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“Ainda não podemos afirmar que
a esquerda chegou ao poder”

 

CLAYTON LEVY

Autor de 14 livros sobre a realidade sociopolítica do país, entre eles Partidos, ideologia e composição social (Edusp 2002) e Destino do Sindicalismo (Edusp 1999/2002), o professor Leôncio Martins Rodrigues, titular do Departamento de Ciência Política da Unicamp, dá início no momento a um novo mapeamento da correlação de forças partidárias no Congresso. O trabalho é uma continuidade de estudos que significam anos de lúcida investigação do jogo político brasileiro.
Na entrevista que se segue, em que examina o atual momento político, Leôncio fala das dificuldades enfrentadas pelo país nestes meses iniciais do novo governo, que teria cometido “alguns erros de difícil correção”. O principal deles, segundo o cientista político, foi deixar uma parte de sua equipe, especialmente a que cuida da economia, coordenada por pessoas de confiança do setor empresarial, nacional e internacional, e outra parte, encarregada dos aspectos sociais, comandada pela esquerda. O resultado, de acordo com sua análise, é um governo ideologicamente dividido. “Os partidos de esquerda estão no governo federal, mas ainda não podemos afirmar que a esquerda chegou ao poder”, observa.

Isso explicaria, por exemplo, a postura ortodoxa adotada no campo da economia e a tomada de medidas que estão surpreendendo o eleitorado, como a reforma da Previdência. Explicaria, também, as dificuldades que o atual governo vem enfrentando para lidar com os movimentos sociais organizados, como o MST. O cenário adverso ainda inclui queda na produção industrial, desemprego alarmante e redução significativa dos investimentos exteriores no primeiro semestre em relação ao mesmo período do ano passado. Embora evite o tom alarmista, o professor Leôncio não exclui o risco de uma ruptura institucional no país, principalmente em razão dos conflitos no campo, que recrudesceram de forma preocupante.
Para o professor Leôncio, caso o “espetáculo do crescimento” prometido pelo presidente Lula não ocorra, o desgaste sofrido pelo governo certamente produzirá reflexos no arranjo político do futuro. Nesse aspecto, segundo ele, as próximas eleições municipais já deverão funcionar como termômetro para a popularidade do governo petista. “O PT está aprendendo na prática que governar é muito difícil”, diz o professor. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

O professor Leôncio martins Rodrigues: " O presidente terá que optar, e logo. Mas, se optar pela esquerda, o cenário mais provável será de crise político-institucional, com conseqüências imprevisíveis"

JU – No ano passado o senhor realizou uma extensa pesquisa sobre as correlações de força partidárias no país. Agora o senhor está prestes a concluir um novo estudo sobre o assunto. Após o triunfo do PT nas eleições de outubro de 2002, aquele cenário mudou muito? Em que direções?

Leôncio Martins Rodrigues
– Na realidade, estou apenas começando a pesquisa. A anterior era sobre a composição social da Câmara dos Deputados. Ela visava medir as diferenças entre os partidos no que toca às fontes sociais de recrutamento de políticos. Mais especificamente: como as bancadas dos grandes partidos se diferenciavam do ponto de vista ocupacional e profissional. Pelo que pude observar neste começo de pesquisa, nota-se uma mudança relativamente forte na composição social da Câmara dos Deputados.

JU – Que tipo de mudança?
Leôncio - Aumentou a proporção de professores, de empregados não-manuais e de operários, e diminuiu a de empresários. A proporção de parlamentares que tinham sido professores, por exemplo, passou de 6,6% para 8,3%. A dos que eram ou são empresários declinou de 27,9% para 20,4%. Vale assinalar que pastores e padres quase dobraram sua presença: passaram de 2,3% para 4,1%.

JU – A que se devem essas mudanças?
Leôncio – Basicamente ao aumento de cadeiras ganhas pelo PT e outros partidos de esquerda. O número de parlamentares dos partidos classificados habitualmente como de direita (basicamente, o PFL e o atual PP, ex-PPR) declinou 4,9%; os de centro (PSDB e PMDB), 5,3%. O das legendas consideradas de esquerda (PT, PC do B, PSB, basicamente) cresceu 10,2%. Não se trata, é certo, de uma mudança drástica, mas mudanças mais profundas dificilmente ocorrem em situações de normalidade democrática.

JU – Contra todas as expectativas, inclusive internacionais, o novo governo adotou uma postura ortodoxa no campo da economia e surpreendeu o setor público com uma reforma da Previdência ditada pelas exigências do mercado. Com isso, ganhou um placet dos organismos internacionais e fortaleceu-se enormemente no Congresso. Essa situação tende a perdurar ou está a caminho do esgarçamento, como parece?
Leôncio - A possibilidade que parece mais forte é de que se caminhe para o esgarçamento. Mas algum cuidado deve ser observado nos vaticínios. O governo, mais especificamente o PT e Lula, ameaça perder parte de sua base tradicional de apoio, basicamente, neste caso, os sindicatos do setor público. Mas arrisca a perder também parte do apoio dos sindicatos do setor de mercado. Os primeiros, em razão da tentativa de reforma da Previdência; os segundos, em razão da política econômica. Mas, por outro lado, no Congresso, a base de apoio parlamentar pode ser recomposta. Além disso, a saída eventual de deputados da ala mais à esquerda do PT pode ser compensada por adesões de outros partidos.

JU – Com a mudança de discurso, de rota prevista e de composição (esta, heterodoxa) da base de apoio parlamentar, pode-se dizer que a esquerda está no poder?
Leôncio - A definição dos campos ideológicos em esquerda, centro e direita é sempre precária ainda que tenha a utilidade de etiquetar rápida e vagamente posições e forças políticas. Deixando de lado um esforço maior de precisão, julgo que seria mais correto dizer que os partidos de esquerda estão no governo federal. Desse modo, detêm parcelas importantes do poder. Mas não é a mesma coisa. Que dizer: a esquerda tem o poder. No caso, o PT e seus aliados (de esquerda e centro) venceram as eleições para o Executivo federal e obtiveram cerca de um terço das cadeiras do Congresso. Mas, no tocante ao poder executivo, o PT e a esquerda não tiveram a mesma performance. Perderam nos três maiores Estados do Sudeste, por exemplo. Assim, a esquerda tem um poder dividido e precário que deve ser exercido segundo as normas, leis e instituições de um Estado de direito. Ademais, outros atores importantes da sociedade não foram destruídos ou neutralizados, como os empresários e as camadas de alta renda. Portanto, nem de muito longe o PT e Lula poderiam pensar em fazer o que Lênin e os bolcheviques fizeram na antiga URSS ao transformar o partido no único instrumento de poder. Mas acho que Lula e o núcleo central do governo, além de não poder, não querem imitar os bolcheviques, o que me parece bom. Os que clamam por medidas “revolucionárias” ou “radicais” geralmente não têm idéia do custo de uma revolução ou mesmo de uma simbólica alteração da ordem institucional.

JU – A que o senhor atribui a súbita atração pelo globalismo que o governo Lula vem demonstrando?
Leôncio - A pergunta sugere que subitamente, por alguma razão não muito clara, o governo Lula resolveu aderir ao “globalismo”, traindo os ideais do passado. Mas entendo que certas coisas se impõem quando se passa de oposição a situação. A questão básica é que Lula foi eleito segundo certas regras. Não houve uma tomada revolucionária do poder. Eu me pergunto: como procederiam os críticos mais à esquerda de Lula se estivessem em seu lugar? Romperiam com o FMI e as finanças internacionais? Começariam a expropriação das grandes propriedades? A nacionalização das empresas? Ficariam ao lado da revolução islâmica contra o “corrompido” mundo ocidental? A tudo isso, as classes altas e médias, assim como as nações do Primeiro Mundo, assistiriam aplaudindo? O que eu vejo é que o PT está aprendendo na prática que governar é muito difícil, especialmente quando não se tem experiência prévia de administração da máquina federal.

JU – Quais as maiores dificuldades enfrentadas hoje pelo governo? Qual a dimensão histórica dessas dificuldades: são conjunturais ou podem levar a problemas mais profundos?
Leôncio - Existe certamente uma dificuldade conjuntural que eventualmente pode ser superada. Mas entendo que o governo cometeu alguns erros que não são facilmente corrigíveis. Pode-se entender a intenção do presidente Lula: ter uma parte do seu governo, especialmente o que cuida da economia, gerido por pessoas de confiança do setor empresarial, nacional e internacional. Finalmente, a economia precisa funcionar a contento. A “outra parte”, que envolve mais diretamente os chamados “aspectos sociais”, Lula deixou com a “esquerda”. O resultado é que se tem um governo heterogêneo, ideologicamente dividido. Divergências como as que existem entre o Ministério da Agricultura e o Ministério de Desenvolvimento Agrário; entre o Ministério das Finanças e o BNDES, não poderão persistir por muito tempo. O presidente terá que optar, e logo. Mas, se optar pela esquerda, o cenário mais provável será de crise político-institucional, com conseqüências imprevisíveis.

JU – Há quem veja até mesmo risco de ruptura institucional no país hoje, em face de uma maior agressividade dos movimentos sociais organizados em busca de seus objetivos. O senhor acredita nisso? Há sinais suficientes para que se possa concluir tal coisa?
Leôncio - Os sinais mais do que existem. O mais grave, de difícil ou impossível solução, é o MST e, agora, os movimentos dos que se autodenominam de “sem-teto”. Na área agrária, as dificuldades para uma solução sem grandes traumas são muitas. Primeiro: a distribuição de terra e os assentamentos são um pretexto de mobilização para o MST, que deseja “outro modelo” de sociedade, de tipo socialista e/ou da pequena propriedade familiar cristã. Segundo: uma fatia do governo, especialmente o INCRA, foi entregue a políticos simpáticos ou ligados ao MST e o preço de mandá-los embora será alto. Terceiro: não há efetivamente recursos para a desapropriação dentro da lei. Quarto: o número de acampados do MST não cessa de crescer: a manutenção desses assentamentos custa muito caro. Acredito que o MST marcha, não sei bem com que grau de intencionalidade, para a implantação de um ou mais “territórios livres”, administrados por ele, ainda que sustentado com verbas governamentais. No Pontal do Paranapanema isso já pode estar acontecendo. Se olharmos o desenvolvimento do MST, veremos que não há sinal de recuo persistente do movimento. O máximo que temos é “um passo para trás, dois para frente”. Nesse rumo, o choque com os proprietários e talvez com o governo será inevitável.

JU – O projeto da reforma da Previdência segregou um setor importante da base eleitoral do governo, que são os servidores públicos. Que
importância tem isto para o arranjo político futuro? A base parlamentar será afetada por essa cisão?

Leôncio - Já está sendo. Embora minoritário no conjunto do eleitorado, o setor público tem forte poder de mobilização, de influenciamento da opinião pública e de lobby no Congresso. Uma parte importante dos parlamentares vem do setor público, celeiro importante de pessoal para a classe política, do Brasil e de outros países.

JU – Como ficam organismos como a CUT, que é obrigada a equilibrar-se entre o alinhamento com o governo e a defesa nominal de direitos trabalhistas? O que posturas dessa natureza podem significar na evolução ou involução do movimento trabalhista?
Leôncio - A situação da CUT é difícil. Os sindicatos do setor público provavelmente acabarão todos, ou quase todos, indo para uma nova central. Isso não seria um absurdo, considerando as diferenças que separam os empregados do setor público dos assalariados do setor de mercado. No momento, a CUT dá um apoio mais verbal do que efetivo para os sindicatos de funcionários. Um rompimento da CUT com o governo Lula é mais difícil de acontecer, entre outras coisas porque grande parte de seus dirigentes (antigos e atuais) estão ocupando cargos no governo.

JU – Apesar do discurso otimista do governo, sua política econômica está gerando 100 mil desempregados por mês e uma queda progressiva da renda. Por outro lado, o investimento internacional no país diminuiu mais de 60% no primeiro semestre de 2003. O que está acontecendo: a neo-ortodoxia não deu ao governo credibilidade suficiente? Ou a crise é de outra natureza?
Leôncio – As opções em política econômica, como muitas outras, não são livres, no sentido de que não tem um preço a pagar. Se o governo não conseguisse ganhar a confiança das finanças internacionais e não segurasse os juros, as conseqüências seriam, talvez, mais graves do que fazendo o que fez. Insisto nesse ponto para nos guardarmos da idéia de que seriam possíveis mudanças radicais sem custo. Isso não exclui a possibilidade de que alterações menores não pudessem ter sido feitas. Mas, acima do caso específico e conjuntural do Brasil, não podemos nos esquecer de que a economia contemporânea não é criadora de emprego, especialmente no setor industrial. Trata-se pois de um problema que afeta todas as economias modernas.

JU – Um documento sigiloso produzido recentemente pela assessoria
especial da presidência relaciona as dificuldades enfrentadas pelo
governo, demonstra preocupação com os rumos do país e alerta que “o governo precisa ser ativo para não frustrar esperanças”. Em sua opinião, esse documento indica que o governo está assustado com a situação?

Leôncio - É claro que sim e seguramente está preocupado com a queda possível da popularidade do Presidente e do partido. Finalmente, as eleições municipais estão aí.

JU – Parte da esquerda brasileira está inquieta diante dos rumos adotados pelo governo do PT. Como o senhor analisa esse quadro?
Leôncio – Uma parcela da militância de esquerda, particularmente os mais jovens, tendia a acreditar que a eleição de Lula seria o começo da caminhada para o socialismo. Eram expectativas muito altas que só poderiam terminar em frustração. Mas o próprio Lula, embora adotasse uma linguagem moderada para ganhar eleições, contribuiu para criar esse clima de esperança quase messiânica de mudanças salvadoras que nunca ficaram muito claro quais seriam.

JU – Em sua opinião, como a esquerda brasileira vai tratar essa nova situação? Qual o futuro, por exemplo, de um partido como o PT?
Leôncio – Uma parte minoritária da esquerda vai continuar atuando e pensando como sempre fez. Com relação a Lula, especificamente, às tendências mais esquerda há muito vinham criticando o Presidente. Talvez, agora, se fortaleçam um pouco mais e possam tentar criar um novo partido. O difícil será eleger-se por uma nova legenda de esquerda, do tipo PSTU. Quanto ao PT, acredito que continuará a existir como um partido grande, mesmo que venha perder votos nas próximas eleições. No que diz respeito aos prognósticos sobre o futuro do PT, é bom lembrar que se trata de uma organização partidária forte que tem servido de canal de entrada para a classe política de sindicalistas e lideranças de movimentos sociais. Sem o PT, essa via de ascensão política e social deixaria de existir.

 

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