| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 403 - 4 a 10 de agosto de 2008
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Professor do Instituto de Economia analisa o papel que o Brasil
deve assumir depois das turbulências
geradas pela crise nos Estados Unidos

O mundo multipolar entra no mapa

MANUEL ALVES FILHO

O professor Ricardo Carneiro: "Trata-se de uma crise de muita gravidade, cujos reflexos ainda não podem ser previstos com absoluta segurança" (Fotos: Antoninho Perri)As mudanças em curso no cenário econômico internacional deverão culminar com a constituição de um mundo multipolar, que oferecerá oportunidades e riscos aos seus integrantes. No caso do Brasil, o aproveitamento das chances e a superação das adversidades dependerão da adoção de uma política econômica mais ousada, totalmente diferente da que vem sendo colocada em prática nos últimos 25 anos. “Temos que construir uma estratégia que nos permita usar parte dos recursos que podem advir da produção e exportação de alimentos, petróleo e biocombustíveis para financiar o nosso desenvolvimento. Não podemos cair na cilada de acreditar que é possível desenvolver nossa economia em cima da exploração dos recursos naturais”, alerta Ricardo Carneiro, professor do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. Membro do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) do IE, o docente tem feito, juntamente com seus pares, reflexões sobre a atual crise da globalização e suas possíveis conseqüências. Na entrevista que segue, Carneiro fala ao Jornal da Unicamp acerca do tema, elegendo o Brasil como objeto privilegiado de análise.

Jornal da Unicamp – Que reflexões o senhor e o Cecon têm feito acerca da crise econômica internacional?
Ricardo Carneiro – O Cecon tem feito ao longo dos últimos anos uma reflexão importante sobre a economia brasileira. Fizemos várias pesquisas importantes sobre o tema. Atualmente, temos produzido relatórios de pesquisa, textos para discussão e artigos que são fruto de nossas investigações. Ultimamente, temos acompanhado com muito cuidado as transformações que estão ocorrendo no mundo, e os impactos dessas mudanças no Brasil. Acompanhamos isso por meio de reuniões internas e também através de várias redes internacionais. Uma delas tem particular importância, que é a rede de ‘Think Tanks’ da Unctad [Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento]. Ela reúne cerca de 60 instituições, tanto governamentais quanto não-governamentais. Uma das questões que nós temos discutido é exatamente qual o significado dessas mudanças. Para onde está indo a economia internacional e, nesse contexto, para onde está indo o Brasil.

A professora Fumiko Takasu:com o com o envolvimento de não-de não-descendentesJU – Antes de falar de para onde vamos, o senhor poderia dizer em que ponto dessas mudanças estamos?
Carneiro – Nós estamos diante de mudanças muito profundas no cenário internacional. Essas mudanças estão aparecendo na forma de turbulências nos mercados financeiros e de commodities. Um exemplo é a flutuação aguda dos preços de alimentos e energia. O que está por trás disso são mudanças mais profundas do ponto de vista da economia norte-americana e das relações dessa economia com o resto do mundo. De certa forma, nós estamos assistindo à crise da globalização. Trata-se da primeira grande crise da globalização, visto que ela tem caráter sistêmico. Trata-se de uma crise de muita gravidade, cujos reflexos ainda não podem ser previstos com absoluta segurança.

JU – Como o senhor define essa crise da globalização?
Carneiro – A crise da globalização significa, de um lado, a crise de um tipo de capitalismo, que é aquele comandado pelas finanças. As finanças tiveram uma importância muito grande no que se convencionou chamar de ciclo de preços de ativos, que inclui bolsas de valores, mercado imobiliário etc. Os Estados Unidos foram muito longe nisso. E é justamente lá onde as coisas acontecem com maior gravidade. Trata-se de uma crise que levará tempo para ser digerida, dado que ela atingiu o coração do sistema financeiro e monetário, que é o sistema bancário. Hoje existe um problema grande de insolvência no mercado de hipotecas, que é um setor muito importante para os Estados Unidos. Essa crise começou num dos segmentos desse mercado, mas depois se espalhou. Os bancos apresentaram e ainda estão apresentando perdas muito pesadas.

Isso significa que vai ser necessária uma intervenção significativa do governo para salvar essas instituições. Se forem salvas, essas instituições provavelmente terão uma postura de maior aversão ao risco, ao contrário do que tiveram no passado. Como a economia americana funciona muito na base do crédito e do consumo, provavelmente ela vai crescer bem menos do que cresceu num passado recente. Como essa economia é central, ou seja, o mundo todo depende do crescimento dela, isso certamente terá um impacto significativo no conjunto dos demais países.

JU – Esta crise afetará a todos os países indistintamente?
Carneiro – Para entender o desdobramento da crise, é preciso compreender também como as regiões reagirão a ela. A Europa, por exemplo, é a segunda região mais importante do mundo, depois dos Estados Unidos. Ela já vinha crescendo pouco, e provavelmente sofrerá um impacto significativo por conta da desaceleração da economia norte-americana. A principal economia européia é a Alemanha, que depende dos Estados Unidos para as suas exportações. Assim, através da Alemanha, haverá um impacto no restante da Europa. Haverá impacto também no Japão, que depende igualmente dos Estados Unidos. Mas provavelmente não terá um impacto tão importante na China e em sua área de influência. Ao longo dos últimos 20 anos, foi constituído um terceiro pólo da economia mundial, que está localizado na Ásia, aí incluído China e quem sabe no futuro, o Japão. Essa região deverá ter mais capacidade de resistência, por várias razões. Entre elas está o seu nível de integração.

JU – Em termos econômicos, deverá haver maior correlação de forças entre os países, então?
Carneiro – Sim, a crise pode produzir uma conformação diferente das relações internacionais. Dado ao surgimento desse terceiro pólo e ao enfraquecimento do dólar, o que deverá surgir a partir do aprofundamento dessa crise é uma economia internacional multipolar. Isso não significa que os Estados Unidos vão perder radicalmente a sua importância, mas haverá uma divisão de forças. Tanto o PIB da Ásia em desenvolvimento mais Japão quanto o da Europa já estão praticamente iguais aos dos Estados Unidos. Assim, com a provável adoção de uma posição mais defensiva por parte da economia norte-americana, visto que o centro da crise está lá, ficará facilitada a conformação desse mundo multipolar do ponto de vista econômico. Essa questão é importante para entender o desdobramento da crise. O dólar vai deixar de ser importante? Não. Mas provavelmente vai dividir importância com o euro e com alguma moeda da Ásia, já existente ou a ser criada.

JU – E qual deve ser a principal característica desse mundo multipolar?
Carneiro – A experiência histórica mostra que o mundo multipolar é mais instável do que o unipolar. O mundo unipolar é muito organizado pela potência-chave e pela moeda-chave. No mundo multipolar há mais instabilidade necessariamente. Isso é ruim ou é bom? Eu diria que há oportunidade e há riscos.

JU – No caso do Brasil, haverá mais oportunidades ou riscos?
Carneiro – No caso do Brasil, nós teremos que definir como vamos nos inserir nesse processo. A nossa posição inicial não é estrategicamente boa, por vários motivos. Primeiro, porque o peso da economia da América do Sul é muito pequeno. A América do Sul como um todo responde por apenas 4% do PIB mundial, o Brasil por 2%. A Ásia em desenvolvimento mais Japão, Europa e Estados Unidos respondem por 25% cada um. Além disso, nosso fluxo de comércio também não tem uma importância significativa. Então, nossa importância estratégica é muito menor. Qual o primeiro eixo de expansão dinâmico do mundo contemporâneo? É o eixo que ligou os Estados Unidos à China e à Ásia. Os Estados Unidos deslocaram parte da sua indústria para lá, e ocorreu uma ligação importante. Penso que a Ásia tem alguma capacidade de reagir, ao contrário da Europa. A Europa não desabará, mas crescerá significativamente menos. Assim, nós estamos dependendo do crescimento da Ásia e de sua demanda por commodities. Além de não sermos tão importantes assim, nós vamos enfrentar uma desaceleração significativa do comércio internacional. Dito de outro modo, vamos enfrentar daqui para frente um cenário muito mais desfavorável do que prevaleceu nos últimos cinco ou seis anos.

JU – Ou seja, teremos mais riscos que oportunidades.
Carneiro – Teremos algumas oportunidades também. No mundo multipolar, as hegemonias são quebradas, e aí fica mais fácil de negociar. Mas é preciso ter estratégias, pois o cenário econômico será desfavorável. Boa parte do crescimento que a gente tem assistido de 2004 para cá veio quase que por gravidade. Nós crescemos apesar de termos feito políticas equivocadas, como adoção de taxas excessivamente elevadas de juros e moeda valorizada. Agora não vai ser mais possível fazer isso. Nós precisaremos de estratégias de inserção muito mais ousadas. Quais são as vantagens e desvantagens do Brasil? Em relação às vantagens, nós teremos, no período de dez anos aproximadamente, uma permanência em níveis altos, embora não nos patamares atuais, dos preços das commodities. O Brasil é um grande produtor de alimentos e pode ser um grande produtor de biocombustíveis. Também temos uma reserva estimada de 80 bilhões de barris de petróleo. Isso constitui, sem dúvida, uma oportunidade.

Ao mesmo tempo, constitui também um desafio grande. Um país com 200 milhões de habitantes não pode fazer como os Emirados Árabes, que vivem da renda do petróleo. Nós teremos que usar os recursos vindos da produção de alimentos, biocombustíveis e petróleo para manter a economia crescendo e diversificando. Vamos ter que fazer uso racional e planejado desse dinheiro. Isso pode parecer algo trivial, mas é uma questão absolutamente decisiva. Se não tivermos uma estratégia para usar os recursos, eles poderão se dissipar. Também poderemos ter a chamada ‘doença holandesa’, caracterizada pela valorização da moeda e uso das divisas para importar, o que leva ao enfraquecimento da indústria. Penso que o desafio central é a resolução dessas questões.

JU – Nesse aspecto, quais seriam as medidas de curto, médio e longo prazos?
Carneiro – Para chegar ao médio e longo prazo, vamos ter que administrar uma situação desfavorável, em boa medida criada pela atuação do Banco Central nos últimos anos. Temos uma situação na qual a nossa moeda está muito valorizada e nossa taxa de juros, muito alta. Vamos ter que adequar isso ao novo cenário, que é de desaceleração e que vai criar oportunidades e riscos. Vamos ter que escolher, de certa forma, entre inflação maior ou crise externa. Nós temos feito uma política muito convencional, que se resume em subir a taxa de juros para deter a inflação. É possível, com essa estratégia, que a gente consiga ter uma taxa de inflação menor. Mas o custo disso é a desaceleração do nosso crescimento e algo pior ainda: tornar a moeda ainda mais apreciada num momento em que o mundo está desacelerando. Ou seja, vamos abrir nossas portas para uma avalanche de importações e a atração de capitais de curto prazo. Essa seria a pior solução. Ao mesmo tempo, se nada fizermos, correremos o risco de ter uma inflação muito elevada. Temos que lidar com esse dilema tendo em vista o cenário conjuntural macroeconômico. Não vai dar para fazer política convencional.

JU – Essa percepção está presente apenas na academia ou há no governo quem já esteja refletindo sobre essas questões?
Carneiro – Em algumas áreas do governo, essas questões já estão sendo percebidas. Há debates sobre o que fazer com a questão do petróleo, por exemplo. De como serão utilizados os recursos gerados por ele. Quando os poços de petróleo estiverem produzindo, a estimativa é que representem um acréscimo anual de 10% do PIB, do qual 5% ficariam com o Estado, por meio de tributação. Esses recursos seriam extremamente importantes para constituir um fundo para financiar o desenvolvimento brasileiro. Há discussões no sentido de como gerir os recursos do petróleo. De como não deixar que isso vire aumento de importações. Há exemplos de como isso foi feito de maneira conseqüente no mundo.

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