Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 241 - de 16 a 29 de fevereiro de 2004
Leia nessa edição
Capa
Política C&T
Fundos setoriais: padrão
Unicamp testa vacina dupla
Nanociência: sem perder tempo
Política: semicondutores
Licenciamento de patentes
Rivalidade nas quatro linhas
Teses da semana
Pós: reajuste de bolsas
O sabor do trabalho
Bicentenário: Hércules Florence
 

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Retrato do homem bicentenário
Tataranetos de Hércules Florence lembram pioneirismo na fotografia e as aventuras do francês que viveu em Campinas

LUIZ SUGIMOTO

Hércules Florence: Centro de Memória da Unicamp abriga autobiografia do pioneiro

Em frente à cadeia de Campinas, então Vila de São Carlos, o guarda de sentinela permanecia estático. Devia estar desatento à pequena caixa coberta com paleta de pintor, instalada havia horas em algum ponto dos arredores. O orifício na improvisada câmara escura acomodava a lente dos óculos de Hércules Florence, que pretendia fixar a imagem da fachada da cadeia em papel sensibilizado com nitrato de prata. “Queira Deus que se possa imprimir com a luz”, anotou no seu diário, em 3 de julho de 1833. Já sabia que o papel escureceria no sol – como os tecidos indianos que perdiam a cor – e, por isso, lavou-o em água para diminuir a reação fotoquímica e guardou-o dentro de um livro. Segundo relatos, assim ele conservou várias imagens, que apreciava somente à noite, sob luz de vela. Mas as provas se perderam. Inclusive aquela, que seria a primeira fotografia de um ser humano produzida no planeta.

No Centro de Memória da Unicamp (CMU), encontra-se uma autobiografia de Hércules Florence - ou Hercule, seu prenome em francês -, de 1832, em que descreve seus estudos sobre o processo fitoquímico. O acervo também reúne desenhos, reproduções de telas e dez rolos microfilmados com os manuscritos narrando a saga da famosa Expedição Langsdorff. Uma árvore genealógica traz o histórico dos parentes – Florence teve 20 filhos, 13 do primeiro casamento com Maria Angélica Álvares Machado, em 1830, ano em que se mudou para Campinas, e sete com a protestante Carolina Krug. É a quinta geração, a de tataranetos, que prepara uma grande cerimônia para 29 de fevereiro, bicentenário de nascimento do desenhista, pintor, fotógrafo, geógrafo, tipógrafo e aventureiro.

“Ele nos deixou uma importante herança genética. Percebo isso claramente, pois descendo de seu sexto filho, que se casou com uma prima-irmã. Filhos de casamento entre primos recebem maior concentração de genes com as características da família. De modo geral, os Florence herdaram traços da personalidade de Hercules e alguns talentos, como a propensão artística”, afirma o psiquiatra Francisco Álvares Florence Neto, tataraneto residente em Americana – ele compilou vários dos apontamentos do ancestral. “É nosso dever manter viva a memória de um artista e homem de ciência que representa o salto tecnológico ocorrido no século 19”, endossa Antonio Francisco Álvares Florence, também tataraneto e um dos organizadores do evento no Hotel Royal Palm Plaza.

O barão Heinrich von Langsdorff: demência provavelmente causada pela malária

Photographie – O experimento da cadeia era um a mais, desde que Hércules, passeando na varanda de sua casa em agosto do ano anterior, intuiu sobre a possibilidade de fixar imagens em câmara escura, utilizando um elemento que mudasse de cor com a ação da luz. O boticário Joaquim Correia de Mello foi quem o informou sobre o nitrato de prata. Ambos batizaram o processo de “photographie”, cinco anos antes de Herschel, a quem historicamente se atribui a introdução do termo. O jornalista Boris Kossoy tem o mérito da reconstituição obstinada dos métodos e técnicas desta descoberta isolada, divulgando-a ao mundo e colocando o nome de Florence entre dois conterrâneos: Joseph Niépce e Louis Daguerre, que depois anunciariam a invenção da fotografia.

O professor José Joaquín Lunazzi, do Instituto de Física “Gleb Wataghin” (IFGW) da Unicamp, lembra que havia dois grandes problemas na época. O primeiro era a fixação das imagens. Segundo o professor, Hércules conseguiu preservar desenhos em vidro, que eram copiados sobre sais de ouro, mas não as fotografias, feitas sobre sais de prata. A solução para o segundo problema, o da sensibilidade (exigia-se exposição de horas ao sol), com o processo de revelação e a fixação atingida para os sais de prata, é atribuída a Daguerre. “Como um apaixonado pela fotografia, que me levou à ciência da óptica, posso imaginar Florence trabalhando: suas emoções quando algum resultado evidenciava progresso, a esperança em um novo material, seu desespero com o tempo passando e o progresso não chegando. A decepção, alegria e curiosidade simultâneas ao saber que o alvo tinha sido atingido, embora por outra pessoa”, comenta Lunazzi.

Foto: Neldo Cantanti
O psiquiatra Francisco Álvares Florence Neto, tataraneto de Hércules: memória preservada

Florence chegou à “photographie” ao perceber a escassez de tipografias no país. O professor da Unicamp Jacques Vielliard, que escreve artigo nesta página, conta que o autor foi obrigado a publicar por conta própria Recherches sur la voix des animaux, no Rio, e ficou irritado com a quantidade de erros tipográficos. Havia, também, a premência de publicar sua pesquisa sobre “Zoophonia”, em que descrevia o som produzido pelos animais vistos durante a Expedição Langsdorff. Já morava em Campinas quando criou a poligrafia – técnica similar à do mimeógrafo –, que permitia a impressão das cores simultaneamente. Graças ao apoio do sogro Álvares Machado, instalou uma tipografia completa no largo da Matriz do Carmo. Ali foi impresso O Paulista, primeiro jornal do interior de São Paulo, em 1842; e o Aurora Campineira (1858), que inaugurou a imprensa na cidade.

Viagem trágica – A Expedição Langsdorff partiu de Porto Feliz em 22 de junho de 1826, visando atingir o rio Amazonas por via fluvial. Alcançou o porto de Cuiabá em 30 de janeiro de 1827, mas a viagem só recomeçou em 5 de dezembro, em dois grupos. O primeiro, com o barão Heinrich von Langsdorff e Hércules Florence, subiu o Tapajós e chegou a Santarém em 1º de julho de 1828. Nesse trajeto, o barão adoeceu gravemente, assim como muitos dos expedicionários, ficando mentalmente perturbado. No segundo grupo, o primeiro desenhista Adrien Taunay sofreria pior sorte, morrendo afogado no rio Guaporé. A expedição só se reuniu em Belém, regressando de navio ao Rio de Janeiro, em 13 de março de 1829.

Desenhos feitos por Hércules Florence durante a Expedição Langsdorff: originalidade

Num caderno de bolso, Florence descreveu os acontecimentos trágicos, aspectos das regiões, costumes da população e dos índios. Baseado em cópias de diários, Francisco Florence, o tataraneto de Americana, chegou à conclusão – aceita por estudiosos – de que a demência de Langsdorff se deveu a malária. “Tenho comigo publicação do Hospital do Juqueri, onde trabalhei, com casos antigos de pacientes em que a malária desencadeava a psicose. O barão sofria de picos febris toda tarde, entrando em delirium; depois de certo dia, não mais voltou ao estado normal”, diz o psiquiatra.

Os registros científicos da expedição – referentes a zoologia, botânica, mineralogia, etnografia, medicina, lingüística – estiveram perdidos por praticamente cem anos em instituições de Moscou e Leningrado. Em 1875, Alfredo D’ Escragnolle, o Visconde de Taunay, encontrou cópia do diário que Florence deixara com a família, relatando a parte da viagem do Rio até Cuiabá. Ao contatar o autor, o visconde recebeu e traduziu uma cópia que já estava pronta para publicação havia 15 anos, incluindo a segunda parte da viagem. A versão considerada completa, com informações e comentários acrescidos depois de 20 anos, teve tradução publicada em 1977. Hércules Florence faleceu em 27 de março de 1879, em Campinas, onde morou por 49 anos.

 

Inventor no exílio

JACQUES VIELLIARD (*)

A “Zoophonia” de Hercule Florence, palavra bonita que se refere aos sons emitidos por animais e cujo estudo é conhecido hoje sob o neologismo “Bioacústica”, na verdade nunca entrou em uso e nem foi criada pelo autor de Memória sobre a possibilidade de descrever os sons e as articulações da voz dos animais, manuscrito escrito na volta da famosa mas trágica Expedição Langsdorf, e esquecido nos porões da Academia de Ciências de São Petersburgo.

É este manuscrito que, por uma coincidência incrível, já que ambos nascemos na França para nos fixar em Campinas e aqui contribuir para o conhecimento dos sons da natureza, eu tive a honra e o prazer de transcrever e traduzir para o português. Nesta oportunidade, verifiquei que Florence publicou, por conta própria, uma versão mais elaborada do manuscrito original em 1831, mas que o termo “Zoophonia” somente apareceu na versão em português de 1875, do Visconde de Taunay. Ademais, o método de transcrição musical de Florence não era eficiente o bastante para se impor, deixando seu autor frustrado.

A Bioacústica apareceu como campo de pesquisa científica somente a partir dos anos 1960, graças aos gravadores de rolo portáteis, que possibilitaram gravar as vozes dos animais na mata. Essa atividade cresceu rapidamente e, em 1977, a Unicamp me convidou para instalar o primeiro Laboratório de Bioacústica do Brasil, junto com o Arquivo Sonoro Neotropical, hoje o quinto maior acervo de gravações do mundo. Hercule Florence, que se sentia isolado e até desprezado, não podia imaginar que a vila que escolheu para viver e criar raízes, Campinas, seria hoje o centro de estudos que tanto o apaixonaram.

Na verdade, Hercule Florence foi mal compreendido até hoje. Não eram suas transcrições musicais, intrinsecamente falhas, que representavam sua contribuição ao conhecimento científico, mas suas observações originais e extremamente pertinentes, como os conceitos de paisagem sonora e de especificidade da voz dos animais. São estes dois dos principais tópicos dos resultados anunciados no último Congresso Internacional de Bioacústica, realizado em agosto passado no Brasil, que estou acabando de editar como volume especial dos Anais da Academia Brasileira de Ciências. É o reconhecimento acadêmico com o qual Hercule Florence, auto-intitulado “inventor em exílio”, sempre sonhou.


(*) Jacques Vielliard é professor do Departamento de Zoologia
do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp

 

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