Edição nº 602

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 11 de agosto de 2014 a 24 de agosto de 2014 – ANO 2014 – Nº 602

Da primeira globalização à nova linguagem da política

Livro de intelectual francês revisita a fundação do pensamento político moderno

Atransição da Idade Média para os chamados Tempos Modernos marca o surgimento de um novo modo de se conceber o mundo e a política. Época dos grandes descobrimentos, a passagem dos séculos 15 e 16 também é marcada pelo surgimento de uma visão das relações entre os povos no campo da política que persiste até a contemporaneidade.   

Este é o cenário escolhido por Romain Descendre, professor da École Normale Supérieure de Lyon, na França, para desenvolver diversos estudos que resultaram nos 12 artigos reunidos na coletânea “Politização do Mundo”. O livro, que deverá ser lançado no começo de 2015 pela Editora da Unicamp, enfoca uma problemática central para a compreensão do mundo em que vivemos: a fundação do pensamento político moderno. A tradução está a cargo de José Horta, linguista e docente da Unicamp.

Descendre dedica-se a pesquisas na área de filologia política, enfocando o pensamento político italiano dos séculos 16 e 17 e suas relações com práticas de poder e com outros domínios do saber (literatura, filosofia, história, geografia, direito, dentre outras). Os artigos do livro foram produzidos a partir da análise de diversos tipos de textos de autores italianos no início da Era Moderna.

Na visão do autor, há dois processos mais ou menos contemporâneos em curso naquela época. “De um lado, há o que chamamos de primeira globalização, a época das Grandes Descobertas, das navegações, das conquistas, da colonização da América e de uma parte da Ásia. De outro, temos o desenvolvimento de uma nova linguagem da política, particularmente com [Nicolau] Maquiavel”, explica Descendre, que concedeu entrevista ao Jornal da Unicamp, no final de junho, durante sua passagem pela Universidade como professor visitante do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).

Nessa medida, o fio condutor que percorre os artigos são as interfaces entre esses dois fenômenos. “Pensar o mundo como uma unidade feita de partes diversas já era algo conhecido pela geografia, pela cartografia”, assinala o linguista. A novidade é que, naquela época, o mundo todo passou a ser pensado politicamente. “A partir deste ponto de vista, temos uma primeira globalização política, que abrange a consciência dos homens”. 

Esse processo de globalização política, destaca Descendre, aporta uma perspectiva que permanece atual até os dias de hoje: a análise política em termos de relação de força – perspectiva intrinsecamente relacionada com as disputas pela conquista de territórios e as guerras travadas ao longo da gênese da Era Moderna.

“Podemos falar objetivamente de politização do mundo porque a época foi marcada por conflitos em escala local, regional e mundial”, reitera. “São os conflitos políticos e religiosos entre comunidades em nível local, entre Estados no contexto da Europa e que se projetam como conflitos que envolvem o mundo todo”. Um exemplo é a luta entre portugueses e franceses no Brasil, depois entre os portugueses e holandeses, também no país, e posteriormente contra os corsários ingleses. “Era uma época efervescente, as guerras não paravam”.

 

Uma arte da linguagem

A visão da política como relação de força nasceu na Europa, mais especificamente na Itália, no começo do século 16, durante as Guerras Italianas (1494-1559) - uma série de conflitos que ocorreram na Península Itálica, envolvendo Espanha e França em disputas pelo domínio dos Estados herdados das antigas cidades-estados medievais.  

Nesse contexto, diplomatas e funcionários de governo dos Estados italianos atuavam como observadores, produzindo documentos em que relatavam e reportavam os acontecimentos e, também, transmitiam orientações. Um deles era Maquiavel [1469-1527], que atuava como diplomata em Florença. “Maquiavel desenvolveu muitas análises em tempo real, durante a guerra, sobre os erros e os sucessos dos diversos monarcas europeus que disputavam e se enfrentavam no território italiano”.

Os documentos produzidos na época colaboraram para dar origem à diplomacia moderna, na medida em que neles foram forjados conceitos – como o de Estado – e perspectivas de análise – como a da política como relação de força. 

“Os Estados italianos não tinham a força das armas. Os exércitos da França, da Espanha eram muito mais fortes, pois faziam guerra há centenas de anos. A inteligência era o único meio de os italianos se contraporem a tudo isso”, comenta Descendre. “Os italianos não faziam guerra, mas, em contrapartida, foram obrigados, durante muito tempo, a falar, a negociar a fim de manter sua independência”, complementa.

Nesse contexto, surge uma “tecnologia da diplomacia”, nos termos de Descendre: “É, essencialmente, uma arte da linguagem, uma arte de falar e uma arte da análise das relações de força”. E os italianos colocaram esta arte a serviço de seus Estados, num momento em que eles estavam desaparecendo sob a potência dos exércitos e das artilharias espanhola e francesa. 

 

Para além de Maquiavel 

Certamente, Maquiavel foi uma figura central para o desenvolvimento desta “tecnologia da diplomacia” e o contexto em que ele viveu permite compreender a novidade de seu pensamento.

“Ele foi secretário em Florença. Era ele quem dava as instruções a partir do centro para a periferia, do governo para os funcionários civis e militares que estavam em diferentes posições do Estado ou que estavam no exterior. No entanto, embora Maquiavel tenha sido, na visão de Descendre, o intelectual mais genial de seu tempo, havia outros que não escreveram livros, obras, mas que redigiram muitos relatórios e cartas.

Para o intelectual, o que mais chama a atenção, ao estudar os discursos produzidos pelos diplomatas italianos, é o fato de que as análises sobre a situação na Península Itálica foram reportadas e reutilizadas para explicar processos e situações que estavam ocorrendo em outros territórios (muitas vezes distantes da Europa), bem como para descrever o que ocorria em escala mundial. “É algo que se prolongou desde os séculos 16 e 17 até os dias atuais, nutrindo as análises no campo de geopolítica”.

Análises como essas são decorrência da linha de trabalho adotada por Descendre. “A especificidade de meu trabalho é mostrar como a visão de Maquiavel não se tornou letra morta, mas se perpetuou em outros autores contemporâneos e em gerações posteriores”, comenta.

Para tanto, o autor busca compreender o ferramental linguístico e analítico adotado por Maquiavel nos relatórios, cartas e outros tipos de documentos. “Enfoco como esses conflitos eram analisados, pensados pelos intelectuais da época. E eles analisavam tudo o que estava acontecendo com ferramentas herdadas de Maquiavel, particularmente das análises feitas na época das guerras italianas”.

 

Relações e conexões

Ele cita como exemplo uma passagem de um dos artigos incluídos no livro, em que o teólogo, poeta e diplomata Giovanni Botero [1544-1617] dizia ser contrário à proposta de abertura de um canal na América Central para possibilitar o trânsito naval entre a Europa e a Ásia, defendida pela Espanha. O objetivo era facilitar as operações comerciais com o continente asiático, utilizando as Filipinas (possessão espanhola à época) como base.

Segundo o pesquisador, Botero explica que não se deveria abrir o canal porque, se existisse uma via direta através da América Central, as monarquias católicas corriam o risco de perder o controle do Atlântico Sul, já que não haveria mais necessidade de os navios passarem por lá. Desse modo, uma parte enorme do mundo ficaria à mercê dos barcos dos corsários de origem das monarquias protestantes. 

“É este tipo de visão que eu chamo de politização do mundo”, comenta. “É uma análise geopolítica, que não poderia existir antes: seja porque havia um controle do pensamento nos espaços do mundo, seja porque não havia consciência, mas também porque este tipo de análise é típico do que encontramos em Maquiavel”.

Outro exemplo de politização do mundo analisado por Descendre é a articulação entre global e local – o jogo de escala, em que o nível local influencia o global e vice-versa. Neste contexto, ele cita o caso de Paolo Sarpi [1552-1623], um teólogo veneziano contrário ao poder papal e apegado à soberania e à independência política e intelectual de Veneza. 

“Ele achava que a soberania veneziana implicava, também, no controle da Inquisição, algo fundamental naquele momento”. Na época da Contra-Reforma, a Inquisição foi muito forte na Itália. Havia censura sobre livros e o pensamento. Em contraponto, havia um movimento pela manutenção da tradição de liberdade de consciência em Veneza. “Sarpi fez uma verdadeira guerra ideológica e intelectual contra Roma e também contra a ameaça espanhola”.

Ao mesmo tempo, algumas das cartas de Sarpi estudadas por Descendre evidenciam um interesse pelas novidades que chegavam de todo o mundo, repercutindo em suas análises.  “Ele expressava a ideia que a independência de Veneza em relação ao papa e à Espanha não poderia acontecer a não ser que os jesuítas fracassem na Ásia e na América”.

Descendre enfatiza que esse tipo de perspectiva é novo, pautado por uma visão de que os conflitos locais não poderiam se resolver de maneira dissociada dos conflitos em escala mundial. “Esses exemplos evidenciam um tipo de pensamento que efetivamente conecta espaços muito distantes entre si, bem como conecta espaços de larga escala com outros espaços pequenos e locais”.