| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 366 - 6 a 12 de agosto de 2007
Leia nesta edição
Capa
Cartas
Biota
Energia "Plano B"
100 milhões para o etanol
Aminoácido ajuda tratamento de câncer
DTM e fator genético
UPA
Painel da Semana
Teses
Oxigenação e malária
Midialogia: programa
de auditório
Ficção: Eduardo Guimarães
 


12

Estréia mordaz

ÁLVARO KASSAB

O professor, lingüista e poeta Eduardo Guimarães, autor de O Homem que tinha Dentes Demais: "O personagem indicou a direção"   (Foto: Antoninho Perri)Incentivado por uma velha amiga dos tempos de faculdade e de passeatas contra a ditadura, um jornalista decide submeter-se a um tratamento com células tronco. Objetivo: ter de volta os dentes perdidos em razão de “anos e anos de muito descuido próprio e incúria de alguns dentistas...e de sua incapacidade de ficar seguindo pequenos preceitos”. Aquilo porém que parecia no início uma bem-sucedida experiência científica de vanguarda, logo vira pesadelo: os dentes começam a brotar sem cessar na boca do paciente. Este é o eixo central do livro O Homem que tinha Dentes Demais, obra de estréia na ficção do lingüista e poeta Eduardo Guimarães, professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). O lançamento do livro ocorre no próximo dia 8 (quarta-feira), às 19 horas, na livraria Fnac (Shopping D. Pedro).

Guimarães faz do leitor seu refém ao adotar uma narrativa ágil e envolvente, fugindo do caricato. O drama vivenciado pelo protagonista se desenrola num cenário marcado por referências históricas, conflitos existenciais e questionamentos (e expectativas) sobre o papel da ciência contemporânea. Neste último caso, o autor habilmente introduz na trama um elemento que, conforme revela o próprio Guimarães na entrevista desta página, sempre despertou sua atenção: o papel do duplo na literatura. No caso de O Homem que tinha Dentes Demais, um duplo que mergulha não apenas no inferno causado pela deformidade física, mas também nas contradições da condição humana e do Brasil urbano moderno.

Jornal da Unicamp – Sua obra literária, até a publicação de O Homem que tinha Dentes Demais, estava circunscrita à poesia e ao seu trabalho como lingüista. O que levou o senhor a enveredar pela ficção?

Eduardo Guimarães – A ficção faz parte da minha vida há muito tempo. Sempre foi uma coisa que me tocou muito. No caso deste livro, por alguma razão, eu achei que tinha em mãos uma história que valia a pena terminar e tornar pública. Não foi uma experiência que irrompeu de repente. Trata-se, na verdade, de uma vontade bastante antiga, que só agora estou concretizando. Espero, inclusive, poder realizá-la novamente.

JU – Seu livro é pontuado por questões recorrentes na academia, entre as quais o avanço da ciência e suas conseqüências, que não por acaso permeia toda a narrativa. A escolha desse mote foi deliberada?

Guimarães – Pesaram vários fatores. Um deles, me parece, deve-se ao fato de eu trabalhar na universidade. Isso me toca muito. Ademais, ao lado de meu trabalho de pesquisa em semântica, tenho um trabalho extenso, diria que até permanente, que trata do problema da representação da ciência na sociedade, envolvendo inclusive o trabalho de divulgação científica. Caso eu possa chamar isso de motivação, esses são alguns dos elementos que podem ter contribuído para a construção do livro.

Por outro lado, tem uma questão que sempre me chamou muito a atenção, que é o problema da clonagem. Desde que tomei conhecimento das primeiras pesquisas na área, me intrigou muito essa idéia de que você pode “fazer” um igual. Curiosamente, na literatura, o duplo está muito presente. Nas obras do Dostoievski, por exemplo, tem sempre o personagem e seu duplo. Corro o risco de ser contraditado pela crítica, mas na literatura brasileira recente, Milton Hatoum usa esse recurso em Dois irmãos e em Cinzas do Norte. A narrativa funciona diretamente nessa relação. Os exemplos são fartos também na obra machadiana, como no caso dos personagens Bentinho e Escobar. Enfim, o duplo é recorrente na literatura.

JU – Como foi a confecção da obra? Sua arquitetura foi planejada?

Guimarães – Não foi exatamente tudo planejado. A construção dos personagens foi tomando corpo no processo da escrita. O protagonista, por exemplo, passou a se movimentar dentro desse universo. Acho que funcionou. Há um questionamento sobre ele mesmo, sobre o seu destino. Há um movimento que passa do envolvimento do personagem com essa questão da ciência, mas isso tem a ver, o tempo todo, com uma certa incapacidade do protagonista em tomar decisões. Ele não consegue se colocar efetivamente no mundo em que vive.

Na verdade, embora a questão da ciência de vanguarda esteja presente, e ligada ao drama do personagem, outros personagens que convivem com o protagonista percorrem um caminho oposto, beneficiando-se da tecnologia. Ou seja, não se trata de condenar ou não a ciência ou uma determinada prática social, mas sim de criar condições para refletir sobre elas.

JU– Quais seriam esses meios de reflexão?

Guimarães – O curioso é que houve um momento em que o personagem, no que diz respeito ao seu dilema, escolheu o seu destino. Eu me vi então diante de um personagem que havia feito a sua escolha. Você tem que escrever esse desfecho. Trata-se de uma experiência muito interessante, de resto muito presente na literatura. Mesmo que o escritor tenha o seu trabalho e seu domínio, invariavelmente há uma parte em que ele vai sendo tomado pelas coisas sobre as quais ele resolve escrever. Aquilo acaba determinando a direção, você passa a ter de escolher outras coisas para dar conta daquilo que o próprio personagem indicou.

JU – Numa certa altura, o personagem principal abre mão de tudo e dá uma guinada em sua vida. O que significa essa reviravolta no conjunto da obra?

Guimarães – Isso faz parte de um contexto em que o personagem determina o que eu preciso dizer dele. Curiosamente, parece que o personagem termina mais feliz do que quando ele começa, se é que podemos afirmar isso. Trata-se de outra questão interessante: o que faz uma pessoa ser feliz? De uma certa maneira, o personagem não está necessariamente tomado num certo movimento dominante da prática social. Temos hoje motivações externas enormes, sobretudo aquelas que são mais comumente chamadas de relações de consumo.

O que não significa que o protagonista se tenha posto fora dessa sociedade – até porque não dá para ficar fora –, mesmo estando à margem dela. São elementos que estão aí.

JU – O livro, mesmo que subliminarmente, toca em temas caros à geração que vivenciou as últimas décadas no Brasil, sobretudo àquela referente à ditadura. Por que esse recorte histórico?

Guimarães - Embora a história seja quase um relato de um absurdo, ao mesmo tempo houve a preocupação de colocar isso dentro de um quadro da história recente brasileira. Talvez seja uma das coisas com as quais eu tenha lidado um pouco mais conscientemente. Até o quadro final, você tem um percurso histórico, do fim da ditadura até o momento que pode tanto ser hoje como o depois de hoje. A narrativa não traz essa datação. A ciência entra como balizador. Dessa maneira, tento desenhar um certo quadro do modo de vida urbano predominante hoje no Brasil.

É claro que a ditadura brasileira não explica todos os problemas do país. De lá para cá, vivenciamos condições sociais e históricas as mais diversas, tanto interna como externamente. A minha geração viveu isso intensamente. No começo da ditadura, por exemplo, eu era estudante; depois, no final, eu já era professor. Trata-se, portanto, de uma experiência que faz parte de toda uma geração. Espero que eu tenha dado um quadro do período, embora não fale diretamente do assunto. As referências surgem aqui e ali, ao longo da obra.

JU– A literatura, não raro, dialoga como a deformidade. Isso também pesou na construção do personagem? Em que medida, no livro, ela funciona como uma metáfora das coisas da alma?

Guimarães – A deformidade, na narrativa literária, me chama muito a atenção. Foi sempre assim. Há, por exemplo, uma passagem num livro de Machado de Assis em que o personagem diz de uma moça muito bonita: “por que coxa, se bela; por que bela, se coxa?”. É uma coisa pequena, mas o humor do Machado a transforma em grande. Esses personagens, e o fascínio exercido por eles, sempre me chamaram a atenção.

JU – Qual é, em sua opinião, a diferença entre a poesia e a ficção?

Guimarães – É difícil dizer. A poesia tem uma condensação que, sob certo sentido, nos envolve mais diretamente. Já a narrativa – essa coisa da história, de contar um caso de uma maneira mais elaborada, para não cair no anedótico e pontual – às vezes pode ser mais complexa. São duas experiências diferentes, tanto para ler como para escrever.

Na poesia, você pode fazer algumas coisas com a frase; pode até não ter frase, pelo menos na maneira que a gente conhece hoje. Dá até para subtrair certas estruturas sintáticas. Já na narrativa, isso é mais complicado, você não pode deixar de ter a frase. Pode até ter um romancista de vanguarda que ache que isso seja factível; acho difícil, já que você não teria uma narrativa. É até possível remover o tempo, fazendo uma narrativa que seja exclusivamente descritiva, mas você precisa da frase.

JU – Quando ocorreu seu primeiro contato com a literatura? Quais são suas maiores influências?

Guimarães – Teve início no final da minha infância. Sempre li e escrevi muito. Quando estudante, reunia escritores para publicar poesia em jornal, livretos etc. Sempre foi uma atividade muito presente. Em paralelo, sempre me dediquei muito à leitura. Quando terminei o antigo ginásio, por exemplo, já havia lido toda a obra do José de Alencar que havia em minha casa. Meu pai era professor português e tinha uma biblioteca com coisas bastante interessantes.

Vários autores tiveram impacto significativo para mim, mas um que me influenciou muito foi Machado de Assis, sobretudo quando eu li Memórias Póstumas de Brás Cubas. O jeito de dizer as coisas do Machado me colocou num estado de atenção. Levei sete meses para ler Memória ... .O livro é composto por capítulos curtos, mas me detinha em cada um deles com muita atenção. Já O Guarani, do José de Alencar, só para comparar, li em um dia. São experiências muito interessantes.

Depois, já na faculdade de Letras, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto me movimentaram muito interiormente.

JU – Que avaliação o senhor faz da literatura produzida hoje no Brasil?

Guimarães – É difícil fazer uma avaliação isenta, mesmo porque sempre temos uma tendência a analisar coisas que estão saindo, e este exercício é complicado. Passei por um momento em que não conseguia me envolver com o que estava lendo, e estou falando de obras bem mais recentes, que vieram depois do [Antonio] Callado, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, autores que eu considero extraordinários.

Recentemente, entretanto, li algumas obras excelentes. Uma delas é um romance do Modesto Carone, Resumo de Ana. Gostei muito também do penúltimo romance do Domingos Pellegrini, Terra Vermelha, que é um tratado da amizade, questão sempre muito complicada. Impressionou-me muito, também, a obra de Milton Hatoum. Foi além da minha expectativa.

Acho que a leitura não pode apenas dar prazer, ela precisa também incomodar. Porém, mesmo que ela esteja incomodando, ela precisa dar uma satisfação de envolvimento. Isso não significa facilitação. Você pode se envolver fortemente lendo Proust ou Clarice Lispector, para citar dois autores considerados “difíceis”.

Já na poesia, não tenho identificado grandes nomes, talvez até por falta de uma leitura mais freqüente. Há também aí um problema de mercado muito complicado. Há um conjunto de poetas que, por alguma razão, tem um lugar cativo na mídia. Seguramente, portanto, você pode ter outros poetas cujas obras não tenham sido devidamente difundidas. Particularmente, dessa nova geração, gosto da obra de Régis Bonvicino.

Enfim, acho que a literatura brasileira está diante de certas escolhas que precisam ser feitas, em razão das condições atuais da produção literária, as quais afetam fortemente essa produção. Acho que ela tem conseguido uma boa qualidade.

JU – Na sua opinião, a internet é difusão ou profusão?

Guimarães – Há uma grande profusão, sem dúvida, mas isso pode produzir qualidade. Não existe qualidade sem quantidade. Nessa massa de informações exposta na rede, teremos coisas ruins e outras de qualidade média, que vão sustentar uma determinada prática. Isso vai resultar em um patamar mais elevado. O que não se pode fazer é mudar certos elementos do fazer literário.

Evidentemente que a internet tem um problema suplementar, que é justamente esse excesso. Vejo, entretanto, que a sociedade vai aprendendo a lidar com isso, o que acaba resultando num certo tipo de escolha e de valoração. É como se tivéssemos um escore dentro da quantidade. Isso é natural. Você tem em mãos um novo instrumento tecnológico, específico dessa época, como já ocorreu em outro períodos.

Quando o mundo passou a ter energia em rede, por exemplo, tudo mudou – os hábitos sociais, a indústria, os meios de produção. Agora, temos outro tipo de tecnologia, e tudo isso vai mudar novamente.

JU – Inclusive a linguagem?

Guimarães – Acho que sim. A linguagem vai mudar em dois sentidos: na discursividade e, eventualmente, na própria estrutura da língua. É inclusive normal que mude. Quando mudam as condições de funcionamento da sociedade, algo sempre é alterado. Não há língua que permaneça sempre a mesma. Não há língua no mundo hoje que seja a mesma de 500 anos atrás. E nem teria condições de ter.

Serviço

Livro: O Homem que tinha Dentes Demais

Autor: Eduardo Guimarães

Páginas: 100

Editora: Pontes Editores

Preço: R$ 15

Lançamento: Dia 8, às 19h00, na Fnac (Shopping D. Pedro)

SALA DE IMPRENSA - © 1994-2007 Universidade Estadual de Campinas / Assessoria de Imprensa
E-mail: imprensa@unicamp.br - Cidade Universitária "Zeferino Vaz" Barão Geraldo - Campinas - SP