Edição nº 592

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 31 de março de 2014 a 06 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 592

As tintas da diáspora


 “Era tudo terrível, sem amanhã”. Assim o pesquisador e crítico de arte Nelson Aguilar, docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, define o clima que tomou conta da cena brasileira de artes plásticas após o golpe de 1964. “Houve uma diáspora. Quebrou-se o ambiente altamente promissor elaborado pela cultura livre acompanhada por governos democráticos”. Em entrevista ao Jornal da Unicamp, Aguilar fala sobre os principais nomes do período, e sobre a agitação cultural provocada e vivida tanto pelos que partiram para o exílio como pelos que ficaram para enfrentar os anos de chumbo.

Jornal da Unicamp – Fala-se muito na resistência ou na denúncia do golpe em setores como a música popular e o jornalismo, mas pouco sobre as artes plásticas/visuais. Por quê?
Nelson Aguilar – Por desconhecimento. A história da arte dos anos 60 no Brasil é pouco conhecida, mesmo por diretores de museus de arte moderna ou contemporânea. Teríamos que aproveitar o fato de que existem alguns remanescentes para elucidar o que foi realizado. As energias agora estão canalizadas em Hélio Oiticica, Lygia Clark ou Mira Schendel por razões mercadológicas, ignorando-se que o trio se revelou em razão de outros artistas, do diálogo fecundo entre eles e a cultura oficial ou marginal.

JU – Quem são esses outros artistas?
Aguilar – Nos anos 60 há artistas determinantes, que tomam outros rumos nas décadas seguintes, mas que devem ser estudados e levados em conta. Vem à memória o escultor italiano Efizio Putzolu, que elaborava peças visionárias, sempre brancas, criaturas em hibernação, flores impossíveis, uma parafernália que lembra um pouco o escocês Edoardo Paolozzi. Não se distinguia arte de política. A arte, quando perturbava, era imediatamente aceita por artistas mais politizados, como Waldemar Cordeiro. O que Marcello Nitsche produzia tinha repercussão. Seus objetos faziam crítica da vida urbana e, ao mesmo tempo, se valiam da paixão pelo automobilismo, pela velocidade. Era capaz de produzir cenários instigantes. Por falar em cenário, é impossível deixar de fora Flávio Império, o Helio Eichbauer do Rei da Vela, a sinergia entre Wladimir Pereira Cardoso e Vitor Garcia para deflagrar O Balcão, de Jean Genet, produzido por Ruth Escobar.

JU – Como as artes interagiam entre si?
Aguilar – As diversas artes se imbricavam. Uma obra de Sérgio Ferro, desse momento, tinha muito a ver com a transposição do lixo ambiental para o suporte bidimensional, embora tudo tivesse mais propensão a sair da tela do que de entrar nela. A arte gritava. Quando Cordeiro enviou ao Salão Nacional de Brasília, em 1967, uma flâmula branca escrito em letras vermelhas CANALHA, emulava algo das manchetes incisivas do Notícias Populares. Essa peça foi imediatamente censurada, pois atingia em cheio o alvo, os parlamentares comprometidos com a nova ordem. Cordeiro, gramsciano impenitente, sabia da importância da forma para transmutar hábitos. Um fato que escapa às atualidades: muitos conhecem a bandeira de Oiticica, onde estão gravadas as legendas Seja marginal seja herói. A arte final pertence a Cláudio Tozzi, que interpretou a proposta enviada por Hélio e criou a mancha tão vizinha às do teste de Rorschach que caracterizam a produção de Cláudio naqueles anos. Um vidro de tinta lançado no lençol monocromático explode em imagens, meio borrão, meio criatura. As bandeiras foram produzidas na casa de Flávio Motta, professor e crítico de arte de gênio, artista plástico. Flávio, que participou das origens do Masp, como o Satã de Baudelaire, ficou quieto, sonhando no inferno, até a figuração voltar, graças à pop-art. Aí saiu de si e assombrou os costumes.

JU – De que modo o golpe afetou a produção brasileira da época? Houve uma mudança perceptível de preferências temáticas após a queda do governo Jango, ou o AI-5?
Aguilar – O AI-5 fez um esparramo. Quem não tinha muita intimidade consigo, interioridade, partia para o exterior. Londres virou Babilônia. A arte contemporânea brasileira já havia sido contemplada pela galeria Signals entre 1964 e 1966, expondo Sérgio Camargo, Lygia Clark, Mira Schendel e se preparava para mostrar Oiticica, quando fechou. Um dos organizadores da Signals convenceu o pessoal da Whitechapel Art Gallery a organizar a mostra de Hélio em 1969. Ele desembarcou de um cargueiro, chegou a Londres com parca ajuda de custo do Itamaraty. O novo diretor da Whitechapel, Mark Glazebrook, percebe que o brasileiro não tinha onde passar a noite e lhe oferece alojamento por alguns dias. Hélio residiu três meses na casa de Mark.

Com a emissão do AI-5, que impeliu Caetano e Gil ao exílio, a cena cultural londrina se transforma num porto pirata em meio à época do endurecimento do regime militar. E havia os que ficaram. Esses tiveram a dupla carga de viver no Brasil e produzir. O exemplo mais elevado do que os russos chamam de exílio interior é dado por Mira Schendel, que prosseguiu como Klee, na Suíça durante o nazismo, exemplo de probidade artística. 

JU – O ano de 1969 parece ter sido especialmente dramático, com a censura militar à Pré-Bienal de Paris, no Rio, e o boicote em massa dos artistas brasileiros à 10ª Bienal de São Paulo. Houve outros momentos de choque, ou este foi o mais representativo, no contexto das artes?
Aguilar – Era tudo terrível, sem amanhã. Artista era preso. Um pintor, depois de ter passado pelo cárcere, estando na rua e ouvindo sirene de polícia, se punha a correr. Mário Schenberg, a personalidade mais iluminada do período, foi preso. Sem Mário, a vida artística do período ficava inexoravelmente mutilada. Sua casa era um lugar aberto a todos os que gostavam de arte, fossem artistas, críticos, colecionadores, visitantes de fora. Era alguém com cultura filosófica imensa, aberto à arte e à teoria da arte chinesa. Recebia artistas em formação – os verdadeiros sempre estão em vias de se formar –, jovens, e era capaz de discernir um caminho ainda não consciente ao pesquisador. Admitia todos, ingênuos como Raimundo de Oliveira ou Waldomiro de Deus, com linguagem bem feminina, como Erika Steinberger, ou porosos à cultura afro-brasileira, como Niobe Xandó. De outro lado, Pietro Maria Bardi, no Masp, garantia, a partir de sua postura altiva, sobretudo para autoridades políticas que queriam promover suas prioridades artísticas, o lugar para a arte sem adjetivos. Walter Zanini que dirigia o MAC-USP acolhia gaviões e passarinhos sem estabelecer primazias.

JU – Quais os principais artistas do período?
Aguilar – Todos já mencionados. Gostaria de frisar que arte sempre fez parte de minha vizinhança, uma vez que o irmão, o artista plástico José Roberto Aguilar, exerce o ofício com muita garra, desde os anos 60. O pior que pode ocorrer é alguém discorrendo sobre arte sem nunca ter participado da criação artística, ainda que como compagnon du route. Sem essa cumplicidade, não se ingressa em nenhum ateliê, descamba-se na objetividade vazia.

Os artistas do período? Antonio Dias, Antonio Manuel, Rubens Gerchman, Wesley Duke Lee, José Resende, Carlos Fajardo, Carmela Gross, Artur Barrio, Tomoshigue Kusuno, para mencionar os com quem mantive contato. Mas para abranger o todo se torna necessário mencionar críticos como Walter Zanini, Theon Spanudis, além dos já citados; galeristas generosos como Franco Terranova, da Petite Galerie do Rio; Emy Bonfim, da Atrium; e Anna Maria Fiocca, da Domus, em São Paulo. Interessante notar que o escritor José Agrippino de Paula, autor de Lugar Público e Panamérica, era um grande apreciador de artes plásticas e suas opiniões valorizadas pelo meio.

JU – Como o golpe e a relação dos artistas com ele, afetou os rumos da arte brasileira? Há reflexos de 1964 visíveis no que se produz hoje?
Aguilar – Claro que o regime militar afetou a vida artística. Houve uma diáspora. Quebrou-se o ambiente altamente promissor elaborado pela cultura livre acompanhada por governos democráticos. O concretismo é fruto da vontade de autonomia. Sem ele, não haveria Lygia Clark e Pape, Oiticica, Mira, toda a arte subsequente. Essa força vinha do que subtendia a construção de Brasília, com todo o messianismo implicado. Meu irmão prestou vestibular de economia e ingressou na USP, impelido pelo exemplo de Celso Furtado, logo em seguida foi admitido na Bienal e nunca mais pisou na escola da rua Doutor Vila Nova.

O ambiente artístico rastejou por mais de 20 anos para recuperar uma pequena faísca do grande fogo de antes do golpe. Evidente que no entremeio a arte cumpriu o papel de abrir fendas nos anos de chumbo, mas a socialização que existia minguou. Quando Jean Genet esteve no Brasil, em 1970, atraiu muitos visitantes célebres, entre os quais Fernando Henrique Cardoso e amigos. Um deles tentou a cumplicidade com Genet dizendo: “Nós também vivemos numa prisão”. O ex-presidiário, que estava aqui sob o pretexto de conferir a montagem do O Balcão e com o intuito central de encontrar Lamarca ou Marighella, lhe baixa a crista: “Escute, minha prisão não foi uma metáfora!” Tudo acontecia em meio à passagem do grupo Living Theater, que acabou expulso do país [o grupo de teatro americano foi expulso do Brasil em 1971, por meio de decreto assinado pelo presidente Médici]. Conto isso para mostrar a complexidade do momento.

JU – Todos os artistas se engajaram contra o regime?
Aguilar – Independentemente da politização ou próximos ao sistema, havia artistas intensos como João Parisi Filho que percebeu a plasticidade do submundo, marcando O Bandido da Luz Vermelha, de Rogerio Sganzerla. Uma vez, fui coletar assinatura para um dos tantos abaixo-assinados da época contra não-sei-o-quê no ateliê de Wesley Duke Lee, que se recusou a assinar porque o papel estava sujo! Wesley não se incomodava de se alinhar à direita, embora a arte e a maneira de viver contradissessem a opção todo o tempo.  Conviveu em Roma com Cy Twombly, ambos completamente duros. Como vê, não dá para colocar tudo no mesmo saco, colar etiqueta e ditar regras.