Edição nº 630

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 29 de junho de 2015 a 02 de agosto de 2015 – ANO 2015 – Nº 630

Em compasso de espera


“Para Noël Devos: o intérprete perfeito, e por sua sugestão”. Quando o fagotista Noël Devos recebeu em 1994 um exemplar de Variações para Fagote e Orquestra, de Alceo Bocchino, e viu a dedicatória de seu autor, imediatamente lhe veio à memória o ocorrido numa noite 40 anos antes, no Rio de Janeiro. Com o teatro lotado e sob o comando do maestro Eleazar de Carvalho, então à frente da Orquestra Sinfônica Brasileira, Devos iniciou o solo do segundo movimento da Suíte Miniatura. Mais tarde, na coxia, ele encontrou o autor da peça, o mesmo Alceo Bocchino, e sugeriu que, a partir do segundo movimento, o compositor criasse variações do tema, que Devos achou tão bonito. Passadas quatro décadas, Bocchino não tinha esquecido. Estava apenas à espera do tempo certo.

E o tempo certo chegou numa apresentação da Orquestra Sinfônica do Paraná. Novamente Devos, um francês radicado brasileiro, tido como mestre dos mestres de todos os fagotistas brasileiros e estrangeiros, estava no palco. Desta vez, interpretando as Variações. Do encontro na coxia foi este o resultado mais concreto. O impalpável foi outro. A amizade e o respeito mútuo atravessaram mais uma década. Estavam acostumados a caminhar em Ipanema, falando sobre os rumos da música no Brasil. Mas, na tarde de 9 de outubro de 2010, seis meses antes de morrer, Bocchino recebeu Devos em casa. A memória neste dia não lhe escapou. Um antigo conhecido, levado pelo fagotista, participaria do encontro, narrado a seguir por Jamil Mamedio Bark, autor de tese sobre a obra de Bocchino.

O fagotista Noël Devos (à esq.) com o maestro e compositor Alceo Bocchino (centro), cuja obra e trajetória foram analisados na tese de doutorado de Jamil Mamedio Bark (à dir.): lembranças de um encontro inesperadoAos fatos. Devos brincou com Bocchino: “lembra do Jamil, lá do Paraná? Foi meu aluno de fagote. Já tocou com o senhor, também! Ele vai precisar gravar uma entrevista, tudo bem? Ele veio com a esposa, Josely. Bocchino mirou Jamil: “Eu me lembro de você quando entrou na Orquestra Sinfônica do Paraná”. Jamil sentiu-se melhor. O maestro estava em sua banca de seleção. “Então, maestro, estou fazendo doutorado na Unicamp, em Campinas, e a tese será uma análise e interpretação, um estudo das Variações para Fagote e Orquestra da sua obra, do tema da Boneca Italiana Quebrada, segundo movimento da Suíte Miniatura”. Bocchino fez que entendeu, mas demorou a acreditar: “Que beleza! Eu mereço essa láurea?”.

Cheio de ideias, o pesquisador Jamil, já um músico profissional da Sinfônica do Paraná, tinha na cabeça a vontade de discutir algo que parecia um pouco complicado, que era a diferença entre interpretação e performance. Bocchino, maestro de ouvido absoluto, arranjador, pianista desde os cinco anos de idade, embora com vasta formação que incluía a obtenção de diploma pelo Conservatório Paranaense de Música, em Curitiba, nunca pensou no assunto. “O termo performance está ligado à experiência ao vivo do músico intérprete no palco com seu instrumento, incluindo os gestos e aspectos corporais. É o ato momentâneo da apresentação musical. Já a interpretação designa a leitura da partitura de uma obra, transformar ideias em som, dar vida à partitura, maestro”, ponderou Jamil Bark. 

Devos entrou na conversa e quis saber o que isso tinha a ver com a obra de Bocchino. “É que, na minha tese, professor, eu pretendo dar sugestões de interpretação para as Variações, então precisa ficar muito claro essa diferença com a performance”. O mestre fagotista ficou orgulhoso do aluno. Ele não imaginava que o músico profissional que ajudou a formar, e que via tocar tão compenetrado na Sinfônica do Paraná, tivesse se tornado um pesquisador tão apurado. “Você tem razão, Jamil, são coisas diferentes”, assentiu o compositor. 

Em sua pesquisa do doutorado, Jamil “dissecou” todas as nuances da obra de Bocchino. Conhecia a partitura talvez até mais que o próprio compositor, que se assustou quando Jamil lhe garantiu que não seria possível tocar piano em um determinado trecho, como estava descrito, porque senão o fagote não seria ouvido. “Sabe, maestro, eu gostaria que esta obra fosse mais tocada e conhecida, inclusive no meio acadêmico, por isso eu estou pensando em dar o caminho das pedras, para quem quiser interpretá-la. E essa análise tem a ver com as Práticas Interpretativas, que é a minha linha de trabalho na pesquisa”.

O compositor ficou lisonjeado e feliz com o destino da obra. “Devos, me alcance a partitura, quero ver uma coisa”. O professor pegou uma pasta em cima do piano e entregou a Bocchino. “Essa composição deste tema aí, me lembro... eu tinha oito anos de idade e meu pai mandou trazer este mesmo piano. Eu era um garoto de calça curta, mas quando este piano entrou em casa, fiquei com os olhos arregalados. Foi incrível! É como quando você consegue seu fagote... é uma satisfação enorme!”.

A exemplo de Bocchino, Jamil também foi precoce. Com 19 anos, ingressou na Sinfônica do Paraná. Achava que não sabia tocar direito e, a cada 15 dias, corria para o Rio de Janeiro para estudar com Devos. O fagote, que instrumento extraordinário! O pesquisador procurou seus antecedentes para realizar a tese. “Já no século 13 buscava-se um som mais grave e com isso o tamanho do instrumento só aumentava. No século 16, a bombarda-baixo chegou a mais de dois metros de comprimento. Depois, o instrumento foi dividido em seções, ‘dobrado’, e só então chegou a 1,35 metros”, explicou.  

Por uma demanda do compositor alemão Richard Wagner, surgiu o sistema do fagote alemão paralelamente ao sistema francês, o que perdura até hoje. Os orifícios ganharam diâmetro maior nos graves e menor nos agudos, o contrário do sistema francês. 

O italiano Vivaldi escreveu 39 concertos para fagote solo e orquestra. W. A Mozart compôs o Concerto em Sib Maior que é referência no repertório para fagote e orquestra.

“No libreto do CD, consta que a sua obra vem da Suíte Miniatura, do segundo movimento. A ideia veio dos brinquedos quebrados de suas filhas, Gulnara e Rosalba. E deste tema o senhor tirou as Variações, a pedido do professor Devos, não é isso?”, perguntou Jamil. “É isso aí! O Devos foi um sujeito que sempre me deu satisfação na orquestra!”. O maestro não se cansou de elogiar o fagotista.

O CASAL TOCA

Apesar de ter sido o autor, Alceo Bocchino não ouvia há muitos anos as Variações para Fagote e Orquestra. Nem tinha como, já que não havia nenhuma gravação da obra. Esta foi oportunidade única. E antes do som, o silêncio e uma expectativa enorme. O duo, formado por Jamil e a esposa, tocou como em dia de estreia. O maestro parecia surpreso com o próprio trabalho. Já havia se esquecido de muito que estava ali.

Jamil se antecipou na pergunta: “Se o senhor fosse dar sugestões a um fagotista que quisesse tocar sua obra, quais seriam? O que seria essencial para tocar a obra?” Ele estava muito interessado em tudo que Bocchino pudesse acrescentar. “Todo contraponto que você ouvir, mesmo sendo de poucas notas, é importante e deve ser expressivo. Elas [as notas do contraponto] sempre dizem alguma coisa, mesmo sendo simples”.

O pesquisador entendia o que Bocchino estava falando. Jamil procurava expor na tese de doutorado como seria uma interpretação consciente da obra. Porque havia de ser pianíssimo em determinado ponto, a questão do timbre, porque precisava ser “claro” e não “escuro”, a articulação, em tenuto e não staccato. “Admiro muito sua escrita, que é polifônica, remete muito à música brasileira. As melodias, todas as vozes, a malha na redução para o piano e na orquestra, tudo é admirável”, disse Jamil.

O autor da tese gostava de estudar para não “tocar simplesmente de forma mecânica ou intuitiva”. Preocupava-se com a análise da estrutura da obra: como o compositor desenvolveu o tema; qual era a técnica utilizada; se ele retomou pedaços do tema criando acompanhamentos; e como trabalhou entre o instrumento solista e a orquestra. Para o pesquisador, interpretação e performance poderiam trabalhar em conjunto, em favor de um trabalho mais integrado.

“Professor Devos, percebi que a performance do músico é enriquecida quando ele tem informações históricas, analíticas, interpretativas sobre a obra”, afirmou Jamil. Esse pensamento ele queria levar para a banca de doutorado. O mestre concordou. Mas em relação a tocar as Variações, ele tinha outra dica. “Precisa se divertir com ela, como músico. Então você tem que exteriorizar mais, aproveitando o nosso temperamento aberto, latino. No Scherzo, por exemplo, tem que fazer sentir mais, exagerar, pela articulação – o acento nas duas notas ligadas fica mais rítmico, bem articulado –, e aproveitar o fagote quando faz triste e pouco plangente nas notas agudas, fazendo um pouco mais com o sopro, concretizar e exteriorizar mais. É como o violoncelo em frente da orquestra: se o violoncelo toca bem, aí o som passa. Se tocar como solista sem medo, o som passa, mesmo sem tocar mais forte, ou seja, é a intenção de tocar para fora. Entendeu?”

Por hora, chegou o café. Os três: maestro, professor e pesquisador já conversavam à solta. Os últimos acordes executados por Jamil e a esposa ainda ecoavam para Alceo Bocchino. “Eu fico me perguntando: será que fui eu mesmo que fiz isto? O ritmo brasileiro que botei ali vale a pena, funciona muito bem! Tem coisas muito boas ali! Eu nem pensei que fosse tanto assim!” E Jamil achou por bem registrar o encontro numa fotografia.

Gravação integra tese

A entrevista de Jamil Bark com o maestro, compositor e pianista Alceo Bocchino, então com 93 anos, foi a última da vida do compositor, que morreu em 7 de abril de 2013, aos 94. Bocchino foi fundador e maestro de diversas orquestras, entre as quais a Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC. Nascido em Curitiba, morava no Rio de Janeiro desde 1946. Foi maestro titular da Orquestra Sinfônica Brasileira de 1963 a 1965. A gravação das Variações para Fagote e Orquestra feita durante o encontro foi anexada à tese de doutorado, assim como trechos da entrevista transcrita. A obra foi executada no ano de sua composição (maio de 1994) – primeira audição mundial – pelo fagotista Noël Devos, no Centro Cultural Teatro Guaíra, em Curitiba, acompanhado pela Orquestra Sinfônica do Paraná sob a regência do maestro e compositor Alceo Bocchino. Não houve gravação desta estreia e foi a única execução até hoje. 

Publicação

Teses: “Variações para fagote e orquestra de Alceo Bocchino – estudo analítico e interpretativo”

Autor: Jamil Mamedio Bark

Orientador: Mauricy Matos Martin

Unidade: Instituto de Artes (IA)