Edição nº 670

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 26 de setembro de 2016 a 02 de outubro de 2016 – ANO 2016 – Nº 670

Precarização atinge força de
trabalho do IBGE, revela estudo

Pesquisa de economista aponta supressão de direitos
trabalhistas e lógica flexível e privatista na instituição

Um estudo apontando as principais mudanças ocorridas nas relações de trabalho no serviço público federal brasileiro nos últimos 25 anos, com a introdução e intensificação neste período do uso de formas atípicas ou vulneráveis de inserção de trabalhadores, a exemplo da contratação por tempo determinado e da terceirização: é o que traz a dissertação de mestrado da economista Ana Carla Magni, orientada pelo professor José Dari Krein, do Instituto de Economia.

Ana Magni atua nas pesquisas econômicas estruturais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e, no momento, trabalha na Pesquisa Anual de Serviços, que fornece um retrato desse setor econômico (importante componente do PIB) sob a ótica da oferta (receitas, despesas, ocupação, salários, etc.). Nesta condição, a autora introduz na dissertação o caso desta instituição (vinculada ao Ministério do Planejamento), onde mais da metade da força de trabalho que opera nas rotinas contínuas já é formada por trabalhadores precários.

“Houve duas questões principais que me motivaram a estudar o caso do IBGE: o fato de ser uma instituição absolutamente essencial ao conhecimento da realidade brasileira – já que produz boa parte das informações oficiais – e a constatação de que a forma de produzir, o quadro funcional e as relações de trabalho mudaram muito nos últimos anos. Quis compreender se tal processo era algo típico do IBGE ou se estava associado a uma transformação mais geral no serviço público federal brasileiro”, explica a economista, que concedeu por e-mail a entrevista abaixo.

Jornal da Unicamp – Pode nos ajudar a mensurar a importância do IBGE para o planejamento e implantação de políticas no país?

Ana Carla Magni – Sem os indicadores produzidos no IBGE – que se referem a um leque cada vez mais amplo de temas – é impossível planejar ou executar políticas públicas. Pesquisas domiciliares, censitárias ou não, permitem conhecer indicadores demográficos, condições socioeconômicas, a realidade do mercado de trabalho, os hábitos de consumo da população, entre tantas outras questões; pesquisas econômicas possibilitam compreender a estrutura produtiva, a contribuição de cada setor para uma série de variáveis, e são fundamentais para a construção oficial das contas nacionais, do PIB; os vários indicadores de preços permitem o acompanhamento dos processos inflacionários; e assim por diante.

Com o conjunto de dimensões abrangidas pelo IBGE (econômica, social, política, territorial, ambiental, etc.), tanto estatísticas como geográficas (um diferencial em relação a institutos do mundo todo), é possível conhecer os problemas, formular a política macroeconômica e as políticas sociais, mensurar e destinar recursos às várias esferas de governo; ou, em suma, incidir sobre a realidade, no sentido de operá-la e de transformá-la. Por isso foram considerados aspectos da produção do IBGE e de suas relações internas de trabalho, revelando limites e possibilidades. Pela importância do que ali é produzido e pelos seus impactos, a forma de produzir, ou as condições de produção, se projetaram como questões relevantes.  

JU – As mudanças do trabalho no serviço público federal se dão de forma geral ou há especificidades por áreas?

Ana Carla Magni – A busca por maior flexibilidade – na forma de contratar, utilizar ou remunerar os trabalhadores – tem modificado as relações de trabalho em todo o mundo, ainda que o capitalismo brasileiro tenha suas especificidades. O estudo, respaldado em vasta bibliografia referente ao mundo do trabalho, aponta que o que vem ocorrendo no IBGE é parte de um processo geral de mudanças no capitalismo mundial, em sua atual fase de acumulação, que atingem tanto o setor privado como o público. Assim, desde os anos 90, o setor público federal brasileiro vem passando por significativas transformações.

Além de uma série de medidas legais mais pontuais, a Reforma Administrativa de 1998, a Lei de Responsabilidade Fiscal de 2000, as sucessivas mudanças na Previdência feitas por diferentes governos, entre outras, não só conduziram ao desmonte de direitos trabalhistas anteriormente constituídos, como impuseram uma lógica flexível e privatista ao Estado. Após 2003, ainda que com movimentos mais contraditórios, sem o reconhecimento amplamente documentado dos governos dos anos 90, essa lógica não se modificou substancialmente. Mudou a densidade de aplicação do modelo, até pela violência das contrarreformas do perío- do anterior; mas ele seguiu sendo aplicado.

Mesmo com uma nova leva de concursos, fundamentais para restabelecer alguma capacidade de ação ao Estado, parte importante da expansão nos serviços públicos, particularmente em algumas áreas, deu-se com base na ampliação numérica da inserção de trabalhadores por meio de formas instáveis e precárias. De maneira geral, são contratos associados a restritos direitos, a menores salários e benefícios, e em certos casos submetidos a certa invisibilidade. Proliferaram nos últimos anos a contratação temporária, a terceirização, as consultorias, o trabalho estágio, algo que o estudo comprova, quando possível mostrando a evolução recente do quantitativo de ingressos, ou alternativamente revelando o significativo crescimento real dos gastos diretos do Executivo Federal com esses tipos de contratos.

Tal movimento é geral e eventuais especificidades se dão muito mais na dimensão – que é diferenciada para cada órgão – do que na existência do fenômeno. O IBGE, vinculado ao Ministério do Planejamento, por exemplo, é o grande destaque na contratação temporária, o que dá mais um motivo para estudá-lo; assim como a Educação é fortemente permeada tanto pelo contrato temporário, como pela terceirização. Em alguns ministérios, se gasta mais com formas precárias do que com a folha de pagamento dos estáveis... 

JU – No IBGE, particularmente, quais foram as mudanças principais?

Ana Carla Magni – Desde o início dos anos 90, está em curso no IBGE um processo de esvaziamento do quadro permanente, enquanto, concomitantemente, cresce a força de trabalho precária em todos os projetos e pesquisas. Isso não se deu por conta de mudanças tecnológicas, já que sua introdução coincidiu com a ampliação do plano de trabalho da instituição. Prova disso é que, se no início da década de 90 havia 13.612 servidores efetivos, em abril de 2016 havia um número pouco inferior de trabalhadores, distribuído entre 5.318 ativos permanentes (RJU), 5.449 temporários (então já consolidados como maioria), 590 estagiários e algo em torno de mil servidores terceirizados nas diferentes áreas.

Aí não estão contabilizados os trabalhadores contratados por tempo determinado para grandes operações censitárias, que sempre foram necessários ao instituto, mas operam sob outras condições contratuais. Está se falando somente de servidores que atuam em projetos de caráter contínuo. Afinal, não há nada de extraordinário ou temporário em pesquisas como a PNAD Contínua ou nos índices de preços, por exemplo, o que então contraria o que preveem as portarias do Ministério que autorizam a contratação – atuar em “pesquisas econômicas e sociodemográficas de caráter temporário” – e também o texto da Lei 8.745/1993, já que não há características de excepcional interesse público.

Essa situação construiu uma heterogeneidade extrema entre trabalhadores que, na maior parte das vezes, desempenham exatamente as mesmas funções nos locais de trabalho.

Mas se as formas atípicas de contratação são claramente marcadas pela insegurança e vulnerabilidade, a maior instabilidade hoje perpassa todo o processo de produção no IBGE, atingindo também os servidores efetivos. Isso porque, mirando sob outro aspecto, as relações de trabalho cada vez mais são permeadas por uma lógica típica do setor privado, ou pela adoção, em vários aspectos, da lógica gerencialista. Maiores controles, intensificação do uso do trabalho, maior flexibilização das tarefas sob responsabilidade dos trabalhadores, além da recorrente repressão e retaliação a movimentações e expressões coletivas organizadas (são bloqueados e-mails com assuntos sindicais e até assembleias dos trabalhadores são criminalizadas), são alguns dos exemplos detalhados ao longo do trabalho, que configuram também mudanças importantes que afetam a todos, estáveis e não estáveis.

JU – Que riscos vê à qualidade dos serviços prestados pelo IBGE em decorrência das mudanças nas relações de trabalho?

Ana Carla Magni – No estudo defendo a ideia de que, ao precarizar o trabalho, ou as condições de prestação do serviço, se contribui para a precarização do serviço público em si. No caso do IBGE, não há como produzir devidamente indicadores importantes em meio à instabilidade. O trabalho no instituto é muito específico, requer construção e retenção de conhecimentos de estatística, economia, contabilidade, direito, habilidades interpessoais. Se essa formação for precária, questões como o nível de recusa dos informantes ou a inadequação da coleta ou do tratamento dos dados se tornam problemas para a qualidade das informações.

Como garantir tal retenção de conhecimento (tanto explícito como tácito), entretanto, se ao trabalho temporário necessariamente está associada grande rotatividade, seja pelo tempo limitado dos contratos ou pelas condições contratuais, particularmente ruins no caso do IBGE? Se atualmente mais de um terço dos servidores efetivos recebe abono permanência, e cerca de 60% têm mais de 26 anos de serviço? São mais de 3 mil servidores (entre os pouco mais de 5 mil estáveis) que podem se aposentar a qualquer momento, configurando uma situação caótica de falta de pessoal devidamente treinado e qualificado, de impossibilidade de repassar o que se acumulou.

Além disso, a lógica da instabilidade orçamentária, associada aos contingenciamentos no setor público, põe em risco vários projetos importantes do instituto. Nos últimos anos, foram canceladas ou adiadas pesquisas fundamentais como a Contagem da População, o Censo Agropecuário e a Pesquisa de Orçamentos Familiares. Todas com impactos relevantes, seja no cálculo dos repasses federais a estados e municípios (muitos dos quais dependem fortemente desses recursos para construir políticas públicas), ou no cálculo da inflação (um indicador com repercussão em inúmeros contratos públicos e privados), ou no dimensionamento da realidade da produção no campo. O último Censo Agro mostrou a importância dos pequenos produtores para a alimentação das famílias brasileiras. Não conhecer essas realidades, ao não realizar essas e outras pesquisas, é prejudicial, portanto, para toda a sociedade. 

JU – E diante das medidas de contenção anunciadas pelo governo Temer, acha que o IBGE será especialmente atingido? Quais seriam as perspectivas futuras para o Instituto?

Ana Carla Magni – Como o estudo conclui, já são mais de 25 anos de planejamento e aplicação de um modelo que envolve uma série de elementos desestabilizadores do Estado, de sua capacidade de formular e executar políticas públicas, bem como dos trabalhadores do setor e de sua organização e resistência. Porém, projetos em curso, como o PLP 257, a PEC 241, a reforma da Previdência, vão mais além. Representam uma nova leva de contrarreformas que alteram estruturalmente todos os serviços públicos do país. Preveem maiores contingenciamentos, tanto nos recursos orçamentários como no pessoal efetivo; a derrocada de vários direitos dos servidores; maior arrocho salarial; privatizações; e tudo isso não só com repercussões em nível federal.

Sem atacar os elementos principais de deterioração da capacidade do Estado, como a dívida pública, trata-se, em seu conjunto, da mais ampla contrarreforma administrativa já prevista para o Estado brasileiro, já que o “ajuste fiscal” da União está vinculado ao aperto de todos os entes federativos, afetando serviços e servidores de outras esferas de governo.

Nesse contexto adverso, gostaria de acreditar que o IBGE pudesse ficar fora e que, com um olhar mais atento, se compreendesse a necessidade de restabelecer suas condições técnicas e operacionais. Infelizmente, não é o que se desenha. Me parece que todo o serviço público será negativamente afetado, conduzindo à paralisia do Estado e ao crescimento da lógica privada, dos ganhos em cima do que o Estado não fornece ou fornece mal, o que empobrece ainda mais a população que mais necessita de serviços públicos. Que as perspectivas para o IBGE são de agravamento da redução do quadro próprio, na medida em que se processem novas levas de aposentadorias sem os necessários concursos de reposição. E que esse corpo técnico qualificado seguirá sendo substituído por formas vulneráveis e instáveis de contrato, levando à imposição de novos limites à condução do trabalho do instituto.

É preciso que se diga, entretanto, que a piora - ou mesmo a não reversão - da situação atual do IBGE inviabilizaria o cumprimento de sua missão institucional e, portanto, comprometeria a construção de um retrato adequado da realidade brasileira e as possibilidades de transformá-la. Trata-se de um exemplo muito concreto de que a precarização dos serviços públicos acaba por comprometer o futuro do País.

Publicação

Dissertação: “Flexibilização e precarização nos serviços públicos: o caso do IBGE”
Autora: Ana Carla Magni
Orientador: José Dari Krein
Unidade: Instituto de Economia (IE)


 

Pesquisa expõe corrosão do SUS


O Sistema Único de Saúde (SUS) está sendo corroído “por dentro”, em um processo gradual, porém permanente de mudanças mais ou menos sutis, que visam desmanchar a solidez institucional com que ele foi concebido na Constituição de 88 – e, assim, favorecer cada vez mais o setor privado de saúde, com respaldo do Estado brasileiro. É o que conclui a socióloga Letícia Bona Travagin, em dissertação de mestrado orientada pelo professor Eduardo Fagnani e apresentada no Instituto de Economia (IE). Em sua pesquisa, a autora mostra a influência do discurso privatista do Banco Mundial na década de 90 e, dentre inúmeros mecanismos visando esta desestruturação, ela analisa especialmente as renúncias fiscais e os contratos com organizações sociais (OS) no setor de saúde.

Letícia Travagin afirma que a disputa entre Estado e mercado de saúde, colocada pela ideologia neoliberal desde a crise do Welfare State (Estado do Bem-Estar Social) europeu na década de 1970, mostra-se muito acirrada no Brasil, sobretudo nas áreas de seguridade social e da saúde. “O conflito se manifesta de duas formas no país: com a aceitação rápida da ideologia neoliberal pelo mercado de saúde, já que o setor possui um histórico privatista bastante forte; e pela reorientação política, ideológica e econômica no Brasil na década de 1990. Eu quis demonstrar na dissertação que o Estado brasileiro atua como promotor do setor privado de saúde, em detrimento do SUS.”

Segundo a socióloga, a desestruturação do sistema de saúde não é coisa nova nem exclusiva do Brasil, inserindo-se em um programa mais amplo de desestruturação dos grandes sistemas de proteção social na Europa e nos países subdesenvolvidos. “A reorientação macroeconômica da década de 90 trouxe discursos direcionados a esses países sobre gestão de saúde, havendo documentos do Banco Mundial específicos para o Brasil: estavam preocupados com a Constituição de 88, que foi desenhada pelo movimento sanitarista, tratando sobre seguridade social e prevendo um SUS grande, forte, universal e gratuito. Os documentos do Banco apontam, explicitamente, que o Estado brasileiro não poderia sustentar um sistema deste porte, que estava gastando demais e que deveria se limitar a regulamentar e incentivar o mercado de saúde.”

A autora da dissertação acrescenta que o histórico privatista do sistema de saúde se consolidou na ditadura militar, quando o modelo vigente era a compra de serviços privados pelo Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). “O Inamps comprava o serviço de saúde do setor privado e emitia uma fatura para o Estado. Este modelo que elevava o setor privado e rebaixava o setor público foi institucionalizado na ditadura. Mais tarde, com a implantação da macroeconomia ortodoxa, Luiz Carlos Bresser-Pereira, ministro da Administração e Reforma do Estado de Fernando Henrique, trouxe da Inglaterra, em 1995, a ideia da ‘publicização’: a transferência de serviços estatais para o mercado, não apenas em saúde, como em educação, pesquisa científica, cultura, etc. A lógica é reduzir o tamanho do Estado, que passa a pagar pelo provimento destes serviços.”

Eixos do desmonte
Na opinião de Letícia Travagin, diante da série de golpes no plano constitucional contra o SUS iniciada nos anos 90, seria mais correto dizer que o sistema sequer foi implantado. “O desmonte se dá em todos os eixos do SUS, como de financiamento, gestão de recursos humanos, atenção básica e regionalização da saúde. Como são muitos para analisar, eu privilegiei dois eixos, sendo um deles a questão do financiamento, que é gritante para um sistema dito universal: de tudo o que se gasta com saúde no Brasil, mais da metade é privado e menos da metade, público – está muito abaixo dos países desenvolvidos, inclusive do Reino Unido, que também possui um sistema de saúde universal.”

O segundo eixo investigado pela autora é da contratação de organizações sociais, questão que ela considera mais preocupante, por ser bem menos conhecida. “A OS é uma empresa de direito privado que assume um estabelecimento público de saúde. A Constituição prevê um setor complementar a ser contratado pelo SUS, visando prover ações de saúde e aumentar a cobertura quando as suas instalações forem insuficientes. Acontece que a OS não é complementar, é substitutiva: sai a gestão pública e entra a gestão privada, e sem controle de gastos, já que o contrato é superflexível, a fiscalização extremamente frágil e o dinheiro público utilizado conforme as condições de mercado, com dispensa de licitação. É uma relação completamente deletéria ao sistema.”

A dispensa também de concurso público, observa Letícia, resulta em sérios problemas trabalhistas, visto que a transição para a gestão de OS prevê a possibilidade de exonerar os servidores públicos. “Em Campinas, recentemente, o Hospital Ouro Verde passou para uma OS, que assumiu todas as funções hospitalares. A Prefeitura simplesmente repassa a verba municipal para a OS, e os funcionários não têm vínculo de servidor público. Usa-se dinheiro do SUS para favorecer o mercado da saúde, nas condições que essas organizações quiserem. Esse mecanismo é muito pernicioso em tempos de crise fiscal: rebaixam-se os gastos públicos transferindo-os para o setor privado, e também para que os gastos não esbarrem na Lei de Responsabilidade Fiscal.”

A socióloga afirma que o gasto tributário (ou renúncia fiscal) é um mecanismo mais conhecido, em que o Estado oferece uma série de desonerações e incentivos fiscais não apenas para quem utiliza a saúde privada (planos de saúde, mas não só), como também para a indústria de medicamentos, por exemplo. “O problema é que isso diminui a arrecadação, e num contexto de SUS subfinanciado; se o sistema tem menos dinheiro do que deveria, diminuir a arrecadação é muito contraditório.”

Na visão da autora da pesquisa, a renúncia fiscal também é regressiva, principalmente quando se trata de pessoa física, que ganha desconto de imposto ao pagar plano de saúde. “Isso significa que o Estado, indiretamente, está favorecendo a demanda de planos de saúde. A renúncia fiscal girava em torno de R$ 20 bilhões até 2012/2013, com previsão de R$ 31 bilhões para 2016; é muito dinheiro que o Estado vai deixar de arrecadar. Além disso, ela é concentrada, favorecendo as OS e os ricos, classe média e classe média alta do Sudeste e das capitais – o setor privado de saúde está concentrado nas regiões mais ricas e com maior dinamismo no mercado de trabalho, porque depende de renda. É algo muito regressivo, espacialmente e em termos de renda.”

Conclusão preocupante
A conclusão de Letícia Travagin é de que o SUS passa por um processo gradual, mas permanente de corrosão, existindo apenas formalmente no papel. “É como uma estrutura porosa, que vem ganhando pequenos furos desde a década de 90. Para refazer o SUS é preciso voltar atrás em tudo o que foi desconstruído durante 26 anos: valorizar o financiamento e a gestão de recursos humanos, promover a atenção básica, regionalizar a saúde. Na atual perspectiva, isso é problemático. Quando anunciam uma reforma privatista, eu me preocupo muito em relação às organizações sociais, desconhecidas até por alguns médicos sanitaristas, que não sabem a diferença entre gestão pública, gestão complementar e gestão de OS.”

A economista insiste que as OS representam um problema escondido, não divulgado, e que tende a aumentar chegando a cidades menores. “Hoje temos cerca de 260 estabelecimentos de saúde geridos pelas OS no Brasil. Parece pouco, mas é preciso observar que esses estabelecimentos estão concentrados no Sudeste e capitais. Os dados até o ano passado mostram uma curva de crescimento acentuado e, nesta situação de crise fiscal e limitação de gastos do Estado, a opção mais fácil é jogar a saúde para o setor privado.”

A autora termina a dissertação demonstrando sua preocupação e pessimismo diante da situação política e econômica vivida hoje, quando se anuncia uma reforma privatista na saúde e em outros setores de interesse social. “O Estado se eximir da gestão da saúde representa um problema sério em qualquer país – e pior no nosso, por causa das características de renda e epidemiológicas típicas de um país de desenvolvimento tardio e incompleto. Nenhuma outra esfera vai assumir a responsabilidade de prover saúde. O setor privado não faz o que o Estado faz, é infactível pensar que vai cumprir a demanda de saúde da população. No Brasil, todas as soluções em saúde levam ao SUS.”

Publicação

Dissertação: “O Estado e o setor privado de saúde no caminho da desestruturação gradual do SUS”
Autora: Letícia Bona Travagin
Orientador: Eduardo Fagnani
Unidade: Instituto de Economia (IE)