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Eva futebol clube

Mestrando relaciona o futebol feminino no Brasil
com movimentos higienista, eugenista e feminista

LUIZ SUGIMOTO

Desde que o futebol brasileiro deixou de ser visto por cientistas sociais como "ópio do povo" - efeito explorado pela ditadura militar -, o esporte vem sendo objeto de pesquisas e artigos para entendimento de práticas cotidianas da sociedade. Contudo, se as fontes transbordam de informações sobre o futebol masculino, elas praticamente secam em relação ao futebol feminino. "Minha dissertação talvez seja o primeiro momento na academia em que se busca esses dados. Mergulhei às cegas nos periódicos de cada época e estou tirando leite de pedra", afirma Eriberto Lessa Moura, mestrando em estudos do lazer pela Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp. A dissertação é orientada pela professora Heloísa Helena Baldy dos Reis.

"Os estudos sobre o futebol nas ciências sociais em nosso país ainda são incipientes e, quando levamos o tema para as relações de gênero, são nulos. O esporte em geral era visto como algo alienante. Mesmo no movimento feminista, nota-se grande preocupação com o corpo - reprodução, maternidade, sexo, expressão, violência, sensibilidade -, mas persiste a lacuna quando se trata da mulher no esporte. De futebol, então, nem se fala", acrescenta o pesquisador. Trabalhando em escolas de futebol de Campinas, ele pôde observar as pouquíssimas meninas que ousaram invadir o que chama de "divino universo masculino", indagando por que o futebol, uma das formas mais importantes de expressão da cultura brasileira, permanece como área de lazer hegemônica dos homens.

Eriberto Lessa, mestrando da FEF: mergulho atrás de registros sobre o futebol feminino no BrasilEriberto Lessa mergulhou fundo, até o início do século 20, seguindo pistas de jogos de mulheres em 1908 e 1909. "A preocupação não era saber qual foi a primeira partida, mas analisar em que contextos ocorriam essas participações das mulheres", explica. A pesquisa se estrutura em três momentos: um jogo de 1913, em evento beneficente visando à construção de um hospital para crianças pobres pela Cruz Vermelha; um jogo de 1921, entre senhoritas do Tremembé e da Cantareira (bairros da zona norte de São Paulo); e torneios em 1940 no Rio de Janeiro, desta vez envolvendo mulheres do subúrbio, que formaram times de nomes sugestivos como Cassino Realengo e Eva Futebol Clube.

Travestidos - O hospital para crianças foi inaugurado quatro anos depois do jogo de 1913, em Indianópolis. A obra era prioridade frente à explosão populacional nos centros urbanos, o que gerou o movimento higienista, com campanhas sanitaristas para o controle de doenças. O discurso médico pregava que as pessoas praticassem esporte, saíssem de lugares sombrios para tomar sol e dessem atenção especial à higiene das crianças. As mulheres da burguesia participavam intensamente da organização desses eventos.

"Aquela partida atraiu grande público, visto o anúncio nos jornais de que "as mulheres podem até jogar futebol". Mas descobri, nas edições dos dias seguintes, que a "Madame Lili" da escalação, na verdade, era um homem usando vestido, peruca e maquiagem; eram jogadores travestidos do Americano, então campeão paulista, e entre eles senhoritas da sociedade. Contudo, ficou registrado como o primeiro jogo entre mulheres", conta o mestrando.

A partida entre tremembenses e cantareirenses foi noticiada em AGazeta, como atração curiosa - para não dizer cômica - das festividades de São João. Em 1921, as mulheres ainda eram relegadas à assistência dos sportmen, entusiasmando-os com vivas e aplausos. Mas elas já não iam aos jogos passivamente, apenas para florir as arquibancadas. Começavam a entender do esporte. Os jornais elegiam as torcedoras mais belas, as madrinhas de clubes, e elas entravam em campo para dar o pontapé inicial ou disputar tiros livres. Na mesma época, ocorria a passagem do movimento higienista para a eugenia.

Pela raça - "A eugenia estará bem mais presente em 1940, com o nazismo. A medicina defendia a prática de natação, tênis, vôlei e atletismo pela mulher, até de forma competitiva, desde que não se tratasse de esporte de contato e houvesse preocupações científicas e "higiênicas": a atividade física deveria contribuir para a função materna de gerar não homens raquíticos, mas homens fortes que trouxessem o engrandecimento da raça brasileira", explica Eriberto Lessa.

Entre abril e junho daquele ano, enquanto um empresário do ramo de calçados organizava torneios de futebol feminino no subúrbio do Rio, levando bom público aos estádios e premiando as jogadoras com pares de sapatos, Getúlio Vargas tratava de assumir o controle também da área esportiva, formulando leis definitivas e únicas para o país. Existiam apenas duas ou três federações de esportes e o futebol padecia desta desregulamentação.

Jornais como O Paiz, que apoiavam os jogos femininos em reportagens, começaram a aderir à posição dos médicos (que detinham a cientificidade da educação física), condenando a prática de futebol por mulheres, sob argumento de que era prejudicial aos órgãos de reprodução e à beleza das formas. "Falavam da excentricidade, da rigidez dos quadris e dos músculos, e do perigo do impacto de uma bola, esquecendo que o homem também possui órgãos reprodutores para proteger", observa Lessa.

Masculinização - Além do discurso médico, naqueles torneios emergiu o preconceito contra as mulheres suburbanas, que encontraram no futebol uma forma de lazer e também de competir. "Elas faziam movimentos não condizentes com os de uma atleta mulher, cuspiam, contrariavam os conceitos da higienização, dos bons modos. Daí, a taxação de masculinidade. Quero mostrar que existem diferenças não apenas entre homens e mulheres nas práticas esportivas, mas também entre as mulheres, dependendo da classe social", comenta.

A discussão, mais acirrada no primeiro semestre de 1940, apresentou lances inusitados como a carta indignada de um cidadão a Getúlio Vargas, repercutida pela imprensa e reproduzida nesta página, e terminou somente no ano seguinte, através do Decreto-Lei 3.199, do Ministério da Educação, que em seu artigo 54 dizia: "Às mulheres não se permitirão a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza". Segundo Eriberto Lessa, ficava patente que um dos desportos atingidos era o futebol feminino: "Pareceu que era seu fim". Mas, revogada a proibição em 1979, nossas jogadoras voltariam aos gramados.

Nos EUA, futebol é coisa de mulher

A dissertação de Eriberto Lessa Moura avança até nossos tempos, quando equipes como o Radar começaram a se destacar nos anos 1980, e traz um estudo de caso sobre o time de futebol feminino do Guarani, de Campinas, formado em 1983 e extinto em 1985. Campeãs da Liga Campineira, as meninas participaram de amistosos internacionais e de preliminares do Campeonato Brasileiro masculino com transmissões pela televisão. As jogadoras tinham noção do preconceito: "Elas afirmam que hoje seria bem mais fácil jogar. Antes, além do estereótipo da homossexualidade, havia o do próprio papel da mulher na sociedade. Quando uma delas errava um chute, um fulano na arquibancada logo mandava ela ir para o fogão", conta.

De fato, hoje o pai já matricula a filha nas aulas de futebol e torce por ela no estádio. Mas prevalece algum preconceito nas unidades de ensino, onde não existe orientação pedagógica. "As equipes e mesmo as seleções são um catado de jogadoras, os campeonatos são casuais. As melhores atletas acabam na liga americana", critica Lessa. E, mesmo havendo mudança de postura, ela vem com atraso: "Nossas meninas começaram a treinar com 10 ou 11 anos, não tiveram aquele estímulo e a bagagem que os meninos trazem desde os 5 anos".

Lessa estima que, nos Estados Unidos, aproximadamente 10 milhões de mulheres praticam o futebol, justamente em função do incentivo nas escolas. "Se aqui dizemos que futebol é coisa de homem, lá é coisa de mulher, literalmente", ironiza. O que não significa, segundo ele, que a sociedade americana seja menos machista, mesmo porque as mulheres não têm vez no futebol americano ou no beisebol, onde se realizam apenas na torcida com seus pompons ou como namoradas dos jogadores.

"Esses dois esportes são símbolos de poder e masculinidade. Depois dos atentados de 11 setembro, George Bush anunciou o contra-ataque vestindo uniforme de beisebol: avisou que ia dar a tacada", ilustra. Eriberto Lessa, porém, recorre ao simbolismo também para mostrar que o futebol feminino nos EUA está longe de ser menosprezado: "A final do Mundial Feminino de 1996, contra a China, aconteceu num 4 de julho, com 100 mil pessoas no estádio, e quem entregou o troféu às campeãs americanas foi Bill Clinton. Na final da Copa do Mundo de 94, quem entregou o troféu ao Dunga foi o vice Al Gore".

Carta de um cidadão a Getúlio Vargas

[Venho] Solicitar a clarividente atenção de V.Ex. para que seja conjurada uma calamidade que está prestes a desabar em cima da juventude feminina do Brasil. Refiro-me, Snr. Presidente, ao movimento entusiasta que está empolgando centenas de môças, atraíndo-as para se transformarem em jogadoras de futebol, sem se levar em conta que a mulher não poderá praticar êsse esporte violento, sem afetar, seriamente, o equilíbrio fisiológico das suas funções orgânicas, devido à natureza que dispoz a ser mãe... Ao que dizem os jornais, no Rio, já estão formados, nada menos de dez quadros femininos. Em S. Paulo e Belo Horizonte também já estão constituindo-se outros. E, neste crescendo, dentro de um ano, é provável que, em todo o Brasil, estejam organisados uns 200 clubes femininos de futebol, ou seja: 200 núcleos destroçadores da saúde de 2.200 futuras mães que, além do mais, ficarão presas de uma mentalidade depressiva e propensa aos exibicionismos rudes e extravagantes.

(José Fuzeira, em carta datada de 25/04/1940 e repercutida pela imprensa)

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