Edição nº 606

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 15 de setembro de 2014 a 21 de setembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 606

A língua dos segregados

Pesquisadora do IEL analisa cartas escritas por presidiários paranaenses

A partir de 100 cartas manuscritas por presidiários, a agente penitenciária Vera Lucia da Silva, formada em letras e mestre em estudos linguísticos, desenvolveu uma tese de doutorado que contribui com outro viés teórico – além da psicologia, da sociologia e do direito – para os debates em torno do sistema prisional. Baseada em teóricos da análise de discurso, a autora identificou nas cartas uma regularidade de temas cristalizados na sociedade capitalista, como trabalho, educação, propriedade, família e religiosidade.

“Sujeitos segregados pelo jurídico: a língua e a história na produção epistolar de presidiários” é o título da pesquisa orientada pela professora Carolina Maria Rodríguez Zuccolillo e defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. “Sou funcionária do sistema prisional do Estado do Paraná há quase 20 anos. Ao terminar o mestrado sobre mídia e política, quis desenvolver um projeto de doutorado que viesse ao encontro da minha atuação profissional”, justifica a pesquisadora.

Vera Lucia exerce o cargo de agente penitenciário na Casa de Custódia de Maringá (PR) e, enquanto mulher dentro de um universo masculino, uma das suas atividades é a leitura das cartas que os presidiários enviam e recebem de parentes, amigos e instituições. “O termo para esta função é ‘revista de cartas’; na verdade, uma leitura censória para tentar impedir que os prisioneiros usem de forma ilícita o direito que têm de se comunicar com o mundo exterior. A unidade possui capacidade para 800 presos provisórios e a média de cartas é de 700 por mês.”

A pesquisadora explica que, oficialmente, a revista de cartas é considerada relevante para impedir planos de fuga e resgate de presos; descrição do espaço físico e da rotina carcerária; ordens ao tráfico de drogas e de assaltos e sequestros; solicitação de celulares, drogas e armas; e denúncias contra a instituição e funcionários, entre outras ações. “Mas o preso sabe que sua carta vai passar por um crivo e só escreve o que é permitido. Detectamos pouca coisa. Minha pesquisa envolve cartas que saem pela via lícita, existindo as clandestinas, que saem geralmente pelas mãos de familiares, advogados, religiosos, funcionários e presos que vão a audiências ou são transferidos.”

Vera Lucia precisou submeter o projeto de doutorado ao Conselho de Ética da Unicamp e solicitar autorização dos prisioneiros para utilizar as cartas que havia selecionado e arquivado. “Na tese procuro traçar um panorama histórico do sistema prisional do Brasil, chegando ao paranaense e até a instituição em que trabalho. Trato também da questão da inviolabilidade. Pessoas questionavam se, ao ler as cartas, eu não estaria violando um direito inalienável dos presos. Mas não existe direito absoluto e a leitura das cartas se respalda na proteção da sociedade e da própria unidade prisional.”

 No capítulo mais importante da tese, referente à análise dos discursos produzidos nas cartas, a linguista identificou várias regularidades temáticas. “Os encarcerados escrevem muito sobre trabalho, educação, propriedade, família e religiosidade, e também sobre a ressocialização que o Estado teoricamente aplica visando preparar o preso para sair e não voltar mais à prisão. Eles simplesmente negam o presente na cadeia, projetando-se num futuro vindouro ou relatando fatos do passado. Falam do passado de uma vida na liberdade e de quando voltarem para a rua; sendo que a rua possui para eles uma simbologia muito maior do que para nós: não é apenas lugar para ir e vir, é o lugar do possível, da liberdade.”

 

Prática recorrente

Segundo Vera Lucia da Silva, a escrita de cartas é uma prática recorrente que permeia a vida dos encarcerados, que buscam aliviar o espírito, a solidão e a saudade, e se possível conseguir “adiantos” (favores e privilégios que facilitam a vida no cárcere). “Na escrita para familiares e amigos, não há a preocupação da formalidade, mas quando é endereçada às instituições ou autoridades políticas e religiosas, é comum o recurso de um escriba – preso que se destaca pelo ‘dom’ de escrever ‘bonito’.”

A pesquisadora observa que as cartas para familiares costumam ser dirigidas a uma figura feminina (mãe, irmã, cônjuge) e falam da solidão, do amor, da sobrevivência no cárcere e do desejo de transpor as grades e ficar para sempre junto aos entes queridos. “São também para pedir alimentos, roupas, produtos de higiene, remédios. Para as instituições públicas e autoridades políticas e jurídicas, solicitam revisão de processo, perdão de pena, progressão de regime, transferência de presídio.”

A análise teórica permitiu a Vera Lucia perceber que as cartas dos presos estão impregnadas de um discurso do Estado, começando pela repetição dos discursos da própria instituição penal. “Existem políticas públicas voltadas ao sistema prisional visando à ressocialização do apenado através do trabalho e da educação. Entidades públicas e privadas se juntam para organizar cursos específicos voltados à demanda mercadológica, como da construção civil, onde faltam azulejistas, pedreiros, encanadores, eletricistas.” 

 

“O cara do bem”

A autora incluiu na tese trechos de cartas divididos em tópicos como “O cara do bem pelo trabalho e educação”, mostrando a importância atribuída pelo preso aos cursos profissionalizantes porque possibilitam sair “qualificado” para o mercado de trabalho e não reincidir no crime: “[...] Quando eu sair eu já tenho um emprego então isso será o primeiro passo pra comesarmos a ter uma vida tranqüila”; ou “[...] quando eu sair do meu serviço, que pode até ser de gari, como a senhora me disse um dia, que serviço é serviço, o importante é deitar no seu travesseiro, e dormir em paz”.

“O cara do bem pela propriedade e o vínculo familiar”, conforme Vera Lucia, é aquele que comunga com os discursos oficiais de que é preciso estudar e trabalhar para subir na vida, pois tendo perdido a sua liberdade, passa a sonhar com o mínimo: “[...] eu não quero mais nada nesse mundo, somente você e nossos filhos e o nosso cantinho pra morar, no final de semana fazer aquele almoço com toda a família reunida, nossos pais, irmãos, subrinhos, brincar conta história, da risada, esse é o meu sonho amor e vou realizar ele”.

Outro tópico é sobre “O cara do bem pela religiosidade”. A pesquisadora afirma que a adesão a uma religião, sobretudo às protestantes, é uma estratégia para antecipar a liberdade, cumprir a pena com mais conforto e manter vínculos com pessoas influentes a fim de obter favores: “[...] venho por esta dizer que eu estou batizado e sou Evangélico graças a Deus, resolvi me converter em cristo e alcançar o perdão através do arrependimento e hoje posso te dizer que sou outra pessoa apezar de ainda estar cumprindo pena [...] oro muito por você e por toda sua família queria muito que você me perdoasse de todo o mal que lhe causei”

 

A culpa no indivíduo

A linguista vê nas cartas dos encarcerados a liberdade ressignificada como algo que irá acontecer em breve, delimitando o fim do sofrimento e o início de uma vida planejada dentro dos padrões capitalistas que determinam um estilo de vida – da vida certa. “Não há alternativa para este sujeito que quer reconquistar a possibilidade de livre circulação social, a não ser se posicionar em suas cartas como submetido às adequações pautadas pelo sistema: a família, a religião, o trabalho, a formação profissional, o assumir-se como ressocializado.”

Vera Lucia da Silva acredita que sua tese de doutorado, com ênfase na linguística e análise de discurso, contribui para inserir nos debates a questão que julga crucial: a culpabilização da violência no indivíduo. “Pouco se fala de um sistema em que a riqueza está concentrada nas mãos de poucos, o que leva, obviamente, ao aumento de uma grande massa de excluídos; isso está silenciado nos debates através da culpabilização individual e não do sistema como um todo, que gera mecanismos de violência e a sensação de perda de controle perante esta situação social”.

 

 

O aniversariante*

Hoje dia do meu aniversario, qui carai  
23 anos nem síquér meus proprios manos lembrou de mim 
até a vaca que dizia me amar rezouveu me abandonar  
acendo um cigarro pra a caumar o estrêce
enquanto o tempo passa la fora 
sem estudo e desempregado o preto aqui por falta de oportunidade
foi obrigado ameter os ferros/taí orezutado 20 anos de recrusão
mais um preto mofano na prisão  
si eziste infêrno esse é o lugar  
vem pra ca requião [Roberto Requião, então governador do PR]
sentir na pele o sofrimento da quela mãe que amanhece 
o dia garimpano no lixão pra não vêr o filho morrer de fome 
enquanto você e sua familha come caviar e champãe 
queria ver se foce a sua mãe que tivece garimpano 
no lixão pra você sobreviver  
filho da puta corrupto você não sabe o que é sofrer  
enquanto a liberdade não vem  
eu continuo aqui sem motivo pra ri 
sobreviver em paz nesse lugar do capeta é muita treta  
sair não tem como muito menos vestir uns panos da hora 
o que eu mais queria agora é tala fóra 
pra buscar minha filha na pórta da escola 
não passar o aniversario trancado feito bixo 
custurano bola de graça pra éssa raça de ladrão 
engravatado que ozépovinhoelegel 
acendo um cigarro pra a caumar o istreti 
enquanto o tempo passa la fora meus filhos crece 
recramano o azencia do pai 
mais qui carai de vida sofrida 
por falta de o portunidade é que o preto aqui 
foi o brigado a meter os ferros 
tai o rezutado 20 anos de recruzão 
mais um preto mofano na prisão 
si eziste infêrno esse é o lugar  
vem praca requião sentir na péle o sôfrimento  
da quêla mãe que amanhéce o dia 
garimpano no lixão pra não vêr os filhos 
morrer de fome equanto fome

*(Carta endereçada aos leitores (censores) da prisão, pois foi depositada sem envelope, endereço e destinatário em uma carteira escolar que servia como posto de coleta de cartas. Ela foi “deixada” para ficar ali mesmo, na instituição penal. Talvez seria lida, talvez não. Foi lida por mim.)

 

Publicação

Tese: “Sujeitos segregados pelo jurídico: a língua e a história na produção epistolar de presidiários”
Autora: Vera Lucia da Silva
Orientadora: Carolina Maria Rodríguez Zuccolillo
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)

Comentários

Comentário: 

Parabéns! Excelente trabalho.

suelyadv2000@yahoo.com.br

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Foi lida por nós. Parabéns pelo lindo trabalho.

paulabio@yahoo.com.br

Comentário: 

Parabéns Vera Lúcia! Anos de estudo e dedicação reconhecidos com louvor.

lucineiamarques2003@gmail.com