| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 403 - 4 a 10 de agosto de 2008
Leia nesta edição
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Arte: substantivo feminino

LUIZ SUGIMOTO

A historiadora Luana Saturnino Tvardovskas: corpo e sexualidade em discussão (Fotos: Antoninho Perri/Divulgação)Um breve artigo de Heloísa Buarque de Hollanda, pedindo atenção para a produção de artistas brasileiras que mantêm um diálogo com a crítica cultural feminista, convenceu a historiadora Luana Saturnino Tvardovskas a elegê-las como tema da pesquisa de mestrado intitulada “Figurações feministas na arte contemporânea”. “Já tinha estudado as artistas visuais na graduação e, ao fazer um levantamento mais apurado, percebi em muitas delas este diálogo, que se dá principalmente através do corpo e da sexualidade”, diz a autora, que acaba de apresentar seu trabalho no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

As eleitas por Luana Saturnino são a carioca Márcia X., artista performática que recorreu ao lúdico e ao infantil para uma crítica feminista irreverente; a mineira Rosângela Rennó, reconhecida nacional e internacionalmente por suas “refotografias” de fotografias abandonadas; e a fotógrafa londrinense Fernanda Magalhães que, como tal, promove uma discussão sobre o corpo da mulher gorda. “Mesmo que essas artistas não se considerem feministas, percebo que o feminismo deixou reflexões que transbordam em sua arte”.

São mensagens difíceis de captar, segundo a autora, que procurou relacionar as performances e o impacto das imagens com as trajetórias e declarações das próprias artistas, e também com as críticas sobre suas obras. “É minha percepção que aponta as referências que podem ser lidas como feministas. Mas, sem os olhos informados, eu poderia ler qualquer coisa. Quando uma mulher lida com a experiência do corpo e a sexualidade, traz toda uma crítica cultural, nunca é qualquer coisa”.

A professora Luzia Margareth Rago, que orientou a dissertação de mestrado, observa que existem poucos estudos sobre a presença das mulheres artistas no Brasil. “O trabalho de Luana é inovador por que não se limita a mostrar mulheres com sua produção competente, fazendo um recorte sobre aquelas que, através da arte, visam uma crítica cultural feminista. O trabalho se situa numa posição feminista, mas não do feminismo institucionalizado tão voltado a atingir os homens”.

Classificações Científicas da Obesidade, exposição de Fernanda Magalhães realizada em 2000: crítica ao poder médico e ao IMCO corpo gordo

Fernanda Magalhães é professora de fotografia na Universidade Estadual de Londrina (UEL) e está terminando o doutorado no Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Desde 1993, vem pensando a sua própria experiência como um corpo de mulher gorda. “Em seus primeiros trabalhos, a artista se mostra sozinha no apartamento e o tom é de sofrimento e solidão, da difícil relação com o corpo, da rejeição a si mesma”, diz Luana Saturnino.

De fato, acrescenta a historiadora, Fernanda Magalhães recebeu em casa uma formação artística e muniu-se de uma subjetividade na qual se apega e com a qual constrói um mundo e uma vida estilizada. “Ela diz que o redondo é a forma perfeita, com lindas curvas. Virou do avesso a situação da pessoa obesa deprimida, abandonada e mal-amada. Tem o dom de conectar o trabalho artístico com a própria vivência, manipulando fotografias e colando nelas recortes de jornais e receitas culinárias”.

Foi a partir da experiência pessoal que Fernanda idealizou um projeto para investigar como é a representação da mulher gorda nua na fotografia. “Ela quis saber quais são as referências: se o corpo gordo é investido de desejo ou se justifica toda esta rejeição. Com seu projeto, ganhou uma bolsa da Funarte e envolveu-se fortemente com a questão da obesidade, denunciando também a ditadura da beleza”.

Em “Gorda 09”, Fernanda Magalhães cola na fotografia do próprio corpo a cabeça da Vênus de Willendorf, estatueta que representaria a deusa ancestral da fertilidade. Cola também um escrito: “Lista de pedidos aos aliados não-gordos. O primeiro: ser vista como um ser humano sexual”. “A artista denuncia que perdemos a percepção da obesa como pessoa erotizada”.

Luana Saturnino observa que a sociedade contemporânea fez do ódio à gordura uma obsessão. “Como diz Denise Sant’Anna, os gordos são engordurados, lentos, não passam na roleta, não cabem no espaço. Ao que Fernanda acrescenta: queremos desengordurar o mundo”.

A instalação ‘Classificações Científicas da Obesidade’, na opinião da autora, é uma crítica ácida ao poder médico e ao cálculo do índice de massa corpórea (IMC). Fernanda Magalhães recortou o interior de fotografias de obesos em tamanho natural – e também de alguns corpos magros –, deixando apenas os contornos. “As peças que denotam pessoas enormes, suspensas por fios transparentes, rodam sinuosas como num baile, re-significando esses corpos”.

Ação de Graças, performance/instalação de Márcia X., em 2002: cotidiano da mulher e pantufas de coelhinho como inspiraçãoOs jogos lúdicos

Márcia Pinheiro de Oliveira, a Márcia X., expoente da arte contemporânea no país, faleceu de câncer em 2005, aos 45 anos. Luana Saturnino conta que a primeira exposição da artista, realizada juntamente com Aimberê César em 1988, não tinha qualquer obra exposta. “Durante o vernissage, os dois artistas fotografaram os próprios convidados e foi com aquelas imagens que montaram a exposição, ironicamente chamada de ‘Ícones do Gênero Humano’”.

Entretanto, segundo a autora da pesquisa, seria o uso de brinquedos infantis e de objetos eróticos e religiosos que marcaria as performances e instalações de Márcia X. “Ao mesmo tempo em que brincava com o gênero, ela abordava a sexualidade de forma agressiva. Na série ‘Fábrica Fallus’, a artista produziu uma quantidade exaustiva de falos de sexshop ornados com pompons, medalhinhas e outros adereços populares. Minha leitura é de uma crítica à banalização do desejo na atualidade”.

Em “Lovely Babies”, Márcia X., depois de performance insinuante com um bonequinho dentro da calcinha, soltava outros bonecos que engatinhavam pelo chão, até que um montava sobre o outro, com o movimento mecânico simulando uma relação sexual. Outra performance que derivou da anterior é “Os Kaminhas Sutrinhas”, que traz bonecos unidos por fios e acionados por um pedal pelo próprio espectador, quando simulam o ato sexual ao som da trilha da Disneylândia.

“Márcia X. oferece uma visão engraçada de como as coisas da infância e o erotismo se misturam. Podemos assimilá-la como ironia aos ocidentais que têm o sexo como perversão, ao passo que os orientais atribuem a ele a função de gerar a vida; ou ainda como denúncia do nível de erotização da criança – que suportamos apenas até certo ponto. Ela embaralha os códigos, expondo elementos que não costumamos ver juntos”, observa Luana Saturnino.

“Desenhando com terços” é uma performance em que Márcia X., unindo dois rosários, faz desenhos de pênis cobrindo todo o chão da sala. A obra foi censurada pelo Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB), no Rio, quando a artista já havia falecido, por pressão da Opus Christi. “Na verdade, a artista cria um clima sagrado e se movimenta de forma delicada, sem nunca pisar nos desenhos. A imagem remete a um ritual suave, apesar da ironia à oposição ao aborto e a outros questionamentos da Igreja sobre a sexualidade”.

A autora do estudo lembra que Márcia X. aborda outras obsessões femininas, como a culinária e os cuidados do lar, envoltas em um aspecto de transe ritualístico. Em “Ação de Graças”, a artista está deitada em posição ginecológica, com galinhas mortas cobertas de pérolas atadas aos seus pés. “Se é o frango depenado que faz parte do cotidiano da mulher tradicional na cozinha, a artista transforma aquela imagem. Ela disse que se inspirou no hábito de se calçar pantufas de coelhinho, que achava muito estranho”.

Márcia X. conseguiu um efeito marcante em “Pancake”, ao despejar latões de leite condensado sobre si, deformando a própria imagem, para em seguida cobrir-se de confeitos coloridos. “Para o público, é uma imagem ao mesmo tempo fascinante e asquerosa – do doce que todos disputam na festa infantil e do excesso de melado que repugna. ‘Pancake’ remete à maquiagem feminina, feita para embelezar, mas que quando passa do limite, deforma”.

Obra da série Cicatriz (1966-2003), de Rosângela Rennó: imagens resgatadas no Museu Penitenciário do CarandiruIdentidades cristalizadas

Rosângla Rennó é a artista que permaneceu mais incógnita diante das análises de Luana Saturnino, por não se deixar prender pelo eixo central da sexualidade. “Sua crítica envolve a idéia de identidades fixas e como a fotografia opera na cristalização das identidades. É uma artista que faz leituras muito afeitas com o feminismo, embora nem todas as obras tenham este caráter”.

No início da carreira, Rennó recorreu a álbuns de família para refotografar as fotografias e manipulá-las até revelar aspectos que não eram percebidos. Depois, passou a colecionar álbuns de terceiros e viajou o mundo atrás de relíquias em ateliês, museus e presídios, acabando por criar o “Arquivo Universal”, um projeto de muitos anos que virou livro contendo uma série de fotografias antigas re-significadas.

“Rosângela Rennó leva a imagem além do que os olhos podem ver. Diz que o mundo não precisa de mais fotografias e sim de enxergar as que já existem”, afirma a autora, dando o exemplo de “Mulheres iluminadas”, obra na qual a artista aparece com a irmã em uma praia. “Ambas são apagadas na contraluz e transformam-se nas mulheres iluminadas sem luz, num efeito que insinua o limite da visibilidade da mulher”.

A obsessão pelo álbum de casamento é o tema de “Afinidades eletivas”, em que a artista dispõe fotografias de casais dentro de um frasco com óleo mineral. “O efeito é dos mais interessantes, pois as imagens vão se misturando e não se sabe mais quem está com quem. A impressão que fica é de que as pessoas se casam apenas para produzir o álbum, ou então de que a experiência do casamento só passa a existir se for fotografada”.

Uma série marcante é “Cicatriz”, criada a partir de 1.800 fotografias de presidiários com suas tatuagens, que Rennó resgatou no Museu Penitenciário do Carandiru. “Elas foram tiradas pelo médico psiquiatra José de Morais Mello, provavelmente entre as décadas de 1910 e 40, com o propósito de controle e vigilância da população carcerária. Ao refotografar as imagens, a artista poetiza sobre a experiência dos corpos enjaulados”.

Durante muito tempo, Rennó recolheu notícias de jornal sobre outras Rosângelas: a assassina, a prostituta, a deputada, a vítima do Palace 2, a evangélica, a estuprada, a presidiária marcada para morrer, aquela que comprou um noivo pelo correio. Juntou histórias de 133 Rosângelas e montou uma vídeo-instalação. “Ela executa os papéis e joga com a multiplicidade de personagens, questionando inclusive a idéia do nome próprio”.

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