Edição nº 642

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 26 de outubro de 2015 a 08 de novembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 642

O Juízo Final no primeiro Renascimento italiano


O livro de Tamara Quírico (pesquisadora formada na Unicamp e hoje professora da Uerj) é muito bem- vindo, pois constitui um marco inicial na inexistente historiografia em língua portuguesa sobre as representações pictóricas do “Juízo Final” no período que se convencionou chamar Renascimento. O corpus em torno do qual gravita sua pesquisa abrange 33 pinturas toscanas executadas durante o século e meio transcorrido entre os mosaicos da cúpula do Batistério de Florença e o painel de Giovanni di Paolo (1460-1465), na Pinacoteca de Siena. A abordagem enfatiza os aspectos teológicos dessa iconografia, incluindo suas imbricações com a Divina Comédia de Dante Alighieri. 

Como nota Tamara Quírico, “o Juízo Final não é descrito em uma passagem específica da Bíblia. Há menções a ele em trechos tanto do Antigo como do Novo Testamento que, associados a outras fontes (textuais e orais), possibilitam que se conceba uma imagem – mental e visual – do evento”. De fato, o núcleo duro da iconografia cristã – as representações do Gênesis, do Êxodo, dos Evangelhos, do Apocalipse, e dos feitos e milagres dos Apóstolos e santos – emana, como se sabe, da autoridade de seus textos “revelados” ou consagrados pela Igreja. Não é o que ocorre com a iconografia do Juízo. Embora central na cosmoteologia cristã e, portanto, presença indispensável nos programas iconográficos das basílicas constantinianas e das catedrais românicas e góticas, essa iconografia não possui uma âncora textual, mas deriva de uma combinatória heteróclita de passagens bíblicas e não bíblicas, jamais sintetizada por um texto dogmaticamente sancionado ad hoc pela autoridade eclesiástica. A quintessência da iconografia do Juízo – o Cristo Pantocrator, a Deesis, a ressurreição da carne e a separação dos eleitos e dos danados – não está inequivocamente presente ainda, por exemplo, no sarcófago de Agilbert, na cripta de Saint-Paul em Jouarre (Ile-de-France), do século VII, de modo que não podemos saber se o que se representa ali é uma passagem do Apocalipse ou se já temos um incipiente Juízo Final. Sua topografia, com as encenações de um Paraíso algo monódico e de um Inferno polifônico (funcionando como retorno do erotismo recalcado), precisa-se, assim, lentamente, ao longo de mais de um milênio (séculos III a XIII), combinando tradições oriundas de diversas culturas figurativas – bizantina, médio-oriental, italiana e europeia ocidental. No que se refere às fontes escritas – para além do Apocalipse e de Mateus 25, 31-33 –, há uma colcha de retalhos de passagens textuais cooptadas pelas representações visuais. Foram evocados, inclusive pela autora, Daniel, Jó, a visão de Ezequiel (37,1-10), diversas passagens dos Evangelhos, as Visões e Revelações (Apocalipses) apócrifas (de Isaías, de Esdras, de Sedrach, de Pedro e de Paulo, escritas entre os séculos II a IV), o Symbolum Nicenum de 325 e a homilia do Segundo Advento, de Efraim, o Sírio, datada de meados do século IV, entre outros. 

Além disso, a tradição escatológica medieval, acolhida, por exemplo, no longo poema satírico De contemptu mundi, de Bernard de Cluny (século XII)[1], subordinava a salvação dos fiéis no fim do mundo à negação do mundo, baseando-se na Epístola I, 2, 15-16, de João: “Se alguém ama o mundo, nele não está o amor do Pai; pois tudo o que está no mundo, concupiscência da carne e concupiscência dos olhos e jactância das riquezas, não provém do Pai, mas do mundo”. O imperativo de evitar que a negação cristã do mundo recaísse na Gnose (para a qual a matéria é criatura do Mal) explica, ao menos em parte, o caráter judiciário da Parúsia, o segundo adventus do Cristo, em veste agora de juiz, para arbitrar sentenciosamente o Bem e o Mal. Explica também por que a constituição desse magnífico patrimônio de imagens é indissociável da história do naufrágio e da progressiva restauração do legado do Direito romano. De onde, por exemplo, a ausência ou irrelevância da figura da balança nas representações do Juízo anteriores ao século XIII e a crescente importância sucessiva dessa figura da justiça, manejada por Miguel Arcanjo pesando as almas, sobretudo após a proibição pelo IV Concílio Lateranense (1215) da administração do ordalium ou judicium Dei pelo clero. 

Sem ocultar os dilemas teológicos que deviam ser “resolvidos” antes que a ideia de um julgamento final pudesse triunfar na concepção cristã do destino do homem, Tamara Quírico enfrenta problemas difíceis, como o das diversas posturas do Cristo juiz (clemente, impassível ou implacável) no aterrorizante Dies irae, ou como a emergência de uma específica representação de seu tribunal a partir das concepções e visões escatológicas do Apocalipse de João. Um livro de pequenas dimensões e que não se pretende exaustivo não poderia evitar uma seleção um tanto drástica do material histórico, mas a síntese que propõe é uma indubitável contribuição para o conhecimento em nosso meio da tradição escatológica italiana anterior a Michelangelo.

Luiz Marques é professor de história da arte no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.

¹ Vejam-se, por exemplo, os versos: Hora novissima, tempora pessima sunt – vigilemus. / Ecce minaciter imminet arbiter ille supremus (Há novíssima hora em tempos péssimos – vigiemos. Eis que, ameaçante, desponta o árbitro supremo).

 Serviço

Capa do livro Inferno e Paradiso

Título: Inferno e Paradiso - As representações do Juízo Final na pintura toscana do século XIV

Autora: Tamara Quírico

Páginas: 232 páginas

Editora da Unicamp

Área de interesse: História da Arte

Preço: R$ 52,00