Edição nº 670

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 26 de setembro de 2016 a 02 de outubro de 2016 – ANO 2016 – Nº 670

Linchamento virtual, violência real


O nome da dona de casa Fabiane Maria de Jesus talvez hoje passe despercebido. Quem irá se lembrar o quanto, em 2014, se falou sobre ela nas redes sociais ou, mais especificamente, sobre sua morte. Fabiane, mãe de dois filhos, 33 anos, foi linchada por moradores do bairro Morrinhos IV depois de confundida com uma sequestradora de crianças quando voltava para casa, na cidade paulista de Guarujá. A agressão foi devidamente registrada em fotos e vídeos que viralizaram nas redes sociais.

O motivo da “confusão” dos linchadores: uma postagem em uma página noticiosa da cidade, no Facebook, que divulgava um retrato falado da suposta sequestradora, que estaria fazendo vítimas na cidade. Mais tarde soube-se que nem mesmo o desenho correspondia à denúncia. Tratava-se de um retrato feito dois anos antes, no Rio de Janeiro, relacionado a outro caso. Tratava-se de um boato. Sempre houve boatos, é certo, sempre houve linchamentos, mas as redes sociais são novas. E por redes sociais entenda-se potência, tudo elevado ao quadrado.

Neste caso um boato, que começou na rede, teve consequências trágicas fora dela. Outras vezes, ocorre o inverso. Algum acontecimento do mundo “real” que vai parar no virtual, mas que também resulta em consequências para os envolvidos. São ocorrências do que a própria mídia chama de “linchamento virtual”, que pode resultar em morte ou dano físico, como no caso do Guarujá, ou moral, como foi o caso de Justine Sacco.

Diretora sênior de comunicações em uma empresa norte-americana, prestes a embarcar para sua viagem de férias à África do Sul, Justine postou no Twitter: “Estou indo para a África. Espero que eu não pegue Aids. Brincadeira. Eu sou branca! ”. Quando desceu do avião, sua mensagem já era o assunto mais comentado entre todos os usuários da rede. Ela não pode se hospedar no hotel sob ameaça de que se o fizesse os funcionários entrariam em greve, perdeu seu emprego e luta – até agora – para ser esquecida.

Uma reflexão sobre o tema realizada pela pesquisadora Karen Tank Mercuri Macedo supõe que há uma série de contradições, ou paradoxos, envolvidos nos linchamentos virtuais. São essas contradições que funcionariam como engrenagem para as relações sociais mediadas pelas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). Karen, que também é e funcionária da Faculdade de Tecnologia (FT) da Unicamp, definiu algumas delas em sua abordagem: público e privado, virtual e real, liberdade e controle, prazer e poder justiça popular e justiça institucional, liberdade de expressão e crime contra a dignidade humana.

A dissertação “Linchamentos virtuais: paradoxos nas relações sociais contemporâneas”, orientada pela docente Carolina Cantarino Rodrigues, foi defendida no programa de Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas na Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) de Limeira. “O conjunto de questões mostra como as práticas e eventos relacionados ao linchamento virtual põem em xeque aquilo que habitualmente pensamos a partir das oposições entre virtual e real, público e privado, etc. Por isso preferimos utilizar a preposição “e” em vez de “versus” para demostrar que ocorrem de modo simultâneo”.

Os casos pesquisados por Karen foram reproduzidos em matérias jornalísticas on-line nos últimos dois anos e também no livro Humilhado: como a era da Internet mudou o julgamento público, do jornalista britânico Jon Ronson. Reunidos em um blog, de autoria de Karen, oito foram selecionados para a dissertação e usados para ilustrar os paradoxos, analisados de forma interdisciplinar, envolvendo conceitos da Filosofia e das Ciências Humanas e Sociais.

Além dos casos Justine e Fabiane, foram reunidos: o caso de nordestinos alvos de intolerância na campanha presidencial de 2014; da norte-americana Alicia Ann Lynch, que publicou no Twitter uma fotografia onde aparecia fantasiada para uma festa como “vítima da maratona de Boston”; o caso da bancária Fabíola, que foi filmada num motel em episódio de traição e teve o vídeo disponibilizado na internet; o caso de um suposto agressor de mulheres, exposto num blog feminista; o caso de uma enfermeira em Tiradentes (MG) que foi filmada num posto de saúde numa atitude grosseira contra os usuários; além do caso do professor Idelber Avelar, acusado de assédio.

Conexão
Muitos não percebem, mas a partir do momento em que uma pessoa liga um computador conectado à internet e acessa uma rede social, todos os seus cliques serão monitorados. O nome desse fenômeno é algoritmo, uma série de códigos baseados em inteligência artificial que estão no Facebook e em outros sites e que, com base na navegação do usuário, relaciona conteúdos semelhantes para serem mostrados.

“Oferecer uma plataforma gratuita onde o usuário possa se conectar com amigos distantes e conhecer pessoas do mundo inteiro é um bom atrativo. Todavia, ao mesmo tempo em que se incita a circulação e a sensação de prazer dos usuários, empresas e governos potencialmente os vigiam e controlam”, observa Karen.

No virtual, há mudanças nos modos de ser, agir, pensar e sentir.  Nas redes sociais, o pensamento automatizado predomina. E para qualquer ação equivocada, sempre haverá alguém conectado, em qualquer lugar do mundo, para ler, curtir, comentar, compartilhar. “E nem precisa ser da mesma rede social, visto que é possível o compartilhamento entre redes de relacionamento on-line”, ressalta a pesquisadora.

Muitas vezes não dá tempo de se arrepender e nunca se sabe qual será o alcance de uma publicação. “Justine Sacco pensou que sua mensagem iria apenas para seus 170 seguidores, porém foi a mais vista no mundo pelo Twitter. O mesmo aconteceu com Alicia, que não imaginava que sua foto chegaria inclusive para as próprias vítimas do atentado de Boston”.

Nos casos de linchamentos virtuais, o virtual e o real ficam embaralhados. “Acusações e julgamentos ocorridos em redes sociais são deslocados para a vida das vítimas, trazendo consequências nas relações sociais fora da internet”.

O hábito de fazer da rede social uma espécie de diário digital on-line também faz com que haja uma confusão na percepção de quais assuntos podem ser falados publicamente. “Há um enfraquecimento do conceito de público e privado. A privacidade passou a ser exteriorizada, principalmente nas redes sociais. O medo agora não é o de que o segredo possa ser revelado, mas sim que o outro não veja ou não curta suas publicações”.

Como também é característica nas redes sociais perseguir padrões de comportamento, quando um grupo passa a usar a ferramenta para denunciar, xingar e julgar, muitos usuários acabam aderindo e, consequentemente, contribuem para alastrar os casos de linchamentos virtuais.

No “caso Fabíola”, se não fosse a presença da Internet, o fato talvez ficasse somente entre familiares e amigos. “Ao ser externalizado nas redes sociais, como uma espécie de vingança, abriu-se a possibilidade para comentários e julgamentos de milhares de desconhecidos”, reflete Karen.

O papel dos comentários é bastante relevante para legitimar o que foi dito na postagem inicial, segundo a pesquisa. “Ao cair na rede, um assunto passa por uma inspeção dos próprios usuários do que é aceitável ou não”, reitera. A postagem de Justine, por exemplo, foi compartilhada com dizeres que já a condenavam. Já no caso dos nordestinos, havia os dois lados. “Ao recorrer às redes sociais para externar alguma indignação procura-se por semelhantes que engrossem o coro e se juntem à massa, para que nela deixem vir à tona toda sua raiva”.

Como as TICs já fazem parte do cotidiano das pessoas, salienta a autora, “cabe-nos expor à sociedade que existem sempre – e no mínimo – dois lados a serem considerados nos pronunciamentos e comportamentos on-line”.

Publicação

Dissertação: “Linchamentos virtuais: paradoxos nas relações sociais contemporâneas”
Autora: Karen Tank Mercuri Macedo
Orientadora: Carolina Cantarino Rodrigues
Unidade: Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA)