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Marjorie Perloff
‘A poesia pertence a seu próprio tempo’




A ensaísta Marjorie Perloff: "A evolução tem uma espécie de inevitabilidade que se pode notar em todos os movimentos"(Foto: Antoninho Perri)Uma conversa entre dois scholars não pode ser tratada como uma entrevista comum, mesmo quando o formato jornalístico do texto remete ao velho pingue-pongue – como se diz no jargão das redações –, gênero de matéria não raro visto injustamente como “menor”.

A convite do Jornal da Unicamp, o professor, escritor e ensaísta Alcir Pécora, do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL), entrevistou a ensaísta e crítica Marjorie Perloff, um dos nomes mais respeitados da literatura norte-americana.

O tema central da conversa, a poética contemporânea, não só envereda por assuntos paralelos mas não por isso menos fascinantes, como revela a vasta bagagem teórica dos dois intelectuais. É o que pode ser conferido na matéria que segue.

Alcir Pércora - Você começou ensinando na Universidade Católica, de Washington DC (1966-1971). Mudou-se então para a Universidade de Maryland, onde deu aulas até 1976. Daí você foi para a Califórnia, onde lecionou durante 10 anos na Universidade do Sul da Califórnia, transferindo-se então para Stanford. De todos esses períodos de docência, houve algum que considerou mais interessante e produtivo do que os demais?

Marjorie Perloff - Ironicamente, realizei a maior parte do meu trabalho durante o período de Maryland (1972-77). Eu tinha de viajar da Filadélfia, onde morava, para a Universidade, cumprindo uma agenda de dois dias seguidos de aula. O resto da semana eu ficava em Filadélfia e podia trabalhar! Escrevi bastante. Em Stanford, eu estava em muitas comissões e tinha um excesso de orientações.

Intelectualmente, a grande virada na minha carreira veio também em meados dos anos 70, quando fui solicitada, por uma série de coincidências, a escrever um livro sobre o poeta Frank O´Hara. Trabalhando nesse livro, conheci gente interessante e comecei a me distanciar de minha formação puramente acadêmica. Quando voltei para estudos mais teóricos, como The Poetics of Indeterminacy, tive já uma nova base para escrever.

O crítico e professor Alcir Pécora, que leciona desde 1977 no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL) (Foto: Antoninho Perri)Alcir Pércora - Você sempre valorizou a atividade de grupos de poesia, como o Black Mountain College (de que fazem parte, entre outros, Robert Creeley, Charles Olson e Robert Duncan); o grupo beat (de Allen Ginsberg, que já é relativamente bem conhecido no Brasil); a chamada New York School (de Frank O´Hara, Kenneth Koch, John Ashberry etc.); o grupo Fluxus (de George Maciunas, Nam June Paik, Yoko Ono etc.); o círculo de John Cage; e enfim o grupo da Language Poetry, nos anos 80-90, que tem como expoentes gente como Charles Bernstein, Lyn Heijnian e Bob Perelman. Qual a relação que estabelece entre a atividade poética coletiva e os talentos individuais? Outra coisa: desses grupos todos, qual considera o mais rico em possibilidades ainda hoje?

Marjorie Perloff - Eu remeto esta pergunta ao meu ensaio Avant-Garde Tradition and the Individual Talent, do qual você talvez possa extrair algumas idéias a esse respeito. De modo geral, acho que superestimamos os grupos. Grupos são muito importantes para o poeta ou artista; o poeta precisa de uma comunidade de pessoas afins. Contudo, do ponto de vista do público, o grupo logo fica para trás e um ou dois grandes poetas/artistas emergem do conjunto. Pense em Duchamp ou Ezra Pound. E ainda agora, entre os poetas do movimento Language, Charles Bernstein, Susan Howe, Steve McCaffery, e outros poucos estão aparecendo como poetas-chaves. Muitos outros desapareceram na multidão. É muito interessante observar a ascensão e a queda dos movimentos: a evolução tem uma espécie de inevitabilidade que se pode notar em todos os movimentos.


Alcir Pércora - Em seus livros, você geralmente aborda a poesia como parte de um conjunto de atividades artísticas e culturais, raramente isolando-a seja em termos pessoais, seja em termos estritamente literários. Quer dizer, o seu método investigativo posiciona a poesia nessa espécie de contínuo (mas não de representação) das atividades culturais urbanas e tecnológicas mais variadas. Por que esse esforço de posicionamento?

Marjorie Perloff - Bem, eu diria que sou um misto de formalista e historiador literário com uma pitada de crítica cultural. Acredito firmemente que a poesia tem de ser de seu próprio tempo. Em outras palavras, não podemos escrever sonetos como faziam os poetas elisabetanos, ou dísticos heróicos como Pope e Swift. Assim, num dado conjunto de poemas, eu busco a sua poeticidade, observo o seu uso da linguagem, mas também o lugar que ocupa na tradição e o seu papel na cultura.


Alcir Pércora - The Poetics of Indeterminacy: Rimbaud to Cage, salvo engano, é o seu primeiro livro a enfatizar a importância do músico John Cage. Você poderia falar a respeito da centralidade de Cage nos debates da arte contemporânea?

Marjorie Perloff - Que pedido difícil! Na verdade, eu nunca escrevi sobre a música de Cage porque sou uma espécie de iletrada musical; nunca estudei música. Minha preocupação era com o Cage multi-artista, o inventor, o artista que nos mostrou o que significa viver num mundo moderno onde literalmente não havia silêncios, um mundo transformado pela tecnologia. Enquanto a maioria dos contemporâneos de Cage se queixava infindavelmente da industrialização, do capital e da tecnologia, Cage soube que se tinha de aprender a usar essas coisas, e que as tantas novas invenções, como o tape de trilhas múltiplas, poderiam transformam o modo como a arte funcionava. Cage escreveu música, poesia, produziu arte, eventos performáticos e escritos filosóficos. Ele representava um novo tipo de artista.

Alcir Pércora - O Momento Futurista é o único livro seu editado no Brasil, aliás, com tradução do poeta Sebastião Uchoa Leite, recentemente falecido. Que outro livro seu gostaria especialmente de ver publicado no Brasil?

Marjorie Perloff - Acho que Radical Artifice: Writing Poetry in the Age of Media poderia ser útil para as pessoas. Discuto novas poéticas e trabalhos híbridos, por exemplo, a Poesia Concreta. Mas Wittgenstein’s Ladder é pessoalmente meu favorito.

Alcir Pércora - Diferentemente de muitos críticos norte-americanos, você não se mostra herdeira de nenhum horror perante o New criticism, nem adota nenhum modelo europeu posestruturalista ou desconstrucionista em relação à obra de arte. Como pensa a sua posição entre os críticos norte-americanos hoje?

Marjorie Perloff - Por sorte, quando se trata de poesia contemporânea, há certo número de críticos que escrevem de modo interessante sobre obras e movimentos específicos, cujas trocas são valiosas. Mas é verdade que a maioria dos críticos dos Estados Unidos está interminavelmente emaranhada em pós-colonialismo, globalismo e feminismo. Nunca me preocupei com qualquer um desses grandíssimos “ismos” porque eles dizem pouco sobre valor estético e, enfim, porque nós lemos livros por causa de sua complexidade, intensidade, a sua habilidade para ser relido. Assim, crítica engajada não me interessa muito. Nem eu acredito que exista alguma coisa como novela judia ou escrita feminina, e assim por diante.

Alcir Pércora - Em particular, como leitora de Wittgenstein, qual a sua relação com a filosofia norte-americana mais versada em Wittgenstein, como Richard Rorty ou Stanley Cavell?

Marjorie Perloff - Tenho reverência por ambos. Ambos são muito difíceis e estão sempre desafiando o leitor. Prefiro muito mais ler Rorty ou Cavell do qualquer um dos assim chamados teóricos do pós-colonialismo etc. Esses filósofos lidam com problemas fundamentais e realmente mudam o pensamento das pessoas. Cavell especialmente, em seus escritos sobre Wittgenstein, mas também sobre Shakespeare!

Alcir Pércora - A passagem de uma idéia de “transparência” da poesia (na qual o poeta quer soar “natural”, “informal”) para a de “artifício” (na qual a linguagem poética traz para o primeiro plano sua própria construção) é nuclear para a sua análise do interesse da poesia contemporânea. Poderia explicá-la um pouco?

Marjorie Perloff - A poesia padrão de uma “oficina de poesia”, como a chamamos no Estados Unidos, é “transparente” naquilo em que as palavras são meramente um veículo para a expressão de um pensamento profundo ou de um vislumbre supostamente importante. Eu nunca achei esses vislumbres tão profundos assim. É duvidosa a noção de um indivíduo único expressando a si mesmo. Na poesia Language e movimentos afins, o poeta começa com linguagem e deixa que a linguagem gere “idéias” mais do que o contrário. Os bons poetas sempre fizeram isso. Uma das queixas bobas feitas hoje é a de que “dificuldade” em poesia é alguma coisa nova. Entretanto, Donne era um poeta muito difícil, assim como é Wallace Stevens; não foi preciso esperar pela poesia do grupo Language para saber que a simples transparência não é uma virtude em poesia.

Alcir Pércora - O seu último livro, The Vienna Paradox. A memoir, de 2004, é uma autobiografia, na qual você descreve com lucidez e elegância o longo caminho que percorreu desde quando nasceu de uma família rica, da mais alta roda de cultura, em Viena, Áustria, e não se chamava nem Marjorie (nome adotado já nos States), nem Perloff (nome do marido), mas sim Gabrielle Mintz, até tornar-se a crítica norte-americana que hoje admiramos. O que a levou a tentar esse novo gênero de escrita?

Marjorie Perloff - Como escrevi no prefácio de The Vienna Paradox, fui incitada por James Laughlin, o poeta e grande editor da New Directions, a escrever uma memória. No começo eu estava muito hesitante. Mas tentei escrever a memória como se fosse uma colagem – parte de textos poéticos citados, parte meditação, parte narrativa histórica. Senti que tinha uma história particular para contar: como os judeus vienenses da classe alta tentaram “passar” como se nada estivesse ocorrendo e, no entanto, foram tratados pelos nazistas simplesmente como mais um grupo de judeus; como as pessoas em questão reagiram; e como elas se deram quando foram para os Estados Unidos. Isto produziu uma resposta bastante forte de amigos e também de desconhecidos, que parecem estar entusiasmados com o livro. Então estou contente de tê-lo escrito.

Alcir Pércora - Por último, uma veleidade. Adoro top list e quero fazer uma bem radical com você. Meu poeta americano favorito é William Carlos Williams. Qual é o seu?

Marjorie Perloff - Meu favorito é Ezra Pound embora eu também ame Williams. Mas Pound tem maior alcance, profundidade, e o mais belo senso de ritmo, apesar de sua terrível política.

Alcir Pércora - Eric Sabinson, professor de literatura norte-americana na Unicamp, pediu-me para fazer-lhe duas questões. A primeira é: em The Poetics of Indeterminacy, você separa radicalmente a vida de Rimbaud da sua poesia. Esta separação é uma ressaca dos métodos do New Criticism? Qual é a relação entre biografia e inovação?

Marjorie Perloff - Formei-me, durante os anos 50 e 60, como uma formalista, mas à medida que fui ficando mais velha, descobri que não podia mais separar a vida de um escritor de seu trabalho. Na verdade, a vida de Rimbaud é muito relevante para a sua poesia assim como a vida de Wittgenstein para a sua filosofia. Recentemente, tentei usar a biografia, por exemplo, num texto que acabei de escrever sobre Samuel Beckett e a fenomenologia da guerra (sobre o papel de Beckett na resistência). Então eu me convenci de que a biografia É muito importante para o ato crítico; por outro lado, muitas monografias biográficas nunca chegam a dar uma boa olhada no texto em si. É preciso que se alcance um feliz meio-termo.

Alcir Pércora - A segunda pergunta é: em O momento Futurista, você cita o poema “In the Bohemian Redwoods”, de Percy Mackaye, como uma espécie de obstáculo para a “parole in libertà” nos periódicos de poesia americana. Você escolheu o autor de uma peça tão tradicional quanto “Scarecrow” como um exemplo do fim do verso americano da pré-Primeira Guerra Mundial? Foi intencional, uma cutucada em certo tipo de “Americana”, de esfera cultural norte-americana?

Marjorie Perloff - Suponho que sim. Eu não sei muito sobre Percy Mackaye, mas esses poemas regionalistas da natureza com seu metro cantarolado parece vir de um outro mundo em relação ao da vanguarda. Eles escrevem como se nada tivesse mudado, como se pudéssemos ser sempre wordsworthianos e contemplar a natureza como se tecnologia não tivesse se introduzido na natureza. Um estranho período de interregno nos Estados Unidos que realmente não terminou até o final dos anos 20, acho. Não tolero facilmente a “Americana”; talvez devido ao meu viés europeu. Por outro lado, desde a 2ª Grande Guerra, as vanguardas, em geral, originaram-se nos Estados Unidos. Então uma mudança importante realmente ocorreu.


O que a ensaísta diz de:
Foto: Folha Imagem
John Cage

“Enquanto a maioria dos contemporâneos de Cage se queixava infindavelmente da industrialização, do capital e da tecnologia, Cage soube que se tinha de aprender a usar essas coisas, e que as tantas novas invenções, como o tape de trilhas múltiplas, poderiam transformam o modo como a arte funcionava”




Foto: ReproduçãoArthur Rimbaud

“Formei-me, durante os anos 50 e 60, como uma formalista, mas à medida que fui ficando mais velha, descobri que não podia mais separar a vida de um escritor de seu trabalho. Na verdade, a vida de Rimbaud é muito relevante para a sua poesia assim como a vida de Wittgenstein para a sua filosofia”



Foto: Folha ImagemFoto: Folha Imagem
Ezra Pound e
William Carlos Williams

“Meu poeta favorito é Ezra Pound embora eu também ame Williams. Mas Pound tem maior alcance, profundidade, e o mais belo senso de ritmo, apesar de sua terrível política”


Quem é Marjorie Perloff

Um dos mais importantes nomes da crítica literária, a ensaísta norte-americana Marjorie Perloff é professora emérita da Universidade de Stanford, onde atuou entre 1986 e 1990.

Marjorie também lecionou em diversas instituições: Universidade Católica, de Washington DC (1966-1971); Universidade de Maryland (1971-1976); Universidade do Sul da Califórnia (1976-1986); e na Universidade de Washington (1990-2000). Possui uma produção acadêmica expressiva, sobretudo nas áreas do futurismo e do modernismo.

Em agosto do ano passado, Marjorie Perloff esteve no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL), onde proferiu a palestra “A Aura do Modernismo”.

Entre as principais obras estão Rhyme and Meaning in the Poetry of Yeats; The Poetic Art of Robert Lowell; Frank O’Hara: Poet among Painters; The Poetics of Indeterminacy: Rimbaud to Cage, The Dance of the Intellect: Studies in the Poetry of the Pound Tradition, The Futurist Moment:

Avant-Garde, Avant-Guerre, and the Language of Rupture, Poetic Licence: Studies in Modernist and Postmodernist Lyric, Radical Artifice: Writing Poetry in the Age of Media. Seu único livro lançado no Brasil é O momento futurista (Edusp).



Quem é Alcir Pécora

Alcir Pécora é professor livre-docente de literatura no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL), onde leciona desde 1977. Autor de estudos a propósito de literatura colonial brasileira, e, em particular, do seminário do Padre Vieira. Crítico e colaborador de jornais e periódicos científicos, no Brasil e no exterior. Entre suas publicações, destacam-se: Teatro do Sacramento (Edusp/Editora da Unicamp, 94); Máquina de Gêneros (Edusp, 2001); As Excelências do Governador (Companhia das Letras, 2002); Rudimentos da Vida Coletiva (Ateliê, 2003).

Organizou dois volumes de Sermões (Hedra, 2000/ 2001), além das antologias A Arte de Morrer (Nova Alexandria, 1994) e Escritos Históricos e Políticos (Martins Fontes, 1995), todos a propósito da obra de Vieira.

Foi curador da edição de vários lançamentos da Editora Martins Fontes a respeito de autores italianos dos séculos XVI e XVII: O Cortesão, de Baldassare Castiglione; Galateo, de Giovanni Della Casa; A Dissimulação Honesta, de Torquato Accetto; Da Infinidade do Amor; organizou a antologia A Arte de Conversar, que reúne escritos franceses seiscentistas.

É organizador da edição das obras completas de Hilda Hilst pela Editora Globo. Está temporariamente radicado em Roma.



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