Edição nº 592

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 31 de março de 2014 a 06 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 592

Tombamento pelos tombados


O tombamento do prédio do DOI-Codi em São Paulo, em janeiro deste ano, marcou um ponto de virada na história da preservação do patrimônio histórico brasileiro: pela primeira vez, um prédio era tombado não por seu valor estético ou arquitetônico, mas pela memória dos eventos que ocorreram nele, disse ao Jornal da Unicamp a pesquisadora Silvana Rubino, coordenadora de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade e autora do parecer  que concluiu pelo tombamento.

“No caso do DOI-Codi, o edifício não é bonito. O edifício não é atraente. É uma delegacia! Um caixotão, uma construção meramente funcional no pior sentido do termo. O lugar não tem atratividade nenhuma. Junte-se a isso o que a aconteceu ali foi um conjunto de episódios de mais triste lembrança. Argumentei que era isto que importava: não as características físicas do lugar, mas o que aconteceu ali, e o que aconteceu ali é terrível, mas a sociedade tem o direito de ter um lugar para lembrar”, disse ela.
O DOI-Codi, sigla de Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna foi um dos mais violentos órgãos de repressão instituídos pela ditadura instaurada no Brasil em 1964. O DOI-Codi paulista, localizado num edifício do bairro paulistano do Paraíso, onde atualmente funciona uma delegacia de polícia, foi palco de sessões de tortura e de homicídios. Foi no DOI-Codi de São Paulo que o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado, em 1975.

“É bom dizer que fiz o parecer a partir de uma pesquisa do corpo técnico do Condephaat [Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado], com destaque para a excelente pesquisa da historiadora Deborah Neves. Recebi um dossiê de 400 páginas, então eu tinha material para estudar o tema. E aí a gente toca na questão do que alguns pesquisadores chamam de memória difícil. A memória difícil, dolorida, também é uma memória social. A gente não precisa só se lembrar de onde D. João VI tomava banho de mar”, disse a pesquisadora.

Ferida

O processo de tombamento sofreu oposição e gerou debate, contou Silvana. “Apareceu gente, de famílias de vítimas, dizendo que eles queriam seguir em frente e esquecer isso. Mas, ao mesmo tempo apareceram tantos outros filhos de vítimas dizendo que eles queriam esse lugar. Acho que a gente tem de respeitar os dois lados. Acho que o familiar de uma vítima tem o direito de querer esquecer. A dor é dele. Ele que sabe o que fazer com essa dor”, ponderou. “Mas creio que a sociedade tem o direito de poder lembrar. E é importante para as gerações mais novas, também. Porque meus alunos têm 20 anos. O golpe tem 50. Eles já nasceram com o país democratizado. E parece que isso veio um pouco de graça”.

Ela relata que, muitas vezes, alunos jovens falam que o Brasil de hoje não vive uma democracia. “Bom, a democracia brasileira tem uma série de defeitos, e precisa ser aperfeiçoada”, reconhece a pesquisadora. “Mas eu digo: se você pode chegar numa sala de aula de uma universidade pública e dizer bem alto, ‘Isto não é uma democracia’, é porque é. Se não fosse, você não poderia dizer. Eles não têm a experiência do medo. Eles não têm a experiência do terror. E não quero que eles tenham a experiência do terror. Mas deve existir um lugar onde eles possam se dar a saber o que foi essa experiência”.

“Acho que o dia em que o DOI-Codi foi tombado foi um dia que marcou a história na política de patrimônio no Brasil, porque foi o dia em que o patrimônio parou de simplesmente olhar a beleza, a ‘coisa finda e a coisa linda’, mas passou a olhar também para a ferida”.

“Porque está na hora de a sociedade enfrentar essa ferida da ditadura”, enfatizou ela. “Porque temos ainda famílias de pessoas que não têm uma sepultura onde levar uma vela para o seu pai, o seu avô. Acho muito importante que o Estado admita: nós matamos essas pessoas. O Estado diga: nós matamos Rubens Paiva, e tantos outros. Nós. Não é que ele morreu. Não é que o elemento caiu do viaduto, como consta de alguns autos que tive oportunidade de pesquisar: ‘aí o elemento caiu do viaduto’. Elemento? Que elemento? Não é o elemento, ele é um sujeito, tem um nome, e não caiu do viaduto. Então, está na hora, é preciso nomear essa história, até para seguirmos em frente”.

Nome de rua
A despeito da demora do Brasil em reconhecer seus espaços físicos de “memória difícil” como tal – Silvana lembra que mesmo o prédio do Dops, também em São Paulo, só foi tombado por suas características arquitetônicas, e não pelo fato de lá ter funcionado um órgão de repressão que serviu a duas ditaduras, a de Getúlio Vargas e a do regime de 64 – a pesquisadora diz que “há um certo mito de dizer que o Brasil não tem memória”. “Talvez o Brasil não tenha a memória que alguns esperavam que o Brasil tivesse”, pondera. 

“Porque nós temos no Brasil, é claro, situações absurdas, como Rodovia Castelo Branco, Viaduto Costa e Silva, que são, de certa maneira, celebrações, no espaço físico, da ditadura. Mas o Chile tem Avenida 11 de Setembro [dia do golpe que derrubou o presidente Salvador Allende], a Argentina tem monumentos aos ditadores, a Espanha tem monumento ao Franco”, lembra. Para a pesquisadora, “é interessante ver que, em diversos países, você tem um jogo de forças. Porque esse processo de monumentalização e patrimonialização faz parte do diálogo das diversas forças da sociedade”.

Nesse sentido, Silvana acredita que fazem sentido as reivindicações para que se mudem os nomes de ruas e logradouros que homenageiam figuras da ditadura. “Faz sentido, como demanda política. Sempre vai ter alguém que vai dizer, ‘eu não escolhi viver numa rua chamada Marighella’. Certo, mas eu também não escolhi passar num viaduto chamado Costa e Silva. A sorte é que, no Brasil, os logradouros acabam tendo nomes populares. O Costa e Silva, por exemplo, virou ‘Minhocão’”.

A ditadura ainda é muito recente na história do Brasil, disse. “Ela ainda não foi enfrentada, e enfrentar pode ser importante para podermos dar um passo à frente. Então é importante, como reivindicação, mesmo que não seja atendida, que se diga, por exemplo, que a Avenida Roberto Marinho, se é para homenagear um jornalista, seria melhor que se chamasse Vladimir Herzog”.

Memória difícil
Em termos do patrimônio preservado, ela disse que poderia haver uma mudança no olhar lançado sobre as edificações históricas, a fim de pôr em relevo a memória difícil da história brasileira. “Se você for para Minas Gerais, tem toda uma tipologia de prédio que chama Casa de Câmara e de Cadeia. Ouro Preto diversas cidades ‘históricas’ têm Casa de Câmara e de Cadeia”, explicou. “E são todas tombadas, mas mais porque é arquitetura colonial, não é tombado pelo significado repressivo. E é claro que uma cadeia de uma cidade colonial que tinha escravos, deve ter diversas passagens de difícil memória”. 

A pesquisadora prossegue: “E isso vale para uma série de edifícios, como as igrejas da Bahia, barrocas, belíssimas, tombadas como arquitetura, como belas-artes, o que está correto. Não há nada de errado nisso. Elas são isso”, reconhece. “Mas são também toda a vida social que aconteceu lá dentro, e dentro de uma igreja baiana pode ter acontecido, aconteceu certamente, episódios de memória difícil”.

Silvana defende a construção, na área de patrimônio, de “um olhar diferente”. “Talvez fazer outras perguntas, perguntas diferentes para os edifícios. Resgatar a história difícil de diversos monumentos que já foram tombados”.

Futuro do DOI-CODI
Silvana espera que o prédio do DOI-Codi, agora que foi tombado, se converta num memorial, mas antes disso é precioso retirar a delegacia de polícia que funciona lá. “Mesmo porque, se esta é uma sociedade democrática, não dá para você ter uma delegacia de uma polícia que, espera-se, serve ao cidadão, funcionando num lugar de tortura, de repressão”. 

Uma vez resolvida a questão da delegacia, deve ser feito um trabalho para converter o prédio num centro de memória e consciência. “Temos exemplos interessantes no mundo. No Chile há um museu que chama museu da memória e dos direitos humanos, que é basicamente um museu de mídia. Tem tomadas interessantíssimas, da imprensa do mundo inteiro, por exemplo, do momento em que o Allende caiu, e filmes que foram censurados na época”.

“E há campos de concentração que hoje são abertos à visitação pública”, disse ela. “São sítios de memória, lugares de consciência, como se fala. Porque nem sempre é uma questão de lembrar. Uma criança não vai lembrar, mas ela pode tomar consciência do que aconteceu”.

“A memória social é construída, não é dada”, lembra ela. “E mesmo quando se preserva algo, há que se construir uma narrativa ali. Por exemplo, Ouro Preto: Tiradentes e Aleijadinho não estão ali, à espreita. É a cidade inteira que, por meio de seus monumentos, suas placas, no que se escreve, vem reiterando a Inconfidência e a exuberância da arte barroca. É uma cidade pautada por Tiradentes e Aleijadinho. Com os monumentos da ditadura, precisa acontecer a mesma coisa: é preciso construir, socialmente, uma série de narrativas que expressem os diversos sentidos desses lugares”.