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ARTIGO

Agricultura e desenvolvimento tecnológico

JOSÉ MARIA SILVEIRA

O debate sobre a aplicação dos resultados da pesquisa com manipulação genética é mais uma evidência de que a agricultura definitivamente atravessou o duro portal da complexidade e da interdependência. Desde 1980, universidades, institutos de pesquisa públicos e privados e departamentos de pesquisa de empresas dedicam-se às pesquisas de manipulação genética com base na aplicação da "tecnologia do DNA recombinante". Há cerca de 6 anos esta tecnologia gerou alguns produtos – as sementes de cultivares transgênicos de primeira geração - dando o início a um processo inovativo em grande parte complementar ao processo de melhoramento genético "tradicional", mas que introduziu mudanças incrementais e algumas radicais, demandando arranjos institucionais novos. Esses arranjos incluem os seguintes elementos:

A pesquisa em melhoramento genético:

sem alterar sua base de conhecimento, seu "core", o melhoramento genético passou a articular uma gama ampla de conhecimentos e novas ferramentas de trabalho: bioinformática, os conhecimentos da genômica e seus desdobramentos, o uso de marcadores genéticos e toda uma gama de novos insumos vivos, como vetores, seqüências pré-programadas de bases nitrogenadas e veículos de expressão. Novos equipamentos e novos reagentes devem ser adicionados. Novos profissionais e toda uma rede de instituições de suporte tornam-se vitais.

O aparato institucional de biossegurança:

a manipulação genética utilizando DNA recombinante cria potencialmente novas demandas nas etapas de pesquisa, testes de campo e comercialização do produto. Um cultivar "transgênico" engendra dois tipos básicos de novos problemas: 1) problemas da liberação no ambiente em ampla escala. O mais notório seria o da contaminação do germoplasma – do banco genético preservado in situ, que em tese, daria a base para a continuidade do próprio processo de melhoramento. 2) uma grande parcela dos produtos da agricultura são direcionados para a alimentação humana e alguns procedimentos utilizados na manipulação genética podem criar problemas à saúde. Há registros de pesquisas que foram abandonadas - muito antes de serem criadas comissões de biossegurança – por apresentarem algum perigo potencial para os consumidores, principalmente reações alérgicas. Está claro que a questão da biossegurança é multidisciplinar.

A redefinição das formas de produzir, registrar e distribuir insumos na agricultura:

desde a segunda metade dos anos 60, a atividade agrícola – considerada a mais primitiva atividade econômica do homem, superada apenas em atraso pelo extrativismo – torna-se paradoxalmente uma atividade intensiva em ciência. Muito antes de ISSO, a produção de sementes havia criado em São Paulo um exigente sistema de certificação de sementes. Muito antes da massificação de programas de pós-graduação, a Embrapa era formada com doutores formados em vários países do mundo. A presença de filiais de grandes corporações mundiais no setor químico, farmacêutico e de produção de sementes no Brasil afirmou-se neste período. Monsanto, Ciba- Geygi, Dupont, Bayer, Dow, Pioneer Hy Bred, Cargill, Continental Grain, Limegrain, entre outros, criaram novos mercados, novas demandas de regulação; testes de impacto ambiental e na saúde humana e portanto, um novo ambiente competitivo. É inegável que a aproximação dos mercados de sementes e de agroquímicos é uma novidade que reforça o poder dessas empresas em mercados como o de sementes de variedades de soja, caracterizados, no Brasil, até 1997, por um número muito grande de pequenas firmas regionais.

A legislação relativa à propriedade intelectual e uso da biodiversidade:

o Brasil no governo FHC fez uma "atualização" no conjunto de leis relativas ao direito de melhoristas, do registro de cultivares e do uso da biodiversidade. Atendeu a gregos e troianos, dos defensores da Convenção de Diversidade Biológica até às pressões da Organização Mundial do Comércio (OMC) no que se refere à proteção de inovações de origem biológica (e patenteamento de fármacos). A questão dos transgênicos adiciona uma pitada de complexidade nesse confuso processo, uma vez que à cobrança de royalties na agricultura se adiciona a necessidade de definir contratos para a utilização do pacote tecnológico transgênico.

Finalmente, sua senhoria o consumidor:

esse ser soberano, levemente obeso e com uma saúde sensível aos contaminantes da "poluição genética" (sic) ganhou uma importância inédita em um cenário em que transgênicos lançam suas proteínas na mais inocente batatinha ou no hamburguer com grife. Poucos percebem que esta questão não se confunde com os estudos de biosseguridade. Aqui pesa o "simbólico" magistralmente tratado nos trabalhos de Pierre Bourdieu sobre o assunto. A frase preferida é: "o consumidor tem direito à escolha" (sic), ainda que no mundo real sejam as empresas em seus processos competitivos que atropelam os consumidores com suas novidades e com suas vendas casadas (Bill, ó Bill, onde estás?). A solução, o rótulo, é cara e complexa, pois nem sempre vale a pena preservar a identidade de produtos cujo valor unitário é menor que o da água mineral (aliás, rastreamento nelas, já...).

A articulação entre esses elementos está em curso e de forma globalizada. Qualquer militante da agricultura orgânica ou do MST tem na ponta da língua que a China exigiu segregação dos lotes de soja transgênica brasileira. Qualquer trader chinês sorri feliz com o poder que a precariedade brasileira e a agricultura gaúcha lhe deram para negociar o preço da soja. Uma coisa é certa: não se trata de ser a favor ou contra transgênicos. Menos ainda de fazer listas de possíveis malefícios, atribuindo aos transgênicos aquilo que a agricultura moderna, que nos alimenta, perpetra diariamente. Se aceitarmos que a posição européia – e o peso da exploração da soberania do consumidor – é parte do problema e deve ser questionada, já teremos a mente anuviada dos clichês e de raciocínios apressados. De um dia para o outro, pretensos defensores da pureza ambiental viraram estrategistas de mercado. Cartas para o Pascal Lamy, em Bruxelas.


José Maria da Silveira é professor do Instituto de Economia

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