Edição nº 606

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 15 de setembro de 2014 a 21 de setembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 606

Tese resgata protagonismo de Massaini no cinema nacional


A história do cinema brasileira costuma ser contada como uma sequência de rupturas – como, por exemplo, ascensão e queda dos estúdios Atlântida e Vera Cruz, início e fim da era das chanchadas, do Cinema Novo, criação e desmonte da Embrafilme. Essa linha narrativa ignora um caso excepcional de continuidade, a trajetória do produtor e distribuidor Oswaldo Massaini (1920-1994), que entre as décadas de 40 e 80 produziu mais de uma centena de filmes, incluindo o único vencedor sul-americano do Festival de Cannes, com a Palma de Ouro para “O Pagador de Promessas” (1962), dirigido por Anselmo Duarte.

“Há numa espécie de lacuna na historiografia do cinema brasileiro”, disse ao Jornal da Unicamp o pesquisador e crítico de cinema Luciano Ramos. “Se você olhar para a historiografia acadêmica, são vários os estudos que tentam explicar por que o cinema nacional não vai para frente, por que tudo acaba tão depressa. Há uma grande preocupação com a descontinuidade, mas o Massaini é um exemplo de continuidade”. Ramos é autor da tese de doutorado “Oswaldo Massaini: um produtor na história do cinema brasileiro”, defendida no Instituto de Artes da Unicamp.

A tese resgata a história da relação pessoal e profissional de Massaini com o cinema, e com o cinema nacional em particular. Lembrando a atividade de Massini como distribuidor, Ramos diz que a relação daquele empresário com a produção brasileira era “ideológica, não racional, em termos de como se entende a racionalidade capitalista. Ele só trabalhava com filmes brasileiros, o que era, portanto, uma questão afetiva”. 

Essa “falta de racionalidade”, no entanto, não impediu que a empresa criada por Massaini para distribuir e, depois, produzir filmes, a Cinedistri, sobrevivesse e prosperasse. A Cinearte é a firma sucessora da Cinedistri e ainda se encontra em atividade, sob o comando de um filho de Oswaldo, Aníbal Massaini Neto. “ ‘Pelé Eterno’ é uma produção recente dela”, lembra Ramos.

Pilares

Massaini trabalhava com “rede social antes das redes sociais”, informa o pesquisador. “Investia com insistência e afinco numa rede de relacionamentos, o que é um aspecto pouco estudado. Por exemplo, de todo mundo ele registrava data de aniversário e mandava cartão, escrito com a caligrafia dele, o que era um toque pessoal. Isso gerava um capital político, no sentido de política da categoria, política cinematográfica”.

A tese de Ramos defende a hipótese de que o sucesso e a longevidade dos empreendimentos de Massini se assentaram em cinco pilares: unicidade; continuidade; estabilidade; intencionalidade; e flexibilidade. 


A continuidade vem do fato de a Cinedistri, distribuidora criada por Massaini em 1949, ser sucessora direta da Cinédia Distribuidora, companhia estabelecida em São Paulo pelo produtor carioca Adhemar Gonzaga (1901-1978) para distribuir seus filmes no sul do país. Massaini era o gestor dessa distribuidora e quando Gonzaga decidiu fechar o escritório paulista, legou sua carteira de clientes a Massaini, que criou a Cinedistri, nome que corresponde ao endereço telegráfico da antiga Cinédia Distribuidora. 

“Os clientes só perceberam a mudança ao emitir a primeira nota fiscal contra a nova distribuidora”, escreve Ramos em sua tese. “Isso significa que estamos diante de uma empresa distribuidora e produtora de filmes que, na prática, teve o seu verdadeiro início em 1930, com a fundação da Cinédia da qual se desprendeu, como um ramo que brota do tronco de uma árvore para gerar novos frutos”.

Na questão da unicidade, Ramos diz que Massaini foi original nas soluções empresariais que encontrou para sustentar seu negócio. “Ele fez dezenas de filmes e se tornou um grande produtor sem empatar capital em estúdios ou contratar profissionais fixos”, disse. “Massaini chamava sempre as mesmas pessoas para trabalhar com ele, os melhores técnicos. Não contratava pela CLT, mas todos sabiam que, se o filme desse certo, os seus colaboradores seriam chamados para o próximo projeto”. 

A estabilidade vinha de uma palpável “firmeza institucional”, nas palavras de Ramos: “Ele reinvestia em cinema o dinheiro que ganhava com os filmes. E, como distribuidor, foi um defensor do prestígio da atividade, que muitos produtores e exibidores viam como a de um mero atravessador. Em 1952, chegou a propor um código de ética para a distribuição de filmes”.

A flexibilidade aparecia na capacidade de Massaini se adaptar ao gosto do público. “Ele começou com um filme sério, um drama sobre prostituição, foi para a comédia, a chanchada, mas depois acabou fazendo ‘O Pagador de Promessas’”, disse o pesquisador. “Ele se mantinha atento aos resultados da bilheteria, e chegou a contratar o Mazzaropi que trabalhava na Vera Cruz”, e que depois iria criar sua própria distribuidora. “Lançou o Ankito, que era artista de circo antes de virar astro de chanchada e contratou a Dercy Gonçalves. Mantinha-se sempre atento: quando aderiu ao ciclo dos filmes sobre cangaço, foi porque viu o sucesso de “O Cangaceiro” (produção de 1953 da Vera Cruz) e de “A Morte Comanda o Cangaço” (produção de Aurora Duarte em 1960).”

Como distribuidor, explica Ramos, Massaini tinha mais contato, e mais responsabilidades, com um público mais amplo do que produtores e exibidores. “O distribuidor precisava cuidar da promoção do filme em escala nacional e fazer o que hoje chamamos de assessoria de imprensa”, disse o pesquisador. “Tinha de desenvolver uma visão do mercado nacional, saber para onde mandar o filme”. O exibidor, por sua vez, tinha como preocupação principal sua bilheteria específica, e muitas vezes preferia o filme estrangeiro, de retorno mais garantido.

“Massaini era um produtor com olhar de distribuidor. A Cinedistri foi o que faltou à Vera Cruz e ao Cinema Novo”, afirma o pesquisador. A Vera Cruz, um estúdio criado pela elite paulista para produzir filmes de qualidade internacional, durou menos de dez anos, entre o fim dos anos 40 e meados da década de 50.

Estética

O quinto pilar do sucesso de Massaini, a intencionalidade, aparece nessa preocupação de manter o dedo no pulso dos exibidores e do público, decidindo que filmes fazer e como fazer. De modo igualmente deliberado, impulsionou, por exemplo, a carreira de Ankito como ator de chanchadas, assim como a de Anselmo Duarte, originalmente um galã romântico, como cineasta. A tese cita, como exemplo dessa capacidade de visão, trecho de depoimento do empresário ao Museu da Imagem e do Som: “Sempre que podia, eu pensava num cinema mais sério, mais evoluído, uma coisa que se sobressaísse. Porque também a televisão me obrigou a tomar outro rumo. Ou seja, aquele espetáculo de gênero eminentemente popular que eu produzia começou a aparecer pela televisão!”

O trabalho de Ramos argumenta que Massaini tinha parâmetros estéticos que buscava manter em todos os filmes que produzia. Segundo Ramos, “ele acreditava que uma história bem contada e bem produzida sempre teria público. As comédias musicais dele recebiam o rótulo de chanchadas, mas ele dava um toque de qualidade que as diferenciava das chanchadas da Atlântida”, produtora carioca que se dedicava exclusivamente ao gênero. “Ele contratava os melhores técnicos e, assim, alcançava uma qualidade extra. O público percebia que o Massaini conseguiu uma síntese entre o apuro técnico da Vera Cruz e o charme carioca. E aí entra a importância da estabilidade: o hábito de trabalhar sempre com os mesmos colaboradores. Ele não assinava carteira, mas garantia trabalho”.

O trabalho com o empresário acabava servindo de escola para vários profissionais. “O escritor de novelas Silvio de Abreu começou como ator do Massaini, em seguida trabalhou como roteirista, assistente de direção e direção”, conta. “E o galã Anselmo Duarte teve uma trajetória semelhante. O financiamento para ‘Absolutamente Certo’, primeiro filme dirigido por ele, aliás, quase não saiu porque os bancos relutavam em pôr dinheiro na mão de um galã. Os recursos só foram aprovados graças ao prestígio do Massaini”.

Estado

Diferentemente do Cinema Novo, que nas palavras de Ramos “colonizou” a Embrafilme, e do cinema brasileiro atual, dependente de leis de incentivo fiscal, Massaini só muito raramente se beneficiou de apoio financeiro governamental. “Mesmo ‘Independência ou Morte’ (de Carlos Coimbra, 1972) não recebeu verbas do governo... Foi o governo que depois se aproveitou da popularidade do filme”, diz o pesquisador. “Muita gente ainda acha que ‘Independência ou Morte’ foi encomendado pela ditadura, mas tratava-se de um projeto que visava aproveitar comercialmente o sesquicentenário da Independência. Depois de pronto, o Médici (Emílio Garrastazu Médici, que governou o Brasil de 1969 a 1974) viu o filme e adorou. Na verdade, o governo só ficou sabendo do ‘Independência ou Morte’ quando a fita foi enviada para a censura”.

“O filho dele eventualmente recorreu a financiamentos da Embrafilme para os seus projetos na Cinearte, mas o Oswaldo Massaini não usou dinheiro do Estado”, diz Ramos. Como exceção, “A Madona de Cedro” (de 1968) foi realizado em coprodução com a Metro, por meio da lei de remessa de lucro. Foi a entrada do Estado no ramo de distribuição cinematográfica, aliás, o que marcou a decadência da Cinedistri.

“Inicialmente a Embrafilme não se envolveu com a comercialização de filmes. Por meio de um depoimento de Durval Gomes Garcia, que foi presidente do Instituto Nacional de Cinema, a tese levanta a possibilidade de um pacto entre a Cinedistri e a nova estatal. A partir de 1973 e, mais fortemente de 1975, foi a entrada no mercado da distribuidora da Embrafilme o que determinou o fim da Cinedistri”, afirma o pesquisador. 

Ramos atribui a negligência da historiografia e da academia para com a produção de Massaini a um acidente histórico: o início dos estudos sobre cinema no meio universitário coincidiu com o auge do Cinema Novo. “O pessoal queria derrubar o capitalismo e, portanto, detestava o cinema americano e os filmes de entretenimento: o que valia era a Nouvelle Vague e Neorrealismo. No Brasil, era o momento do Cinema Novo. Uma boa parte dos nossos estudos acadêmicos trata da obra de Glauber Rocha. Portanto, o Cinema Novo deixava na sombra o Massaini, e todo o gênero da comédia musical”.

 Samurais e Cangaceiros 

O pesquisador cita com satisfação algumas “descobertas colaterais“ que fez ao pesquisar sua tese, “que não fogem do tema, mas iluminam pequenos temas”. Uma delas trata da coincidência temporal entre o ciclo dos filmes de cangaço, no Brasil, e dos filmes de samurai, no Japão. A tese relata como Shiro Kido, produtor japonês e pai dos filmes de samurai, encontrou-se com Massaini, em São Paulo: “Ele se encantou pelas aventuras de cangaceiro, em particular com ‘Lampião, o Rei do Cangaço’. Na ocasião, Kido adquiriu os direitos daquele título para lançar no Japão, além de ‘O Pagador de Promessas’ e de ‘A Ilha’ de (Walter Hugo) Khoury – todos com distribuição da Cinedistri – tornando-se assim o primeiro empresário nipônico a mostrar nossos filmes por lá”.


Publicação

Tese: “Oswaldo Massaini: um produtor na história do cinema brasileiro”
Autor: Luciano Ramos
Orientador: Fernão Pessoa Ramos
Unidade: Instituto de Artes (IA)