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A ciência da cognição, segundo Dascal

Filósofo, que participará de colóquio na Unicamp,
avalia papel da ciência cognitiva e as mudanças causadas pela cultura digital

Dascal: "Sacrificamos algumas de nossas capacidades cognitivas" Chegou o momento de atuarmos como mestres e não como servos, e de fazer com que os computadores se comuniquem conosco em nossa língua”. A frase, do filósofo Marcelo Dascal, professor das universidades de Leipizig e de Tel-Aviv, é uma amostra dos temas que serão tratados no VII Colóquio Internacional Michel Debrun: Novas Tendências das Ciências Cognitivas no Século XXI, evento que reunirá entre outros nomes na Unicamp (dias 22 e 23, no auditório do IFCH) e na Unesp de Marília (dia 24), além de Dascal, os professores Scott Kelso (Universidade Atlântica da Flórida), um dos maiores especialistas mundiais em auto-organização, e Pim Haselager, da Universidade de Nijmegen (Holanda), estudioso da inteligência artificial.

Na entrevista que segue, formulada pelo professor Michael B. Wrigley (leia texto nesta página) e pelo estudante José Cláudio R. Silva*, Dascal –ex-professor da Unicamp e conhecido mundialmente por seus estudos nas áreas de filosofia da linguagem e da teoria da controvérsia – destaca o caráter plural das ciências cognitivas, cuja principal tarefa , segundo ele, seria “criar modelos rigorosos da complexidade das atividades mentais humanas”. Ao ser indagado sobre as mudanças provocadas pelo surgimento da Internet, Dascal avalia que a revolução causada pelo advento da nova mídia exigirá uma reflexão sobre o novo modo de vida e conseqüente visão de mundo. “Ocorre hoje algo semelhante ao que ocorreu no século 17 com a revolução científica que provocou uma revolução filosófica correspondente, que Kant não hesitou em chamar de Revolução Copernicana”, comparou. “Temos que refazer a antropologia filosófica de Kant”.

*Colaborou Álvaro Kassab

JU – Como o senhor definiria a ciência cognitiva e como sua pesquisa se encaixa dentro desta ciência?
Dascal –
É melhor usar o plural, “ciências cognitivas”, pois tem a vantagem de indicar algo essencial: o caráter não unitário mas plural desta nova configuração do saber. Plural em vários sentidos: por ser uma “disciplina” interdisciplinar ou “federativa”; por ser uma disciplina indisciplinada, em que novas idéias, por mais heterodoxas que sejam, não são reprimidas ou suprimidas simplesmente por se oporem a algum “paradigma dominante”; e por ser uma disciplina cujo próprio nome não impõe sua semântica de forma absoluta e exclusiva. Tenho em mente o fato de que, semanticamente, o termo “cognição” se opõe a um termo como “emoção”, por exemplo.

JU – O senhor poderia explicar?
Dascal –
Ora, as emoções têm sido, especialmente nos últimos anos, objeto de estudos intensivos por parte dos “cientistas cognitivos”. Pense-se, por exemplo, no livro (já não tão recente) de Antonio Damasio, O Erro de Descartes e em seus trabalhos mais recentes em que procura mostrar que não se pode separar cognição de emoção. Ou pense-se no número especial (2001) da revista que dirijo, Pragmatics & Cognition, dedicado inteiramente à questão da “localização” das emoções no corpo, segundo diferentes línguas e culturas.
Essa pluralidade não significa, porém, bagunça generalizada. As ciências cognitivas têm por tarefa fundamental, justamente, criar modelos rigorosos da complexidade das atividades mentais humanas (e animais), fazendo uso do input variado e rico oferecido pelas disciplinas que as constituíram historicamente (filosofia, linguística, psicologia, informática, neurociência) e das que se vão unindo a essa federação, com o passar do tempo, como a antropologia, a sociologia da ciência, e outros.
Sendo eu mesmo um sujeito interdisciplinar, situo-me muito bem dentro de uma disciplina plural e aberta como são (ou devem ser) as ciências cognitivas. Especificamente, estou interessado principalmente na relação (íntima, a meu ver) entre nosso comportamento semiótico (do qual o principal, mas não único exemplo é o uso das linguagens naturais) e os processos mentais (não só “cognitivos”). Esse é também o fulcro da revista que fundei e dirijo.

JU – A ciência cognitiva é vista como um exemplo paradigmático de interdisciplinaridade. Como o senhor vê a inserção da filosofia e da história da filosofia dentro desta nova área da ciência?
Dascal –
Essa inserção é absolutamente fundamental. Sem ela as ciências cognitivas são – para usar uma expressão de Platão – como um barco navegando sem timoneiro. Deixando de lado a arrogância de Platão, que pretendia atribuir ao filósofo o papel de guia supremo, podemos adotar a visão mais modesta de Habermas, que atribui à filosofia justamente a tarefa de ocupar-se dos interstícios entre as diferentes ciências, dos quais nenhuma delas se ocupa, até que se constitua a ciência que tome efetivamente esses interstícios como tema central. Seja como for, é ao filósofo que cabe, na federação cognitiva, servir de ponte entre as matrizes disciplinares rígidas, mostrando a um e a outro as relações ocultas entre elas, as eventuais contradições entre elas, e os meios de estabelecer um verdadeiro diálogo.
A história da filosofia ou das idéias é particularmente importante, pois muitas vezes ao ler textos de cientistas cognitivos e mesmo de filósofos da mente ou da linguagem contemporâneos, tem-se a clara impressão de que estão “inventando a roda” e, ao fazê-lo, ignoram as objeções já feitas no passado a suas invenções, e os refinamentos, também já feitos no passado, introduzidos para superar essas objeções. O passado das idéias filosóficas e outras não é um museu, mas sim um repositório ativo e riquíssimo, que – como fazemos com os computadores – só foi usado por nós em uns 10%. O resto está lá, esperando a oportunidade para ser resgatado da escuridão e usado hoje, aqui, e agora!

JU - A Internet mudou significativamente a vida das pessoas. Será que o surgimento dessa nova mídia tem conseqüências importantes para a filosofia?
Dascal –
Absolutamente sim. Em primeiro lugar permite acesso a uma multiplicidade de informações filosóficas, incluindo textos clássicos, que de outra forma ficaria inacessível, sobretudo em países relativamente periféricos (desculpe dizer a verdade triste) como o Brasil. Em segundo lugar, permite a formação de equipes de pesquisa internacionais, trabalhando em cooperação e complementarmente em lugares distantes. E finalmente o mais importante: a nova cultura, simbolizada pela Internet, que poderíamos chamar cybercultura ou cultura digital, produziu na verdade uma revolução que exige uma reflexão ontológica, ética e epistemológica sobre o nosso novo modo de vida e de mundo.

JU – O senhor poderia exemplificar?
Dascal –
Ocorre hoje algo semelhante ao que ocorreu no século XVII com a revolução científica que provocou uma revolução filosófica correspondente, que Kant não hesitou em chamar de Revolução Copernicana. O mesmo Kant inventou o conceito de antropologia filosófica, para responder às perguntas fundamentais sobre o homem, o que é, o que pode saber, o que deve fazer, e o que pode esperar – perguntas que a revolução científica levantava sob nova luz e permitia responder sob as novas condições. Agora, à luz das condições atuais, e sobretudo da revolução digital, temos que refazer a antropologia filosófica de Kant, que nos serviu de fundamento até hoje. A meu ver ao invés de simplesmente falar em pós-modernidade, cuja essência é uma crítica à modernidade, devemos passar do estágio crítico (JUstificado) ao estágio de construção desta nova antropologia filosófica – tarefa fundamental da filosofia atual, a meu ver.

JU – Como o senhor analisaria a produção filosófica brasileira dentro do contexto internacional?
Dascal –
Não tenho acompanhado com suficiente profundidade a produção filosófica brasileira nos últimos anos para poder dizer. Quero somente dizer que não há produção filosófica séria a não ser se ela se insere no contexto internacional, discutindo com as demais produções filosóficas no mundo, e propondo alternativas às teorias e abordagens vigentes. Há quase 20 anos fundamos em Campinas a revista Manuscrito, que dirigi durante boa parte desse tempo, e que agora é dirigida pelo professor Michael Wrigley. Esta revista se constituiu desde o início em revista internacional de filosofia, e publicou (e publica) artigos em 4 línguas (português, espanhol, francês, inglês). Tornou-se um fórum para a projeção internacional do pensamento filosófico brasileiro e, em parte para nossa surpresa no início, atraiu contribuições de todo o mundo. Acho que teve bastante influência no Brasil e não só no Brasil. Trata-se de um modelo que, a meu ver, deve ser incentivado, e que garantira a inserção automática do pensamento brasileiro no mundo, de modo que daqui a alguns anos sua pergunta nem merecerá ser perguntada.

JU – Como o senhor discute a atitude dos filósofos brasileiros frente às ciências cognitivas?
Dascal –
Isso poderei responder melhor depois do Colóquio Michel Debrun em Campinas. Posso dizer pelo menos que a atitude de quem foi meu antigo mestre na rua Maria Antonia, o professor Michel Debrun, foi sempre de um interesse muito profundo pelas ciências cognitivas, e graças a isso também chegou a fazer contribuições de importância.

JU – Quais as tendências das ciências cognitivas que o senhor vê como mais promissoras no século 21?
Dascal –
Acho que parte de minha resposta transparece nas respostas anteriores. Pessoalmente, acho que uma das linhas de pesquisa mais importantes é a relativa a um estudo mais aprofundado da contribuição das linguagens naturais à cognição, e de seu uso em “tecnologias cognitivas”, como recurso cognitivo de fundamental importância. Falarei sobre isto no Colóquio. Posso antecipar simplesmente o seguinte: até agora, os seres humanos que somos, usuários dos computadores, tivemos que deixar de lado nosso meio de comunicação e pensamento principal – a linguagem natural – e submeter-nos às limitações comunicativas de nossos novos partners – os computadores e similares. Com isso sacrificamos de forma significativa algumas de nossas capacidades cognitivas fundamentais.

JU – O que pode ser feito para reverter esse quadro?
Dascal –
Chegou o momento de atuarmos como mestres e não como servos, e de fazer com que os computadores se comuniquem conosco em nossa língua, não na deles. E pouco a pouco a possibilidade de realizar isso começa a não parecer já tão utópica. Para isso –voltando ao tema da interdisciplinaridade – é preciso uma cooperação estreita entre informáticos, lingüistas e filósofos da linguagem e da mente, verdadeiramente interdisciplinar. Mas, como disse, falarei mais sobre isso em minha palestra no colóquio.

A Ciência Cognitiva no século 21

Michael B. Wrigley

O VII Colóquio Internacional Michel Debrun: Novas Tendências das Ciências Cognitivas no Século 21, que a Unicamp sedia nos dias 22 e 23 de abril, pretende fornecer um panorama das novas tendências na ciência cognitiva. A ciência cognitiva tenta fornecer uma resposta à pergunta: “como funciona a mente (humana e animal)?”, por meio da postulação de estruturas internas. A ciência cognitiva “clássica” trabalhou com o pressuposto de que estas estruturas são de natureza computacional e representacional. O modelo correto para entender como a mente funciona, tal como cognição, ação, memória, linguagem etc., é pensar em termos de um nível (em geral implícito e não consciente) de manipulação computacional de representações. Numa frase, a mente é um computador.

Este modelo “clássico” não é mais hegemônico na ciência cognitiva. Muitos de seus aspectos vêm sendo questionados. Trata-se não necessariamente de uma rejeição total, mas de um reconhecimento dos limites da sua aplicabilidade, e a necessidade de novas abordagens e novos modelos. Uma dessas novas abordagens é a chamada “cognição incorporada e situada” que toma como ponto de partida o fato de que a cognição é um processo de um organismo que tem um corpo, que por sua vez é um objeto físico num determinado contexto no ambiente. Segundo esta abordagem, o papel de processos computacionais-representacionais na atividade cognitiva é bastante limitado, e é possível explicar muitos aspectos de comportamento inteligente sem postular tais processos internos. Pim Haselager, da Universidade de Nijmegen, Holanda, que vai participar do evento, é um pesquisador internacionalmente reconhecido, que atualmente trabalha com esta abordagem de cognição incorporada e situada.

J. A. Scott Kelso, da Florida Atlantic University, é um dos pioneiros dos estudos de auto-organização. A sua pesquisa trata do funcionamento do cérebro e de movimento. É uma das áreas mais recentes e promissoras da ciência cognitiva. Há grupos no Brasil estudando auto-organização, mas às vezes entendem este conceito de uma maneira um pouco metafórica ou até mística. Kelso deixa muito claro nas suas obras que não há nada de místico no conceito de auto-organização. Trata-se, na verdade, de um conceito matematicamente preciso da ciência "hard". Vai ser muito interessante o debate sobre esta questão.

O surgimento da ciência cognitiva é uma das mudanças mais importantes dos últimos 50 anos em nossa vida intelectual. Trata-se de um campo que desafia muitas teorias filosóficas tradicionais, e que cujas formulações não podem ser desconsideradas pelos filósofos. Também a reflexão filosófica tem muito a contribuir à própria ciência cognitiva. A filosofia brasileira ainda continua, em geral, dentro de um paradigma muito tradicional da filosofia "pura", que invariavelmente despreza a interação com outras disciplinas. A minha impressão é de que os jovens estudantes de filosofia são muito mais abertos a este tipo de diálogo, e talvez, a filosofia brasileira no futuro possa deixar de ter esta orientação exclusivamente histórica e "pura".

As obras de Marcelo Dascal, provavelmente o filósofo brasileiro mais conhecido no exterior, são um exemplo perfeito de como a filosofia, a história da filosofia, e a ciência cognitiva podem, através de um diálogo constante, levar a novos resultados profundos na nossa reflexão sobre as questões fundamentais de mente, linguagem, comunicação, cognição etc. Dascal é um grande especialista em filosofia do século 18, especificamente a de Leibniz mas, para ele, estudar estes grandes pensadores do passado não é ser um antiquário intelectual, mas sim uma maneira de tratar dos problemas fundamentais da filosofia, e da nossa vida intelectual, hoje e aqui, no começo do século 21. Espero que o colóquio contribua para este processo.

Michael B. Wrigley é professor do Departamento de Filosofia da Unicamp e Membro do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp. Ph.D. em Filosofia pela Universidade de Califórnia, Berkeley, e B. Phil. em Filosofia pela Universidade de Oxford. Suas áreas de pesquisa são a filosofia da lógica e matemática, filosofia da mente e ciência cognitiva. Prepara duas coletâneas de traduções de artigos clássicos sobre filosofia da mente e ciência cognitiva.

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