Edição nº 642

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 26 de outubro de 2015 a 08 de novembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 642

Projeto recicla tênis usados

Calçados que seriam descartados são destinados a jovens atletas e comunidades carentes

O professor Luiz Vieira Junior, coordenador das pesquisas, e a máquina universal: equipamento faz simulações de corridaTodo ano Márcio ganhava dois tênis de presente do seu pai. Um era para jogar futebol, outro para passear. Ocorre que o garoto de sete anos gostava muito de praticar esporte e acabava com o tênis de brincar, tendo que apelar para o tênis de passeio. Quando esse também estragava, o pai fazia o filho ir para a escola com o tênis “estourado”, para lhe ensinar o princípio da conservação. Mesmo assim, nada mais restava senão jogar os tênis fora, pois eles afinal também têm prazo de validade, isso porque, com o tempo, as propriedades dos materiais de que são fabricados vão se degradando. 

De qualquer forma, o descarte não deve ser feito. É o que mostra um projeto da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) baseado na reciclagem de tênis usado que foi concebido pelo jovem docente Luiz Vieira Junior, de 32 anos. A iniciativa deu certo e hoje os tênis com meia vida podem continuar sendo usados e, a parte que não teria utilidade alguma, como o solado do calçado, por exemplo, hoje pode ser triturado e transformado em pavimentos de pista de atletismo, quadras de futebol society e pisos para playground, que amortecem o impacto.  Os tênis ganharam uma nova aplicação e fazem parte de uma pesquisa liderada pelo professor Luiz.

Esse projeto para jovens atletas começou quando ele ainda realizava doutorado na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Ele e seu orientador corriam todos os dias juntos, enquanto discutiam sua pesquisa. Tal hábito era compartilhado por professores dessa instituição, que se reuniam todos os dias às 10h30 para correr mais ou menos uma hora. 

Nas conversas, alguns professores comentavam que iriam jogar seus tênis fora, por acreditarem que não prestavam mais. “Mas eu olhava e via que os calçados aparentemente estavam em perfeitas condições de uso. Passei então a recolhê-los para verificar se estavam mesmo”, recorda. 

Nos Estados Unidos, conta ele, os atletas usavam seus tênis até que atingissem 500 milhas, que é o equivalente a cerca de 800 quilômetros. Geralmente essa distância era percorrida por um corredor depois de quatro meses de treino ou até menos. Após esse período, o tênis era simplesmente descartado. Para um atleta brasileiro, um tênis dura o dobro desse tempo, repara. 

Luiz tomou a atitude de pedir que as pessoas doassem seus tênis para ele. Com isso, trazia ao Brasil mais de 70 kg do calçado na bagagem, quando vinha visitar a família. Ele conta que os repassava para comunidades carentes e escolas.

Fazia questão de ministrar palestras motivacionais sobre a prática do esporte e os benefícios na qualidade de vida e na saúde, o valor dos estudos e da ciência, além de alguns princípios do esporte, como a perseverança, o esforço e que nada vem de graça. “Os contemplados ficavam muito contentes. Era impagável perceber o quanto isso significava para muitos deles, que nunca tiveram um tênis.”

UTILIDADE

Luiz morou nos EUA de 2007-2013: quatro anos no Estado de Maryland e dois anos no Estado de Connecticut, onde foi docente na University of New Haven. Mas prestou um concurso na Unicamp e foi aprovado. Voltou ao Brasil. Quando chegou aqui, notou que talvez ainda houvesse uma forma desses tênis serem reutilizados e de lhes conferir um peso mais científico. 

Entretanto, o projeto ficou parado por um ano e meio. Veio Ronaldo Dias, treinador do Grupo de Corrida Labex-GGBS da Unicamp, do qual Luiz é participante, e sugeriu que ele reativasse o projeto das doações. Os tênis foram chegando novamente, e muito com a ajuda dos alunos e de outras duas universidades: da Johns Hopkins e da alemã Landshut University of Applied Sciences. 

Em nova fase, em terras brasileiras, a iniciativa começou a ser viabilizada com incrementos. Luiz passou a desenvolver uma forma de verificação se o tênis ainda estava em bom estado de uso e tinha a qualidade necessária para que continuasse na ativa.

A próxima etapa envolveu uma série de ensaios no Laboratório de Modelagem Estrutural e Monitoração (Labmem) da FEC. Ali era avaliada principalmente a energia de absorção do impacto do tênis e como ele se comportava em situações de estresse. 

“Toda vez que o corredor pisa, ele aplica uma força no solo, e essa força terá uma reação. Parte desse impacto é absorvido e precisa ser medido, assim como a rigidez em absorver o impacto”, destaca o docente. “Esse teste permite ver os tênis que podem ser aproveitados em outros pés, porém não dá a dimensão da sua vida útil.”

Os tênis são colocados em uma máquina, chamada universal, que opera simulando uma corrida. Trata-se de um ensaio dinâmico em que, com os dados dessa simulação, quantifica o que está acontecendo no sistema de absorção de impacto do tênis. 

Anteriormente, cada ensaio demorava em torno de dez minutos. Hoje em dia demora 40 segundos, e seus dados são automaticamente transferidos para um programa de computador, desenvolvido por Luiz e colaboradores. Vem a análise dos dados, a qual demora frações de segundos. 

O professor relata que os tênis em boas condições são enviados a projetos selecionados normalmente quando chegam à marca dos 60 pares. Somente neste ano, foram doados 80 pares em duas localidades: Jaguari (Bahia), e Taubaté (São Paulo). Em geral, são contemplados atletas que participam de competições e que estão se preparando para um futuro profissional no atletismo. Os tênis são ofertados a homens e a mulheres. 

ESTRUTURA

O doutorado de Luiz envolveu a área de Engenharia de Estruturas. Logo, para ele, entender a estrutura de um tênis é algo semelhante à estrutura de absorção do impacto numa ponte ou num edifício, quando ocorre um terremoto. “É exatamente esse sistema. Só que em proporção menor”, diz. 

Um produto que em seu ciclo normal demoraria aproximadamente 500 anos ou mais para ser degradado pode ser reutilizado de outra forma, num novo ciclo de mais 500 anos, sem que se leve esse produto para o lixão. “Aproveitamos tudo, e isso tem tido bons reflexos ambientais”, explica. “Com a expansão do projeto, essa consciência pode crescer ainda mais.”

Luiz lembra que são produzidos anualmente 1,2 bilhão de tênis no mundo. É praticamente um sexto da população mundial comprando um tênis por ano. “Se não for tomada alguma medida de reúso desse material, os tênis virarão lixo e isso continuará sendo um enorme problema para o meio ambiente.” 

O projeto já doou mais de 500 pares de tênis e está tendo um efeito multiplicador. Neste momento, afirma o professor, estão sendo buscadas novas parcerias para apoio financeiro de agências de fomento e de órgãos governamentais. “Nosso interesse também é que o setor industrial nos auxilie sobretudo no quesito de reutilizar a borracha do tênis.”

De acordo com o autor do projeto, doações de tênis são bem-aceitas e são recolhidas durante os treinos (às segundas e quartas-feiras das 18 às 19h30) do Grupo de Corrida do Labex-GGBS, que ocorrem na pista de atletismo da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp.

A expectativa de Luiz é que o projeto tenha vida longa e que tenha um impacto beneficente na sociedade, não só diretamente para as pessoas, mas também para fechar um ciclo que possa ser encerrado com uma degradação o mais natural possível.