Edição nº 630

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 29 de junho de 2015 a 02 de agosto de 2015 – ANO 2015 – Nº 630

O diálogo entre Horácio e Homero

Pesquisa do IEL identifica a presença de elementos homéricos na obra lírica horaciana

Alexandre Piccolo, autor da tese de doutorado: “Embora cada um trabalhe gêneros poéticos distintos, é possível notar diálogos entre os poetas que propiciam interpretações renovadas dos dois textos”Pesquisa desenvolvida para a tese de doutoramento do linguista Alexandre Prudente Piccolo investigou a presença de elementos épicos, principalmente os do poeta grego Homero, na obra do poeta lírico romano Horácio. A abordagem, inédita na forma e na profundidade com que foi executada, foi orientada pelo professor Paulo Sérgio de Vasconcellos, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, e coorientada pelo professor Stephen Harrison, da Universidade de Oxford.

De acordo com o autor, um dos desafios do estudo foi identificar como Horácio ajustou [ou “modulou”, como destaca o pesquisador] os elementos épicos em sua obra lírica, mais especificamente nas Odes, compostas por quatro livros. “Muitos pesquisadores lidaram com esses textos, mas com outros enfoques. Além disso, em algumas dessas abordagens o tema com o qual trabalhei foi tratado de forma superficial ou individual”, esclarece Piccolo.

O linguista afirma que as orientações dos professores Vasconcellos e Harrison o ajudaram a encontrar bons caminhos para a investigação, que foi feita com base nos poemas escritos originalmente em latim. “Procurei fazer uma leitura minuciosa, para apresentar interpretações originais sobre o texto das odes horacianas”. Como suporte a esse esforço, o linguista também se valeu de uma ampla bibliografia internacional.

O fato de ter cumprido parte do período de doutorado em Oxford, segundo Piccolo, foi fundamental para o desenvolvimento da pesquisa. “Passar por uma universidade estrangeira, com rica biblioteca na área de Estudos Clássicos, é muito importante para o pesquisador da nossa área, principalmente quando você vai estudar um autor clássico em latim ou grego. No meu caso, essa oportunidade foi muito valiosa, pois, além do vasto acervo bibliográfico, contei com a interlocução estimulante de um especialista na obra do poeta latino. Não menos relevante foi a experiência de vivenciar um ambiente acadêmico tão dinâmico quanto Oxford”.

Ao comparar os textos de Horácio com os de Homero, o pesquisador afirma ter identificado tensões de natureza diversa, que decidiu assinalar na forma de semelhanças e diferenças. “No fundo, o que primeiro se percebe é a diferença de gênero. No plano homérico, tem-se a todo instante um verso que é muito elevado, que canta heróis, deuses e suas proezas. Tudo é muito grandioso. Na poesia lírica, porém, esse tom não é o mesmo. Em vários momentos das Odes, Horácio recusa se aproximar desse tom, chegando a dizer que não pode rivalizar com Homero. Não é esse o seu papel. Mas isso não quer dizer que ele não consiga emprestar situações, personagens e temas da épica grega”, explica Piccolo.

Um exemplo desses empréstimos está na forma como o texto horaciano reescreve episódios relacionados a Aquiles, personagem da Ilíada. No poema lírico, os feitos do herói grego, decisivo na guerra de Troia, assumem outra dimensão. “Às vezes, essa dimensão tem traços amorosos, às vezes filosóficos, às vezes ilustra uma recusa do poeta em cantar os feitos elevados e solenes da épica homérica”, reafirma o autor da tese de doutorado.

Nesse ponto, Piccolo esclarece que, ao identificar as influências épicas presentes na obra lírica de Horácio, ele optou por dividi-las em três categorias e mais um destaque. Este último refere-se a um recurso utilizado por vários autores clássicos, denominado recusatio. “A recusatio era uma estratégia empregada pelos poetas para se afirmar a partir de uma negação. Por exemplo, Horácio registra, em alguns de seus poemas, que gostaria de cantar os feitos de César [Augusto, a partir de 27 a.C.], mas que não conseguiria fazê-lo porque a sua lira não era guerreira”, exemplifica o linguista.

Quanto às três categorias mencionadas, Piccolo as classificou da seguinte maneira: as fronteiras entre o amor e a guerra, a passagem pelo submundo e o poema de louvor [também chamado de laudatio] com algo subliminar. Na primeira, o amor surge disfarçado em forma de guerra. Assim, no lugar de cantar batalhas entre heróis épicos, Horácio diz que cantará embates entre rapazes e virgens. Assim, ele compara a paixão de um amigo pela escrava com a paixão de Aquiles por Briseida. “São elementos de que o poeta se vale para modular sua lira erótica e caracterizar amores com traços épicos”, pontua o linguista.

A segunda categoria é marcada pela referência ao mundo dos mortos. A passagem pelos infernos, segundo Piccolo, também é um lugar comum nas epopeias antigas. O canto 11 da Odisseia e o 6 da Eneida, lembra o estudioso, são ambientados nesse submundo, quando ora os mortos se aproximam de Ulisses e seus companheiros, ora Eneias adentra na morada dos mortos. “Horácio usa essa ambientação fúnebre em tom lírico, alertando o leitor para a finitude da vida. Dessa forma, qualquer mal se torna pequeno, passageiro: todos nós passaremos pelo mesmo lugar por onde já passaram grandes heróis, diz o poema. A ode exorta sutilmente seu interlocutor a esfriar a cabeça e aproveitar a vida [carpe diem] antes que a morte chegue”, pormenoriza o pesquisador.

A terceira e última categoria refere-se à laudatio, espécie usada pelos poetas para prestar um elogio. Entretanto, Horácio acaba fazendo algo mais quando diz elogiar alguém e, ao mesmo tempo, toma elementos homéricos emprestados. “Em outras palavras, o poeta latino parece fazer apenas um louvor a alguém, mas na realidade ele acaba também louvando a capacidade da poesia de eternizar feitos, pessoas e personagens”, esclarece Piccolo.

Com base em sua pesquisa, o linguista defende a hipótese de que Homero, que viveu 800 anos antes de Horácio, era o autor preferido do poeta latinoO recurso aparece, entre outros trechos, quando se mencionam heróis que existiram antes de Agamêmnon e foram esquecidos porque ninguém os cantou. “Dito de outra maneira, a mensagem de Horácio é a seguinte: não importa se existiram ou não; apenas passará para a memória dos homens aquilo que cantaram os poetas. Portanto, esse poeta tem dons divinos, é um vate, capaz de eternizar a matéria de seu canto, assim como fez Homero no passado”.

A ideia de investigar a presença de elementos homéricos na obra de Horácio, de acordo com Piccolo, surgiu já na pesquisa desenvolvida durante seu mestrado, quando começou seu trabalho com o tema. Entre os escritos analisados na ocasião, as vinte Epístolas do livro I de Horácio, há uma em que o poeta, já maduro, escreve para um jovem amigo. Na missiva (Epístola 1.2), Horácio aconselha o rapaz a ler Homero, alegando que na obra do poeta grego é possível encontrar diversos ensinamentos filosóficos, mais valiosos que o de muitos filósofos, e dispersos por exemplos práticos: o comportamento de reis, príncipes, líderes, heróis, amigos, escravos etc.

Para Horácio, vícios e virtudes ganham vida nas tramas que Homero canta, basta o leitor refletir e colher o que deseja. Segundo o poeta latino, os textos homéricos tinham tudo o que o jovem precisava saber, sem o enfado de aulas ou manuais normativos. A leitura dessa e de outras cartas, infere Piccolo, garantem que Horácio devia ter travado contato com a obra de Homero desde a infância. “Após vasculhar vários textos e consultar meus orientadores, a conclusão foi de que o tema que escolhi não tinha sido aprofundado anteriormente. Os autores que o abordaram, o fizeram somente por algumas pinceladas, não trataram do conjunto. Assim, minha tese se inicia tratando das variadas menções que Horácio faz a Homero, inclusive nominais”.

Na sequência, o linguista defende a tese de que Homero era o autor predileto de Horácio. “Para sustentar essa afirmação, parto para a análise intertextual das Odes, destacando como o lírico romano modula em seus poemas latinos a influência épica do aedo grego. Embora cada um trabalhe gêneros poéticos distintos, é possível notar diálogos entre os poetas que propiciam interpretações renovadas dos dois textos”, considera o autor do trabalho.

Piccolo informa que optou por não privilegiar nenhum teórico moderno em particular ao desenvolver a metodologia da sua investigação. “Trabalhei com vários autores e me baseei fortemente em conceitos ligados à noção de intertextualidade. Ao colocar os textos de Horácio e Homero lado a lado, pude identificar de que forma o primeiro modula elementos do segundo. Ao final, consegui recolher mais de 500 remissões intertextuais em que há algo comum entre os poemas”, relata.

A partir dessa vasta relação, Piccolo percebeu que poderia agrupar e categorizar suas anotações. “Foi então que as dividi nas já referidas categorias e no destaque dado à recusatio. Por fim, eu diria que a metodologia foi definida pelo próprio caminho que percorri durante os estudos. Como a banca recomendou a tese para publicação, minha próxima tarefa será vertê-la para o inglês, na expectativa de uma circulação mais ampla e abrangente no meio científico”, adianta o linguista.

Piccolo contou com bolsa concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), agência de fomento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), além de período sanduíche em Oxford, com bolsa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão do Ministério da Educação. O pesquisador também obteve uma bolsa-prêmio para jovens pesquisadores, fornecida pela Fondation Hardt, de Genebra (Suíça).

 

Publicação

Tese: “O arco e a lira: modulações da épica homérica nas Odes de Horácio”

Autor: Alexandre Prudente Piccolo

Orientador: Paulo Sérgio de Vasconcellos

Coorientador: Stephen Harrison

Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)