| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 356 - 23 de abril a 6 de maio de 2007
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Músico mostra origem, organização e rituais
de grupos de resistência ao pagode midiático

A roda de samba e de saberes

LUIZ SUGIMOTO

Integrantes do Projeto Nosso Samba, em Osasco:  relação marcada pela memória e ancestralidade (Foto: Mariana Rampazzo)Na década de 1990, ao mesmo tempo em que o samba ganhava grande inserção nos meios de comunicação de massa – transformando-se no que hoje é rotulado de pagode midiático –, surgiam grupos de resistência para lembrar que o gênero está carregado de memória a ser preservada. “O pagode não deixa de ser samba, mas o que vemos é uma diluição da sua temática, como a banalização do amor. O negro sempre usou o samba para falar dos seus problemas na sociedade, e também do amor, mas com dignidade”, afirma Eduardo Conegundes de Souza.

Violonista e cavaquinista, Eduardo, o Edu de Maria, é autor da dissertação de mestrado “Roda de samba: Espaço da memória, educação e sociabilidade”, apresentada na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, com a orientação da professora Olga von Simson. Na pesquisa, ele mostra a importância das rodas de samba no resgate das tradições e da memória cultural em dois núcleos da periferia da Grande São Paulo: o Morro das Pedras, no bairro São Mateus, e o Projeto Nosso Samba, em Osasco.

“Meu trabalho não trata do samba enquanto gênero musical, mas como manifestação cultural. Nas rodas de samba as pessoas se encontram em torno da música e também da comida, da dança e do próprio debate sobre o gênero. Por isso menciono a sociabilidade”, explica Edu de Maria, que participou da criação em Campinas do Núcleo de Samba Cupinzeiro, ligado ao Centro de Memória da Unicamp (CMU).

O Cupinzeiro, segundo o músico, desenvolve um trabalho relacionado com a educação não-formal, preocupado com a transmissão da memória do samba. “Quando formamos o núcleo ainda não conhecia essas comunidades, que têm uma atuação semelhante. Fiquei atraído com o diálogo entre as pessoas na roda. Elas não se reúnem para cantar, tocar e dançar por puro entretenimento, também têm a intenção de transmitir o conhecimento”.

Edu de Maria explica que o samba, sendo uma manifestação que vem desde o período colonial, traz muito da memória afro-brasileira, remetendo o tempo todo a esta tradição, seja nas letras ou na própria manifestação em si. “O samba se constitui de formas variadas que resultaram de determinados contextos sociais. Temos os negros que chegaram à Bahia e ali desenvolveram suas tradições, assim com os que aportaram no Sudeste e passaram por outras formas de convívio”.

Na dissertação, o músico discorre sobre o chamado samba rural paulista, caracterizado por manifestações que ainda se mantêm. Uma delas é o samba de bumbo, marcado pelo tambor que lhe dá o nome, versos de improviso e duas fileiras de integrantes que dançam em conjunto. “Seus integrantes denominam essa manifestação como samba de roda, embora este seja um termo recorrente para o samba da Bahia”.

O violonista e cavaquinista Eduardo C. de Souza, autor da dissertação: valorização da oralidade (Foto: Antoninho Perri)Também é próprio do Estado de São Paulo o batuque de umbigada. O samba é marcado pelo tambu, um tambor escavado em tronco de árvore e tocado com a matraca (dois pedaços de madeira), e ainda pelo quinjengue, tambor em forma de taça. Outra manifestação tradicional, o samba-lenço, é uma variação do samba de bumbo, mas com um dançar diferente, em que cada participante traz um lenço que orienta a coreografia.

“Vemos então que existe uma ligação com o samba da Bahia, que chega a São Paulo para gerar formas híbridas de manifestação”, observa Edu de Maria. A hipótese para justificar esta mistura, de acordo com o músico, é a ocorrência de um grande fluxo de negros do Nordeste para cá, depois da proibição do tráfico de escravos da África em 1850. “Aqui já havia o jongo, vindo com os primeiros africanos à região”.

Repertório – Envolvido desde a graduação com projetos de educação musical, Edu de Maria quis comprovar na pesquisa que grupos como o Morro das Pedras e o Projeto Nosso Samba formam espaços de educação não-formal – aquela que não fica na mera informalidade, pois possui determinado grau de intencionalidade na transmissão e sobretudo na construção do conhecimento.

“A educação não-formal não se opõe à escolar, mas difere nos modos de organização e sistematização dos saberes, com a valorização da oralidade, sendo guiada por tradições locais ou próprias de uma determinada cultura, ocorrendo em espaços não escolares”, diz o autor. Ele acrescenta que presente, passado e futuro se interligam nos rituais das rodas de samba, numa relação marcada pela memória e ancestralidade.

Na pesquisa, o músico presenciou as reuniões e entrevistou as lideranças para investigar a motivação, a origem e a organização dos grupos. “Queria entender até que ponto os integrantes tinham a consciência e a intenção de transmitir a memória do samba. Eles se preocupam em mostrar o negro no papel de formador de uma cultura, neste momento em que a referência, para um menino da favela, é o pagodeiro ou o jogador de futebol numa posição de ascensão social, dirigindo um carro importado”.

Roda de samba no Morro das Pedras, no  bairro paulistano de São Mateus: ginásio  chega a receber mil pessoas (Foto: Eduardo C. de Souza)Segundo Edu de Maria, os grupos escolhem o repertório a partir de vinis produzidos em sua maioria no período que vai da década de 1920 até a de 1970. Eles também colhem depoimentos de antigos sambistas, ouvindo suas histórias e buscando músicas que nunca foram gravadas. “A roda de samba tem quatro horas de duração, o que pede um repertório enorme, que faz parte do patrimônio do samba brasileiro. Muita coisa inédita é cantada nas rodas”.

Som acústico – A apresentação dos grupos é totalmente acústica e o Morro das Pedras, por exemplo, chega a reunir quase trinta integrantes sentados em roda, sendo que todos precisam conhecer as músicas. “O fato de todos cantarem juntos dá uma força muito grande à manifestação. O nome do compositor é sempre citado na roda e, quando possível, conta-se a história e o contexto em que a música foi feita. É um trabalho de pesquisa e de troca para que o conhecimento seja socializado”.

O público é atraído aos eventos por meio da divulgação boca a boca. Em dias comemorativos, como no aniversário do Morro das Pedras, o ginásio chegou a receber mil pessoas. “O público entende a proposta e assiste à apresentação concentrada. São raras as interrupções por causa de ruídos na platéia”.

A formação dos grupos de roda de samba também é eclética, diferentemente de movimentos como o funk, o rap e o hip hop, claramente voltados para determinado estrato social. Nas rodas juntam-se crianças e idosos, universitários e gente da comunidade. “Geralmente, os líderes são aqueles com maior escolaridade, que acabam descobrindo o papel social dessas manifestações. Mas o papel dessas lideranças é definido também por uma vivência anterior, seja numa escola de samba, seja numa folia de reis”.

Samba rural paulista

Foi Mário de Andrade quem cunhou a expressão “samba rural paulista”, na década de 1930, a partir das festas de Bom Jesus de Pirapora, que concentravam grupos vindos de diversas regiões do Estado, inclusive da capital. Muitas daquelas manifestações, que seus praticantes chamavam de sambas de roda ou de batuques, originárias principalmente das fazendas de café, acabaram reproduzidas no meio urbanizado.

Em sua dissertação, o músico Edu de Maria questiona se não é preciso relativizar a abordagem do samba como sendo uma prática prioritariamente do Rio de Janeiro, onde o gênero realmente nasceu no asfalto e se transformou na manifestação urbanizada que conhecemos hoje. “A partir do Estado Novo de Vargas, o samba foi manipulado ideologicamente, sendo inserido nas ondas do rádio como gênero capaz de contribuir para a construção de uma identidade nacional”.

Citando o sambista Osvaldinho da Cuíca, o autor do trabalho ressalta que outro fator, a forte repressão sofrida pelo negro na sociedade paulistana, contribuiu para apagar do samba paulista muito de suas características regionais. “Além disso, o samba carioca teria encontrado melhores condições de se manter e de transmitir sua memória, difundindo-a por todo o país, em função de a cidade ter sido sede do Império e, depois, capital na República”.

Fundo de quintal – Chegando ao período mais recente, no capítulo “Do samba maxixado ao pagode”, Edu de Maria conta como o grupo Fundo de Quintal, cujas raízes estão nas rodas de samba do bloco Cacique de Ramos, também acabou absorvido pela mídia. “Na década de 80 houve a aproximação de pessoas envolvidas com os meios de comunicação, como Beth Carvalho, a ‘rainha do samba’, que gostou do jeito diferente de tocar do Fundo de Quintal e praticamente adotou o grupo”.

Na opinião de Edu de Maria, o Fundo de Quintal criou uma nova estética do samba, recorrendo, por exemplo, ao repique de mão. “É uma sonoridade fácil de captar em estúdio, assim como o tantam, que substitui o surdo de marcação. Naquela época, tudo o que se gravava de samba tinha o acompanhamento do grupo”.

Foi neste cenário que começaram a surgir os núcleos de resistência paulistas, reunindo as pessoas em torno do samba de tradição. Entre os principais estão o Morro das Pedras, o Nosso Samba e o Samba da Vela. “Esses grupos surgem não para pensar o passado como algo congelado, mas para recriá-lo, retomando uma trajetória que foi drasticamente alterada nas décadas de 70 e 80, com a influência da indústria cultural”.

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