar a sua forma, ele trabalha direto com a superfície. Muitos arquitetos trabalham a forma por dentro, ou seja, o desenho é feito ao contrário, dentro do espaço. Niemeyer, não, ele trabalha a forma externa e interna e sua superfície. Aquela que está fora faz uma forma, e o que está por dentro faz o inverso da forma; ele trabalha com aquele vazio. A forma externa precisa de um deserto um espaço vazio para dominar a paisagem.

JU – Ele aceitou?   
Valle
– Depois da morte do Toninho, voltei ao Rio de Janeiro na companhia da então prefeita Izalene Tiene para submeter a proposta a Niemeyer. A primeira coisa que ele perguntou foi a metragem. Eu disse que era de 130 metros por 36 metros. Ele respondeu: “É, aí não dá”. Embora do ponto de vista teórico eu achasse que ele fosse mesmo falar isso, para mim não deixou de ser uma surpresa. Sua franqueza me desconcertou. 

Sugeri então a ele um novo terreno, ao lado do Palácio dos Azulejos, que tinha 80 metros por 80 metros livres. Ele ponderou que nesse espaço talvez desse para trabalhar. E aceitou o desafio. Enviado ao Rio de Janeiro pela prefeita, acompanhei de perto esse processo. 

Niemeyer não só fez o desenho como o publicou inclusive em um livro de sua autoria, sob o título “Um teatro para Campinas”. O espaço tinha forma de pirâmide e capacidade para 1,5 mil lugares. 

De minha parte, fiz uma maquete desse espaço, sugerindo a ele que apresentasse uma proposta do valor. Descobri, admirado, que ele cobra a mesma tabela do IAB [Instituto de Arquitetos do Brasil]. Tive uma aula de honestidade e integridade. Voltei para Campinas com a proposta. 

JU – E no que deu?
Valle
– Não fizeram nada. 

Voltar para página 6

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2007 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP