<

Edição nº 592

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 31 de março de 2014 a 06 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 592

Desigualdade predatória


“O maior pecado do regime militar foi interromper o processo de construção de um país mais civilizado. Nós nos transformamos numa sociedade de massas sem passar pelos estágios prévios da educação – educação entendida aqui em seu sentido amplo”, opina o professor Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. “O Brasil vivia seus primeiros vinte anos de democracia e havia um clima favorável para o desenvolvimento das forças políticas comprometidas com a construção da nação. O país estava se industrializando e lidando com as reformas de base: agrária, tributária e educacional, entre outras. Era a primeira vez que se tinha uma perspectiva de desenvolvimento com equidade, sob o espírito do nacionalismo. Este processo foi interrompido com o golpe”, reafirma.

Eduardo Fagnani, que é também pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), recorda que houve um crescimento econômico nos anos 60 e 70 por conta de uma conjuntura econômica internacional favorável, mas que trouxe  uma concentração de renda enorme e de natureza política. “Uma medida imediatamente posterior ao golpe foi a intervenção nos sindicatos, eliminando qualquer possibilidade de pressão popular e deixando claro que nesse campo não haveria negociações. Esta repressão se intensificou a partir do AI-5 em 68. Impôs-se o chamado arrocho salarial, em que o governo aumentava os salários sempre abaixo da inflação, ano após ano, e a consequência desta redução sistemática do poder de compra dos trabalhadores foi a elevada concentração de renda. No final do regime militar, o Brasil era o terceiro país mais desigual do mundo”.

Do ponto de vista econômico, o economista aponta o encilhamento financeiro, a elevada dívida interna e externa (que chegou a mais de US$ 120 bilhões em 1984) e a ameaça de hiperinflação como alguns dos legados da ditadura que causaram transtornos de toda ordem por mais de duas décadas. “A vulnerabilidade do balanço de pagamentos, que culminou com o colapso cambial em 1982, levou o país ao Fundo Monetário Internacional, que impôs um ajuste ortodoxo e recessivo. A crise dos anos 80 combinou desaceleração da taxa de investimento, estagnação, vulnerabilidade externa, crise fiscal e aumento das pressões inflacionárias. O Estado Nacional Desenvolvimentista – que cumpriu tarefas cruciais frente à industrialização ocorrida desde os anos de 1930 – esgotou-se nesta quadra. Colocado no epicentro da crise, o Estado perdeu o comando da política macroeconômica e da iniciativa do crescimento.”

O pesquisador do Cesit acrescenta que o país, que deveria capturar recursos externos para financiar seu desenvolvimento, teve que remeter dinheiro para fora por mais de uma década. Assim, a infraestrutura econômica e social deixou de receber investimentos e entrou em colapso, abrindo espaços para as privatizações – um dos núcleos da agenda liberal que passou a ser dominante nos anos 90. “As reformas feitas pelo regime militar preservaram o status quo social, pois não havendo um ambiente democrático para discutir tais medidas, acabou-se arbitrando em favor do capital. Um exemplo concreto é a reforma tributária promovida em 64 e 67, que em última instância isenta o capital de pagar impostos. Ao invés de tributar diretamente sobre o lucro, a renda e o patrimônio, tributa-se sobre o consumo, ou seja: quem passou a pagar mais impostos foram os mais pobres, estrutura que em linhas gerais vigora até hoje.” 

Quanto à reforma agrária, um dos temas centrais do movimento social nos anos 50 e início dos 60, foi simplesmente interditada, o que na visão de Fagnani está na raiz da migração extraordinária do campo para a cidade. “Para que se tenha uma ideia, em 1950, 70% da população brasileira estavam no campo e 30% nas cidades; em 1980, eram 70% nas cidades e 30% no campo. O país fez esta transição demográfica em 30 anos, quando nos países desenvolvidos ela levou 100 anos. E por que foi tão mais lento nestes países? Porque todos eles promoveram a reforma agrária como forma de conter as pessoas na zona rural.”

Esta migração em massa, como observa o professor do IE, deu origem a metrópoles desorganizadas – e posteriormente às regiões metropolitanas, com suas periferias e o caos urbano atual. “Houve um crescimento acentuado das cidades em curtíssimo espaço de tempo, e sem que o Estado tivesse capacidade ou se prestasse a investir na infraestrutura urbana. Não vimos, por exemplo, uma política de saneamento básico; a política habitacional beneficiou somente as camadas de renda alta, visto que o governo militar passou a financiar a indústria da construção civil sem nunca se interessar em construir casas para pobres; tivemos uma política de transporte público, é verdade, mas devido aos quebra-quebras de trens por parte da população em 1974."

Ainda em meados dos 70, o pesquisador focaliza mais uma questão que considera gravíssima: a desnutrição da população, com boa parte das crianças fora do peso adequado. “Tínhamos uma saúde privatizada, que privilegiava os setores empresariais e só atendia a quem estava no mercado de trabalho, enquanto pessoas morriam de doenças evitáveis com vacinas. A política educacional, por sua vez, levou a uma expansão quantitativa do ensino, mas sem qualidade: mais da metade das crianças repetia o primeiro ano do primeiro grau, repetência que contribuía para o abandono da escola e suas intercorrências. Combinando tudo isso com a interdição da reforma agrária, deu no que deu: na concentração de renda, caráter mais excludente das políticas adotadas no período.”

Na opinião de Eduardo Fagnani, não há dúvida de que o golpe militar representou um atraso irreparável para o Brasil, que iniciava um projeto de desenvolvimento identificado com a questão nacional, a necessidade de redução das desigualdades sociais, melhor distribuição de renda, implantação da reforma agrária e garantia dos direitos cidadãos. “Tudo isso foi interrompido e ficamos andando para trás por duas décadas. Se aquela agenda fosse seguida, teríamos uma nação muito melhor e uma sociedade mais civilizada. O que se fez foi condenar quatro gerações à ignorância – e ignorância não só em termos de educação, mas incluindo envolvimento político. O maior pecado do regime foi interromper o processo de construção de um país.”

Acerto de contas
O professor da Unicamp vê a Constituição de 1988 como fruto de um movimento que pretendeu acertar as contas com a ditadura militar, depois de ter percorrido um difícil caminho. “As bandeiras tremulavam em torno de todas as medidas que dessem uma resposta ao que ficou reprimido durante 20 anos: reforma agrária, direito de greve, direitos trabalhistas, redução da jornada de trabalho, seguro para o grave desemprego no final do regime. E ainda: educação universal, gratuita e laica, bem como um sistema de saúde público e igualmente universal, que não fosse privado, para poucas pessoas.” 

Fagnani lamenta, entretanto, que a mobilização das forças políticas contra a ditadura tenha resultado em uma transição democrática através de um pacto conservador. “A não aprovação da emenda das diretas em 83 selou uma derrota destas forças políticas, visto que  seria necessário fazer uma eleição conforme as regras dos militares. Houve então o pacto entre o PMDB e uma dissidência do PDS, formando-se a Frente Liberal, em que a morte de Tancredo Neves representou somente um fato adicional, pois quem governaria o Brasil e se tornaria personagem da transição seria José Sarney, ex-presidente da Arena.”

Se o governo Sarney seria contemporizador num primeiro momento, o pesquisador recorda que no meio do mandato, a partir das eleições de 87, remontou-se a tradicional composição de forças que apoiou a ditadura. “Nossa transição, portanto, foi um pacto conservador, que trouxe limites aos anseios por mudanças. Em seguida, nos anos 90, aderimos ao neoliberalismo, com uma agenda que novamente se opunha à Constituição de 88, tanto do ponto vista econômico quanto social. E mergulhamos num longo processo para se tentar enterrar os princípios pelos quais a sociedade lutou nos 70 e nos 80.”

Sobre o governo do Partido dos Trabalhadores, Fagnani recorda a difícil travessia nos três primeiros anos de Lula, visto que na atual etapa da concorrência capitalista, no contexto da globalização, buscar mudanças em favor do desenvolvimento nacional tem sido complicado devido à correlação de forças desfavorável. “Especialmente no ano de 2002, período eleitoral, viu-se uma tentativa de chantagem do mercado internacional pela continuidade da ordem econômica estabelecida nos 90. Uma tentativa de inflexão na política econômica viria a partir de 2006, no sentido de retomar o crescimento, frente à agenda que durante 25 anos pregou o ajuste fiscal, os cortes nos investimentos, a reforma do Estado, a privatização. Mesmo dentro destas limitações mais gerais, a recuperação do crescimento foi de alguma forma possível, o que explica o progresso social recente no Brasil, com melhor distribuição de renda e outros indicadores afins. Ainda é muito pouco diante do nosso passado e os desafios futuros são enormes, mas o que se fez foi importante.”

Volta a Celso Furtado
Ao comentar as perspectivas para o país, Eduardo Fagnani considera que uma série de reformas de base colocadas por Celso Furtado, na década de 60, ainda são atuais e importantes. “A despeito dos avanços no período recente, a grande marca da sociedade brasileira ainda é a desigualdade social, que é percebida de várias formas, sendo a mais evidente a desigualdade de renda. Se o Brasil era o terceiro país mais desigual na época da ditadura e na década de 90, hoje avançou para 15º, mas continua com sérias dificuldades.”

O professor aponta como uma das heranças do regime militar a desigualdade no mercado de trabalho, com informalidade e rotatividade elevadas e empregados concentrados nos setores de baixo valor agregado, como de serviços e de construção civil. “Temos também a desigualdade fiscal, com uma estrutura de impostos extremamente injusta e que em grande medida ainda repousa nas reformas de 64 e 67. E, ainda, profundas desigualdades no acesso a serviços públicos: saúde, educação, saneamento, habitação, transporte público. Os desafios que se colocam são estes.”

Fagnani acredita que a desigualdade social é o pano de fundo das atuais manifestações de rua que estamos vivenciando e aconselha aos partidos políticos que, em ano eleitoral, se esforcem para interpretar estas vozes. “Em minha opinião, a sociedade brasileira deve retomar os debates sobre as reformas de base ocorridos em 62 e 63, enfrentando de fato o nosso subdesenvolvimento. Guardadas as proporções, após 50 anos, esse debate ainda é atual. Mas o que temos visto é que as pressões do mercado são predominantes – pressões que vão em direção oposta ao combate à desigualdade social, uma herança do passado brasileiro como um todo e especialmente do período da ditadura, quando se deu esta urbanização desorganizada e predatória.”