Edição nº 610

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 10 de outubro de 2014 a 19 de outubro de 2014 – ANO 2014 – Nº 610

Quanto mais cedo, melhor


Pesquisa de doutorado da área de música do Instituto de Artes (IA) apontou que crianças ainda pequenas, com idade entre seis e nove anos, já são sensíveis à tonalidade e a elementos da harmonia (acordes), possuindo diferentes habilidades na percepção harmônica.

O estudo – de autoria da pesquisadora Elizabeth Carrascosa Martínez, orientado pela professora Beatriz Senoi Ilari e coorientado pelo professor Claudiney Carrasco – sugeriu que a sensibilidade é maior quando se trata de canções familiares, antes de as crianças conseguirem generalizar o conhecimento para as canções não familiares. Neste caso, elas são capazes de perceber as mudanças de acordes em progressões harmônicas sem melodia, para depois captarem alterações em estímulos onde há melodia.

O objeto de análise foi o Projeto Guri, um programa socioeducativo de ensino coletivo de música, e aconteceu no âmbito da Associação Amigos do Projeto Guri (AAPG). Foram avaliados 74 alunos especificamente do polo de Sorocaba, interior de São Paulo.

Segundo a autora, além das características cognitivas ligadas à idade, fatores como complexidade do estímulo e características rítmicas também podem influir na percepção harmônica das crianças, uma das habilidades musicais que mais demora a ser desenvolvida, por ser uma das mais complexas e sofisticadas.

Entendida neste estudo como o conhecimento implícito da estrutura da harmonia da música ocidental, a percepção harmônica compreende o conhecimento da probabilidade de sucessão dos acordes em sequências e cadências, conforme as normas que regem a harmonia.

“Componente essencial da música tonal ocidental, a harmonia é um dos mais importantes elementos da linguagem musical e inclui conceitos como as relações entre as notas e acordes dentro de uma tonalidade, perceber desvios e mudanças de acordes e funções harmônicas em progressões simples”, descreve.

Na amostra, o desenvolvimento se relacionou mais à maturação e à exposição cumulativa à música da cultura dos avaliados. Também o contexto familiar enriquecedor influiu no desempenho, do mesmo modo que o apoio da família e o contexto sociocultural mostraram ser de elevado valor. Há evidências ainda de que o treino pode facilitar ou acelerar o processo.

A doutoranda lamenta que a percepção harmônica não faça parte dos currículos de música dos seis aos nove anos em muitas escolas, por julgarem-na difícil. “O ideal é que os currículos de música incluam tais conteúdos e que os educadores trabalhem atividades de percepção dos elementos da harmonia em suas aulas, de modo lúdico e manipulativo”, ressalta.

A metodologia de ensino coletivo, preferida pela maioria dos pais, alunos e educadores deste estudo, pode conferir vantagens à percepção harmônica, desde que se realize um treino específico, pelo fato de as crianças adentrarem, desde o início, uma dimensão musical polifônica. “A execução de peças a diferentes vozes permite uma maior vivência dos elementos da harmonia e é relevante para a educação musical no ensino coletivo de instrumentos”, acredita.

As pesquisas nessa área ainda são incipientes no Brasil, uma vez que o acesso ao ensino regular de educação musical é limitado para grande parte das crianças. Na pesquisa, 82,4% dos participantes não tinham aulas de música na escola.

Os testes de percepção harmônica foram iguais para todas crianças que aprendem com ensino coletivo de instrumentos, embora não se tenha comprovado que o tempo de estudo de música nesse projeto influísse no desempenho das tarefas de percepção harmônica.

O objetivo de Elizabeth foi descrever, por um lado – mediante um teste de percepção harmônica – como se desenvolve o senso de tonalidade e a percepção de crianças de classe média-baixa que fazem iniciação musical e ensino coletivo de instrumento, em relação a duas tarefas: com uma canção conhecida e com canções desconhecidas.

Por outro lado, o estudo procurou medir o desenvolvimento da percepção harmônica dessas crianças num estudo de corte transversal. As variáveis foram idade, sexo, tempo de estudo de música, tipo de instrumento estudado, tipo de metodologia de ensino usada e o contexto socioeconômico e cultural familiar dos participantes.

 

Metodologia

Para a coleta dos dados, além do teste de percepção harmônica, foram feitas entrevistas com pais e responsáveis, com as crianças e com os seus educadores; e observação das aulas dos educadores no Projeto Guri.

O desenvolvimento da percepção harmônica na amostra foi medido comparando-se os resultados do teste de percepção harmônica, aplicado em um grupo na faixa etária de seis a sete anos e em outro de oito a nove anos. Eles foram submetidos a uma única sessão de testes com duração de 25 minutos, no início do segundo semestre de 2012.

A primeira tarefa consistiu em detectar mudanças na última nota/acorde da canção folclórica brasileira Cai, cai, balão, em relação à versão original. A canção foi apresentada nas modalidades melodia, melodia acompanhada e harmonia. Cada uma delas foi mostrada no teste com quatro finais diferentes: padrão, fora da tonalidade, fora da harmonia e padrão invertido.

A segunda tarefa procurou detectar mudanças de acordes no acompanhamento de uma canção não conhecida, tocada na modalidade de melodia acompanhada e na modalidade de harmonia.

 

Resultados

Houve diferenças significativas nos resultados dos dois grupos etários, embora tivessem conhecimento de progressões harmônicas adequadas – ou seja, acordes que se seguem uns aos outros – e conhecimento das notas que pertencem à tonalidade. Os participantes do grupo B, de maior idade, obtiveram escores mais altos que os escores do grupo A.

Tanto as crianças de seis anos como as de nove anos da amostra perceberam diferenças nos elementos da harmonia e da tonalidade no contexto de uma canção familiar. As meninas tiveram, comumente, melhor desempenho na tarefa que os meninos.

Nas entrevistas, a maior parte dos pais (72%) declarou gostar muito de escutar música e mais da metade (75%) escutava música diariamente; 88,9% dos pais declararam ser importante encorajar os filhos a gostar de música; a maioria dos pais (82%) disse preferir que os filhos estudassem música em grupo.

A maioria das crianças (82,4%) não tinha aulas de música na escola. Declararam que preferiam aprender música em grupo (79,7%) e somente 14,9% preferiam aulas individuais de música, sendo a sociabilidade ou relacionamento com os colegas (37,3%) o motivo de preferirem aprender música em grupo, seguido dos benefícios para a aprendizagem (33,9%).

Valores altos na variável “contexto familiar”, que incluía aspectos como formação escolar dos pais, renda familiar e envolvimento da família em atividades musicais, entre outros, identificados como um contexto familiar enriquecedor, tiveram um melhor desempenho na primeira tarefa.

 

Carreira

Ter participado desde 1992 como musicista da “La artística” da cidade de Buñol, Valencia (Espanha), uma banda de prestígio internacional, marcou a vida e a carreira de Elizabeth. Nesta etapa, teve a oportunidade de experimentar os benefícios da prática coletiva de música nos ensaios e concertos da banda.

Também ter mudado para o Brasil em 2009, para integrar o Projeto Guri – do qual foi, primeiro, coordenadora da área de sopro-madeira e, depois, assessora pedagógica – possibilitou-lhe continuar o trabalho como educadora musical e aprofundar os conhecimentos sobre o ensino coletivo de instrumentos, no âmbito da atenção a crianças em situação de risco de exclusão social.

“Só uma prática educacional musical de qualidade pode levar a transformações sociais, pois, sem a dimensão estética, o desenvolvimento de habilidades artísticas e a aquisição de novos conhecimentos, não há transformação”, defende Elizabeth.

A pesquisadora tem visto um interesse crescente pela música comunitária e pelo ensino coletivo de instrumentos nos últimos anos. Contudo, na literatura, não encontrou pesquisa sobre o ensino coletivo de instrumentos que avalie a fundo o desenvolvimento das habilidades musicais nos participantes deste tipo de prática pedagógica, especialmente quanto à percepção auditiva.

Ainda que alguns trabalhos já tenham analisado a percepção harmônica em crianças de quatro e de cinco anos canadenses, norte-americanas e argentinas, nenhum estudo abordou as características das crianças brasileiras. Por isso, é fundamental continuar fazendo investigações deste tipo, incentiva a pesquisadora, que tentem explicar o desenvolvimento com relação a circunstâncias sociais e contextos culturais específicos no país. Os estudos sobre o tema em geral advêm de investigações estrangeiras.

“Procuramos ajudar na compreensão de alguns aspectos que podem colaborar para uma instrução adequada, sem renunciar a aspectos da harmonia musical nestas idades”, afirma Elizabeth, que é professora-associada na Universitat de València. “Que este estudo sirva de marco para trabalhos longitudinais acerca da percepção em geral e a percepção harmônica em particular de crianças brasileiras.”

 

Um celeiro de músicos-mirins

O projeto Guri foi criado em 1995 pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo e desenvolvido por duas organizações sociais de cultura: a Santa Marcelina Cultura e a Associação Amigos do Projeto Guri (AAPG). É considerado o maior projeto sociocultural do Brasil, atendendo anualmente, somente na AAPG, a cerca de 50 mil crianças, na faixa etária de seis a 18 anos, em 410 polos de 320 municípios do Estado, incluindo as unidades da Fundação CASA.

Crianças, adolescentes e jovens da comunidade local, com idade entre seis e 18 anos, chegam ao projeto através de cursos livres de iniciação musical, canto coral, cordas, sopros e percussão. As aulas são gratuitas e ocorrem duas a três vezes por semana nos períodos de contraturno escolar, com carga horária de duas a seis horas semanais. O público-alvo tem que estar regularmente matriculado na rede pública de ensino.  

 

Publicação

Tese: “O projeto Guri e a percepção harmônica em crianças de 6 a 9 anos: um estudo sobre a aquisição do conhecimento da tonalidade e da harmonia no contexto do ensino coletivo de instrumentos em São Paulo”
Autora: Elizabeth Carrascosa Martínez
Orientador: Beatriz Senoi Ilari
Coorientador: Claudiney Rodrigues Carrasco
Unidade: Instituto de Artes (IA)