Edição nº 602

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 11 de agosto de 2014 a 24 de agosto de 2014 – ANO 2014 – Nº 602

A invenção do artista moderno


A perspectiva é uma das principais invenções do Renascimento italiano. Suas bases teóricas, que pressupõem a projeção de linhas convergentes para um ponto no infinito, destacavam-se no início do Quatrocentos por preceder a recolocação do Sol no centro do universo e porque logo encontrariam equivalentes na intuição da existência do pensamento e do universo infinitos. Tais elementos, assim simplificados, podem bem dar a dimensão da época que então se inaugurava.

Como não poderia deixar de ser, essa história precisava ser escrita e precisava de um herói. Filippo Brunelleschi é hoje recordado não apenas como o engenhoso arquiteto que conseguiu assentar a imensa cúpula da catedral florentina – quem se lembra das contribuições de Lorenzo Ghiberti ou Battista d’Antonio? –, mas sobretudo como o inventor da perspectiva linear.

Esse retrato de Brunelleschi foi elaborado, em grande parte, a partir da biografia que dele escreveu Giorgio Vasari. Contudo, a imagem de Brunelleschi transmitida por Vasari não seria a mesma sem a contribuição de outro biógrafo, notadamente Antonio Manetti. Entre 1480 e 1482, Manetti escreveu a Novela do Grasso entalhador, a qual é seguida pela Vida de Filippo Brunelleschi, e desde esse momento ficaram delineados os contornos principais do retrato do artista.

São esses os textos agora publicados pela Editora da Unicamp, na coleção Palavra da Arte. Com tradução, notas e comentários de Patrícia D. Meneses, o livro foi prefaciado por Luiz Marques, do Departamento de História do IFCH.

Já no prefácio, Luiz Marques aponta para questões relativas à noção de identidade presentes no texto, para a crise da ideia de unidade do Eu que é desencadeada com a narração da anedota do Grasso entalhador, o qual, enganado pela argúcia de Brunelleschi, acredita ter-se tornado um outro. Quem é o Grasso e quem é Brunelleschi? Qual deles é de fato um artista?

O retrato de Brunelleschi proposto por Manetti insere-se no lento processo de aceitação do artista como personagem digno de ser lembrado. Os primeiros registros modernos dessa tradição são a inclusão de artistas entre os homens ilustres de Florença por parte de Filippo Villani e a autobiografia escrita por Ghiberti, mas é inegável a importância dos textos de Manetti para a consolidação da biografia de artista como gênero autônomo. Se o autorretrato pode ser entendido como local da consciência artística, a biografia de Brunelleschi eleva-se por criar a ideia do artista genial que supera todas as adversidades.

Fascinante foi a escolha de Manetti em preceder a biografia por uma anedota. Como bem nota Patrícia Meneses, pode-se ver aí a equiparação entre o engenho de Brunelleschi e a própria teoria da perspectiva, posto que, tanto no caso da burla imposta ao Grasso quanto no da perspectiva, estamos no terreno da ilusão, do ponto de vista que oferece uma nova percepção da realidade para cada indivíduo.

Não menos interessante é a subjacente questão da comparação entre Brunelleschi e Leon Battista Alberti. Patrícia Meneses chama-nos a atenção para o fato de que estamos diante de mentalidades completamente contrastantes; a de Alberti, estritamente teórica e que entende o legado clássico como lei universal, e a de Brunelleschi, que reconhece no repertório da Antiguidade tão somente um instrumento real para a solução de problemas práticos. Trata-se, assim, da valorização da autonomia criativa e do incentivo à superação do antigo através do estudo e do talento, tema central para os artistas que se formavam no momento de composição daqueles textos.

Essas são apenas algumas das questões suscitadas por esse livro. Leitura fundamental para os interessados em arte, arquitetura, literatura ou história renascentistas, também agradará ao leitor amador, que poderá se deleitar com o humor italiano típico do Renascimento e com os momentos em que, transportado pela imaginação à Florença do Quatrocentos, verá a si próprio contemplando a grande cúpula da cidade, perplexo diante da ousadia e do talento daqueles homens.


Alexandre Ragazzi é professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais




Serviço

Autor: Antonio di Tuccio Manetti
Introdução, tradução e notas: Patrícia D. Meneses
Páginas: 280 
Área de interesse: História da Arte
Editora da Unicamp | Preço: R$ 42,00