Edição nº 597

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 19 de maio de 2014 a 25 de maio de 2014 – ANO 2014 – Nº 597

Mão na roda

Pesquisa mostra que prática regular de esporte atenua alterações vasculares e cardíacas em pessoas com lesão crônica na medula espinhal

Pesquisa interdisciplinar coordenada pelos professores da Unicamp Alberto Cliquet Junior, do Departamento de Ortopedia, e Wilson Nadruz, do Departamento de Clínica Médica, da disciplina de cardiologia, ambos da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), e José Irineu Gorla, do Departamento de Atividade Física Adaptada, da Faculdade de Educação Física (FEF), comprova que a atividade física ajuda a resguardar o coração de pessoas com lesão crônica na medula espinhal (LM). Por meio de ecocardiograma e ultrassom da carótida (a artéria que fica no pescoço e leva sangue para o cérebro), os pesquisadores demonstraram que exercícios regulares minimizam o processo de entupimento dos vasos, diminuindo o risco de infarto, acidentes vasculares e insuficiências cardíacas, mais prevalentes nesses indivíduos do que nas pessoas em geral.

O trabalho, que comprova que a prática regular de esporte está associada à atenuação de alterações vasculares e cardíacas em indivíduos com lesão crônica na medula espinhal, venceu, em 2013, a VIII edição do Prêmio Saúde, na categoria Saúde e Esporte, promovido pela revista SAÚDE é Vital, da Editora Abril.

A premiação, considerada uma das mais importantes de seu segmento no país, tem o objetivo de valorizar, incentivar e divulgar campanhas de preservação e educação, trabalhos clínicos ou de área cirúrgica e outras ações que tenham contribuído para melhorar a saúde e a qualidade de vida dos brasileiros. A Categoria Saúde e Esporte reúne pesquisas, ações e campanhas assinadas por profissionais da saúde para incentivar o estilo de vida ativo e derrubar as taxas de sedentarismo no Brasil, valorizando o esporte amador.

A respeito do trabalho premiado, lê-se no site da revista: “A cada ano, o desempenho de atletas paraolímpicos emociona e prova que é possível superar dificuldades impostas por limitações físicas. Surpreendem ainda a força, a disposição e o fôlego de quem se vale de cadeiras de rodas para participar de esportes coletivos. Esse estudo da Unicamp evidencia que tais práticas resguardam o coração de indivíduos com lesão na medula espinhal – e não precisa ser atleta para colher esses benefícios”. Os resultados das pesquisas levaram à publicação, em 2013, de três artigos em prestigiosos periódicos internacionais: Atherosclerosis, Medicine and Science in Sports and Exercise e International Journal of Cardiology.

 

Constatação

Os indivíduos com LM apresentam maior prevalência de doenças cardiovasculares, maior desenvolvimento de aterosclerose e pior função diastólica do ventrículo esquerdo em comparação com a população geral, independentemente de variações em fatores de risco tradicionais tais como idade, pressão arterial, tabagismo, parâmetros metabólicos e marcadores inflamatórios. Estudos demonstram que a incidência de doenças cardiovasculares varia de 30% a 50% em indivíduos com mais de uma década de LM, constituindo sua principal causa de morte.  Esse índice se reduz a 5% a 10% entre as pessoas mais velhas da população geral. “Nós nos propusemos a estudar o porquê dessa diferença”, diz Nadruz.

Para a realização do estudo os pesquisadores avaliaram três grupos: um composto por 28 pessoas sem problema físico algum, que constituiu o grupo controle, outro de 26 atletas com LM que jogavam basquete, rúgbi, tênis ou handebol adaptados, e um terceiro constituído de 32 sedentários com o mesmo tipo de comprometimento na medula. Esses indivíduos, que foram submetidos aos exames já mencionados, apresentavam as mesmas características: eram normotensos, normolipêmicos, não diabéticos, não fumantes e os portadores de LM não exibiam motricidade voluntária abaixo da lesão. Tinham a mesma idade e mesmo índice de massa corpórea. No grupo de atletas amadores lesionados todos treinavam e jogavam regularmente basquete, rúgbi, tênis ou handebol em cadeira de rodas há pelo menos um ano. 

O projeto começou em torno de 2007 com o objetivo de avaliar as repercussões cardiovasculares da lesão da medula espinhal, em geral decorrente de um trauma na coluna. A medula é o órgão responsável por conduzir o estimulo do cérebro até os membros permitindo a movimentação do corpo. As lesões na parte baixa da coluna comprometem a movimentação das pernas, levando à paraplegia, e as na região cervical, ao nível do pescoço, comprometem os movimentos das pernas e geralmente de parte dos braços, levando à tetraplegia. A população afetada é constituída em geral de homens vítimas de traumas que ocorrem mais frequentemente entre os 15 e 35 anos em consequência de mergulhos em águas rasas, acidentes automobilísticos e ferimentos por armas de fogo.

Desde o início dos estudos, os pesquisadores utilizaram como metodologias o ultrassom da carótida e a ecocardiografia. O ultrassom da carótida permite determinar a espessura da parede dessa artéria. O chamado espessamento da camada íntima média da carótida é utilizado como uma medida de arteriosclerose, que é o processo de entupimento das artérias e que leva ao risco de derrame ou infarto. Trata-se, esclarece Nadruz, de um exame simples e que permite avaliação imediata.

Os portadores de LM foram também submetidos à ecocardiografia, exame que permite aquilatar as condições de funcionamento do coração que depende tanto de sua força de contração ao bombear o sangue (função sistólica) como da capacidade de relaxamento necessário para que o órgão receba novamente a quantidade de sangue a ser bombeado (função diastólica). Mesmo que a contração seja boa, se o relaxamento do músculo cardíaco não for suficiente, ocorre déficit de sangue e menor irrigação das artérias.  

 

Resultados

Os resultados dos exames ecocardiográficos mostraram que a espessura intima-média carotídea, utilizada como medida de aterosclerose, é maior no grupo LM sedentário do que nos dois outros grupos. Embora nos três grupos as estruturas cardíacas fossem similares, a função diastólica apresentava-se significativamente mais comprometida no grupo LM sedentário. Estas constatações e as medidas da espessura carotídea levaram os pesquisadores a concluir que a atividade física regular está associada a melhores características cardíacas e vasculares em indivíduos com LM, reduzindo a aterosclerose carotídea e melhorando a função diastólica.

Por outro lado, dados epidemiológicos prévios demonstraram consistentemente que menor aterosclerose carotídea e melhor função diastólica estão associadas à menor ocorrência de eventos cardiovasculares como infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral e insuficiência cardíaca. Na população geral essas ocorrências estão associadas aos chamados fatores de risco cardiovascular, ou seja, diabetes, pressão arterial e colesterol altos, tabagismo. Como esses males não acometiam os grupos selecionados, a única variável passou a ser a inatividade física relacionada à LM.

Eles constataram ainda que há também uma interação entre aterosclerose, LDL-oxidada - uma lipoproteína que tem alto potencial para estimular o desenvolvimento de aterosclerose - e inatividade física na população com LM, o que pode contribuir para o entendimento dos mecanismos pelos quais o sedentarismo predispõe à aterosclerose.

A comprovação da hipótese de que o sedentarismo extremo estava envolvido no desenvolvimento dos problemas cardiovasculares em indivíduos com LM só pode ser feita graças ao trabalho desenvolvido no Departamento de Atividade Física Adaptada da FEF da Unicamp pelo grupo coordenado pelo professor Gorla, no qual equipes de cadeirantes praticam basquete, rúgbi, tênis ou handebol devidamente adaptados. Foi com base nesses atletas amadores que o trabalho pode ser desenvolvido levando a equipe médica a constatar que esses atletas apresentam os mesmos índices, em relação aos parâmetros analisados, das pessoas saudáveis, diferentemente do que observado no grupo LM sedentário. Essa conclusão inédita é que possibilitou a publicação dos resultados em revistas científicas internacionais e levou ao Premio Saúde.

Assume particular importância o serviço de reabilitação dos portadores de LM, orientado pelo professor Cliquet da FCM, que permite caracterizar as condições dos indivíduos que podem ser encaminhados para a prática das atividades esportivas adaptadas. Sem esse trabalho prévio, o estudo seria inviável.

O professor Nadruz conclui com justificado orgulho: “Hoje somos no mundo um grupo na fronteira do conhecimento porque fomos os primeiros a mostrar que a atividade física reduz a aterosclerose em paraplégicos e tetraplégicos e melhora a função cardíaca dos portadores de LM. Sempre se imaginou que, por estarem com parte do corpo paralisada, para eles a atividade física não faria diferença. Mostramos que mesmo a movimentação restrita pode promover múltiplos benefícios cardiovasculares para esses indivíduos”.

Estes achados podem servir de estímulo para a disseminação da prática de esportes adaptados aos indivíduos com LM e para o desenvolvimento de políticas públicas de apoio a este grupo populacional. O professor Gorla destaca a importância do estudo como contribuição à inclusão social de uma população altamente marginalizada: “Depois da divulgação de nossos estudos, começaram a aparecer portadores de LM procurando os serviços oferecidos pela FEF da Unicamp motivados pela prática de esportes adaptados não só como atividade lúdica, mas também como uma possível maneira de prevenir o desenvolvimento de alterações cardiovasculares”.

Gorla lembra que, desde 2008, quando introduzido o rúgbi nas atividades adaptadas na FEF da Unicamp, suas equipes de tetraplégicos estiveram em todas as finais de campeonatos brasileiros da categoria, chegando a ser campeãs por quatro anos consecutivos.

O trabalho, desenvolvido no Hospital de Clínicas da FCM e na FEF da Unicamp, envolveu a participação de cerca de 20 pessoas entre orientadores, docentes, pesquisadores e alunos de pós-graduação das áreas de Cardiologia, Ortopedia e Educação Física, o que lhe confere um caráter multidisciplinar, envolvendo áreas aparentemente não afins, o que o professor Gorla considera um privilégio da Universidade.