Edição nº 652

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 11 de abril de 2016 a 24 de abril de 2016 – ANO 2016 – Nº 652

Para além da Retórica


A Retórica, definida no dicionário como a arte da palavra, da boa argumentação, possui uma conotação pejorativa na nossa sociedade, pois é associada ao uso da linguagem para fins de manipulação ou persuasão.

Mas nem sempre foi assim. Na Roma Antiga, a Retórica era parte da formação do cidadão na medida em que o exercício da cidadania – entendido como a participação, tanto quanto cabível para a época, na vida da cidade – pressupunha a capacidade de expor, de maneira eficaz, os pontos de vista e os argumentos. Desse modo, a Retórica pertencia ao campo da educação.

Naquele contexto, um autor ganhou destaque, mantendo-se como referência até a contemporaneidade: Marco Fábio Quintiliano, cuja obra-prima, “Instituição Oratória”, está sendo publicada pela Editora da Unicamp no âmbito da coleção Fausto Castilho Multilíngues de Filosofia Unicamp, em edição bilíngue latim-português. Os 12 livros originais foram compilados em quatro tomos, dos quais dois já foram lançados – o primeiro (livros, I, II e III) e o segundo (livros IV, V e VI). O terceiro e o quarto tomos, com os demais livros, deverão ser lançados em 2016.

Nascido entre os anos 30 e 40 da era Cristã, em Calagurris Nassica, atual Calahorra, Espanha, Quintiliano passou boa parte de sua vida em Roma, onde trabalhou como advogado e professor de Retórica. Morreu na capital do Império Romano por volta do ano 100. Sua obra, contudo, atravessa séculos, mantendo-se relevante em vários campos das ciências humanas – da Filosofia à História, passando pela Linguística.

“Quintiliano é um autor importante na formação de filósofos. Seu principal mérito foi fazer uma sistematização da cultura de cidadania, tendo como objetivo formar o cidadão romano”, assinala o filósofo Alexandre Soares, coordenador da coleção Fausto Castilho e professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

“Na época, participar da cidade, ou seja, o exercício da cidadania tinha como premissa expor os pontos de vista e argumentos. A formação para a cidadania envolvia, então, a aprendizagem da gramática e da argumentação”, complementa o filósofo.

É preciso ter em mente, contudo, que na Roma Antiga, uma sociedade em que havia escravos e na qual grande parte da população era iletrada, os preceitos apresentados na obra de Quintiliano podiam ser seguidos por poucos.

Uma pedagogia humanista

A oratória é a base da educação, na visão de Quintiliano, contextualiza o historiador Pedro Paulo Funari, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. “A oratória é toda esta série de preceitos, exercícios e reflexões que visam a produzir um homem capaz de exercer o seu papel de cidadão, o que, na época imperial romana significava exercer a liderança como funcionário do Estado”.

No entanto, tal liderança só poderia ser exercida a contento por pessoas cultas e guiadas em suas ações por elevados padrões morais, o que remete à educação. “Por isso, o objetivo da educação não deveria ser apenas dar uma formação técnica, como chamaríamos hoje, mas oferecer também uma formação moral – ou humanística, nos termos atuais – para que estes cidadãos/funcionários cumprissem bem sua tarefa”, aprofunda Funari. O ideal do sábio, então, seria o homem “experiente em agir e falar bem”.

A amplitude e as características da formação do orador relacionam-se com seu papel na sociedade: ele era uma pessoa especialmente habilitada a ler, julgar e produzir em diversas áreas do saber, por isso deveria ter o domínio mais completo possível da linguagem (no caso, o latim e o grego) e de outras áreas com as quais necessariamente ele tinha de lidar.

“Sua formação baseava-se nas diversas formas da língua em suas diversas realizações (gramática, poesia, história, filosofia, oratória). Envolvia também outras áreas de conhecimento, como aritmética, geometria, astronomia e música, que constituíam o conjunto do que então se denominavam artes liberais”, detalha Marcos Pereira, professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). “Quintiliano nos legou a ideia de um saber enciclopédico”.

Essa visão remete a uma pedagogia que não se limitava à formação do orador; diferentemente, visava à formação geral do ser humano e, em particular, do cidadão, explica o tradutor da obra, Bruno Bassetto, professor titular aposentado da Universidade de São Paulo (USP) na Apresentação do Tomo 1 da obra.

Segundo ele, a particularidade das orientações pedagógicas de Quintiliano reside no fato de que elas se fundamentam no respeito à pessoa com sua individualidade, especialmente nos seus estágios de desenvolvimento segundo a idade e nas influências do meio. O autor valoriza, portanto, a formação do espírito e da emotividade, escreve Bassetto na apresentação.

Da Antiguidade ao Renascimento

Daí se compreende a influência de “Instituição Oratória” na própria época e no Renascimento, período em que foi referência para os estudos humanísticos. “Por essas características, Quintiliano é um autor que tem despertado interesse como fonte antiga de reflexões sobre a linguagem. O seu pensamento mais geral sobre o lugar da educação na formação do cidadão também é algo que precisa ser retomado”, defende o professor do Instituto de Filosofia da UFU, Anselmo Ferreira.

Quintiliano preconiza a formação do vir bonus dicendi peritus ou “o homem bom, perito na arte de falar”. Bonus, ou bom, significa honesto, virtuoso e íntegro – ideal dos métodos pedagógicos, seja nos tempos antigos ou na contemporaneidade. A pedagogia de Quintiliano tem como objetivo, portanto, promover o desenvolvimento integral do homem (moral, social, familiar, intelectual), até fazer dele um ser humano perfeito, base indispensável do orador perfeito.

“Como nem todos são oradores ou mestres de Retórica, aquilo que Quintiliano indica para formar o homem perfeito é válido em qualquer época ou lugar, porque procura desenvolver as potencialidades humanas, inatas”, reitera Basseto.

Valorizada até o Renascimento como parte da formação para a cidadania, com o passar do tempo e a crescente especialização dos vários domínios do saber, a Retórica – ou a oratória – ficou relegada a um plano secundário em favor de disciplinas (ou de áreas) consideradas mais “científicas”, num processo acentuado a partir dos séculos XVI e XVII no mundo ocidental.

Esse movimento se deve, em parte, ao fato de que, na produção dos discursos, a Retórica também lidava com as paixões humanas e com formas de “sedução” dos sujeitos – algo tido como menos científico ou passível de ser racionalizado.

A retomada de uma perspectiva

Na atualidade, contudo, há um movimento de resgate da Retórica antiga por meio da Nova Retórica, pautado, justamente, por seu sentido pedagógico: ou seja, pela associação da oratória com a ética, presente em autores como Quintiliano. “O resgate se dá no sentido da visão da Retórica a serviço dos valores”, afirma o filósofo Soares.

Paralelamente, a amplitude e a interface com diversos campos do conhecimento que caracterizam a “Instituição Oratória” evidenciam sua relevância e interesse para as ciências humanas – da filosofia à linguagem.

“Como estudiosos da filosofia e de sua história, não podemos desperdiçar a oportunidade de dialogar com uma obra como essa, de quase 2 mil anos de existência e que toca nos problemas essenciais da filosofia; não é apenas um importantíssimo documento histórico, mas também alimento para nossas reflexões atuais sobre ética, educação e o próprio significado da sabedoria, cuja busca, afinal, é o mister do filósofo”, analisa o filósofo Ferreira.

Na área da linguagem, enfatiza Pereira, o valor da obra de Quintiliano manifesta-se, entre outros aspectos, em afirmações afinadas com a visão contemporânea de língua e linguagem. “Ao longo da obra, o autor lembra que a língua(gem), tal como entende que deva ser empregada pelo seu orador, pauta-se por critérios mais amplos que o da simples correção gramatical. Esta não é, em absoluto, desvalorizada, mas, ao mesmo tempo, ele reitera a necessidade de escolha de formas apropriadas para cada situação discursiva”, explica o linguista.

Outro valor importante, na perspectiva do historiador Funari, é a ênfase na formação humanística numa sociedade em que a técnica apresenta-se como valor fundamental. “Certamente, nossa época tem relegado esse papel de formação humanística em nome de uma formação mais técnica. Até mesmo a Retórica tem se convertido em técnica de marketing, mais ou menos no estilo daquela arte criticada por Platão. Em nossa sociedade, cada vez mais controlada pela técnica, vejo como urgente a tarefa de repropor modelos humanísticos de formação e educação dos cidadãos”, conclui ele.

A tradução

Apesar da importância da “Instituição Oratória”, não consta haver uma tradução completa da obra, afirma o tradutor Bruno Bassetto.  “O Livro X foi traduzido, mas pouco divulgado. A tradução desse livro se deve a seu caráter prático, em que aplica o que havia exposto nos livros anteriores”.

As primeiras traduções para a língua portuguesa datam da Idade Moderna. “Uma das mais conhecidas é a de Soares Barbosa, professor da Universidade de Coimbra no século XVIII”, relata o professor Marcos Pereira. “Assim, a publicação da obra na íntegra preenche uma grande lacuna e permitirá o acesso a uma das obras-mestras da Antiguidade latina”, complementa Pereira.

O professor Bruno Bassetto está se dedicando à tradução de “Instituição Oratória” há dois anos e espera concluí-la até o final do primeiro semestre de 2016.

“Traduzir uma obra de quase dois mil anos não é tarefa muito fácil. A visão subjacente do mundo, presente no autor, é muito diferente da atual”, comenta Basseto. “A espécie humana daquela época é a mesma que a nossa. Essa é a primeira conclusão que se retira desse trabalho”.

Nesse sentido, impõe-se um desafio ao tradutor, que deve ser capaz de mostrar a realidade vivida pelas pessoas naquele tempo, reportar seus valores, usos, costumes, instituições, tradições, leis, organização social e outros aspectos, numa linguagem compreensível às pessoas do nosso século. “Nem sempre dispomos de palavras para traduzir certas ideias, objetos ou fatos, sendo necessário recorrer a circunlóquios ou explicações em notas de rodapé; mesmo assim, nem sempre se alcança a clareza pretendida”, explica o tradutor.

Outro desafio reside na diferença das línguas clássicas (com seu caráter sintético) e das línguas modernas românicas (com seu analitismo). “Para Quintiliano, mestre da arte oratória, a clareza da linguagem é uma qualidade fundamental do orador, da qual trata em vários tópicos. Ora, aquilo que era transparente para um falante do latim, língua dita sintética em sua estrutura, para nós muitas vezes não o é”, contextualiza Bassetto.

 


 

O autor e a obra

Quintiliano foi um dos mais respeitados pedagogos romanos. Lecionou na escola de Retórica, fundada em Roma. Foi um dos mestres e teóricos da antiga Retórica em língua latina. Ao lado de Cícero e do grego Aristóteles, compõe o antigo panteão de uma área que produziu longa tradição de estudos no mundo ocidental.

“Em vida, foi muito influente, mas foi mais importante ainda na posteridade, em particular na Idade Média e a partir do Renascimento, pois serviu de base para a educação durante séculos. Ensinou a escrever e falar, nada menos que isso”, afirma o historiador Funari.

A “Instituição Oratória”, sua principal obra, teve mais de duas centenas de manuscritos e somente foi descoberta em sua forma completa no século XV.

O Livro I contém uma sinopse da obra e é dedicado à educação da criança até os 12 anos, período em que deve aprender a falar e escrever corretamente. O Livro II enfoca a aprendizagem da oratória.

Os Livros III a VII expõem os passos relativos à invenção e à disposição em diversos gêneros (demonstrativo, deliberativo, judiciário com exórdio, exposição, digressão, narração, divisão, proposição, provas, argumentação e silogismo retórico).

Nos Livros VIII, IX e X aborda a elocução. O Livro XI é dedicado à memória, apresentação, aparência, gesticulação e trajes do orador. O Livro XII, conclusão do tratado, mostra o “orador completo” em ação.

SERVIÇO

Título: Instituição oratória – Tomo I – Livros 1, 2 e 3 
Autor: Quintiliano 
Tradução: Bruno Fregni Bassetto
Páginas: 584
Preço: R$ 96,00
Editora da Unicamp
Área de interesse: Filosofia

 

 

 


Título:
Instituição Oratória – Tomo II – Livros 4, 5 e 6
Autor: Quintiliano
Tradução: Bruno Fregni Bassetto
Páginas: 552
Preço: R$ 84,00
Editora da Unicamp
Área de interesse: Filosofia
www.editoraunicamp.com.br