Edição nº 579

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 14 de outubro de 2013 a 20 de outubro de 2013 – ANO 2013 – Nº 579

Voando com os pés no chão


Sempre esguia, feminina, cor-de-rosa. A bailarina que aparece nos quadros expostos nas escolas de dança é alguém que muitas vezes não somos nós. Rosely Conz, quando criança, não se reconhecia naquela imagem, embora fosse ela, também, uma bailarina. Com o passar dos anos, os movimentos do balé e até mesmo a ideia do belo, presente nessa dança, foram plenamente assimilados, tanto que seria um desafio se desfazer do padrão. Talvez ela conseguisse, no máximo, negociar. Foi o que Rosely fez. Sua dissertação de mestrado “Resquícios e rosas: as memórias na criação em dança contemporânea” é um caminho de volta.

A pesquisadora procurava entender como suas memórias apreendidas no balé influenciavam as dinâmicas de improvisação em dança.  Não apenas os movimentos estavam condicionados, mas também as sensações, pensamentos e emoções, quando o que ela precisava, era criar. “Eu percebi que a toda tentativa de criação de algo novo, o corpo respondia de uma forma já conhecida, como se houvesse uma incapacidade de reação diferente. O corpo respondia obedecendo a um condicionamento”. 

Segundo ela, diversos autores reconhecem a existência de um tipo específico de memória relacionado ao aprendizado em dança. É o que eles chamam de memória implícita, não declarativa ou memória de procedimento e que também pode ser observada no andar de bicicleta, no escrever ou dirigindo um carro. Ou seja, são memórias de movimentos adquiridos de forma gradativa e que, por repetição, são aprendidos e ficam registrados nos nossos sistemas corporais, prontos para entrarem em atividade quando queremos realizar determinada ação. Tornam-se, portanto, as memórias que podemos resgatar e são difíceis de falhar.

Diante do desafio, a bailarina decidiu que criaria um solo em dança contemporânea. No processo, ela seria observadora e observada. Foi através da prática que a pesquisa se desdobrou em escrita. “Todos os questionamentos partiram da prática e a criação constituiu, portanto, um dos meios e também os objetivos da pesquisa”, afirma.

De acordo com a orientadora do trabalho, Júlia Ziviani Vitiello, o vocabulário corporal apreendido em anos só poderia ser repensado por meio de ações realizadas pelo próprio corpo, da compreensão de como aquele padrão de movimento instaurado poderia ser modificado. 

A realização do solo foi essencial no desenvolvimento do projeto e a parte central do trabalho. “Somente por meio da experiência e reflexão sobre a pesquisa realizada nos laboratórios de criação foi possível escrever a dissertação. O solo é parte da metodologia e dos objetivos da pesquisa”, diz a docente.

 

Ideokinesis

Para compreender as ações do corpo, Rosely utilizou um método somático chamado de Ideokinesis. “Como um dos mais antigos métodos somáticos, que surgiu no início do século 20, este oferece procedimentos claros e flexíveis para que se possa observar o movimento, compreender seu início, percurso e finalização, associando-o a imagens específicas, quase metáforas da ação realizada, e que objetivam facilitar a compreensão e organização da mesma”. De acordo com a pesquisadora, a Ideokinesis representa a possibilidade de mudanças de padrões de movimento e, portanto, de pensamento e comportamento.

Os métodos somáticos permitem, segundo seus criadores, a integração de corpo, movimento, mente e sensações. É uma linha de trabalho seguida pela docente Júlia Ziviani Vitiello, com a qual a mestranda teve os primeiros contatos ainda na graduação em Dança, no próprio Instituto de Artes. “Durante a prática da Ideokinesis, a sugestão inicialmente é de não pensar em mais nada e apenas focar a atenção na imagem que está sendo proposta. O praticante precisa aprender a abrir mão do controle consciente, criando espaço para que diferentes respostas de organização dos movimentos possam aparecer a partir da imaginação”, explica Rosely.

O solo de dança foi apresentado no dia da defesa. Rosely tentou fazer diferente, questionar. Em vez da verticalidade do balé, a horizontalidade, o chão em vez do alto. Trabalhou a cara feia, as caretas, a voz e a fala. “Como, em geral, não é ensinado, ao bailarino, a falar muito durante as aulas, utilizei a voz como um modo de explorar outras formas de expressão”. Rosely citava trechos de “A descoberta do mundo” de Clarice Lispector. “Busquei a leveza, o humor e a intensidade com que esta importante escritora conta suas lembranças no livro de crônicas”. A bailarina cor-de-rosa foi transfigurada, dela só os resquícios, como diz o título da dissertação.

Balé

A origem na Renascença italiana e a consolidação como espetáculo na França e na Rússia consagraram o balé como uma dança aristocrática. No século XIX, o Romantismo inaugurou um novo estilo e, com ele, o balé de repertório com grandes peças como o “Quebra-Nozes” e “O Lago dos Cisnes”. A autora da pesquisa ressalta que o balé clássico é uma das técnicas mais importantes da dança ocidental, uma maneira eficiente e uma das mais utilizadas na formação de bailarinos. “Entendendo-se os princípios e fundamentos desta técnica e utilizando-a de acordo com o corpo de cada aluno, ela pode ser um instrumento valioso na aquisição de habilidades importantes para dançar”.  

No balé, quando criança, Rosely tentou corresponder ao modelo proposto. “Decorei movimentos, formas, nomes, posições, enfim, um código inteiro que data do fim do século XVI”. Cercada de espelhos, a pequena bailarina era incentivada a olhar e a julgar o próprio corpo duramente. “Olhando para o espelho, desaprendi a olhar para dentro. Todas as referências passaram a ser externas”, complementa. 

Os quadros de bailarinas nas paredes são, no ponto de vista da autora, o retrato do modo como o ensino de dança foi pensado. O que remete a uma questão pedagógica. Rosely afirma na dissertação que “havia uma uniformização de técnicas e propostas, que não permitia espaço para a subjetividade através da observação, pelos professores, de cada corpo singular presente na sala de aula”. Estas premissas foram enfrentadas por meio do suporte oferecido pela experiência da Ideokinesis. “Nesse caso, a melhor forma de ensinar é a que reconhece o corpo e as experiências como individuais”, reitera.

No ensino de balé existe, em alguns casos, a utilização de uma metodologia antiquada, “em que professor e aluno dificilmente se encontram em relação de compartilhamento”.   Assim a autora defende a abordagem da troca de experiências entre professor e aluno, uma quebra na hierarquia em favor do desenvolvimento do aluno através da criação de um diálogo. Rosely ressalta que, especialmente na universidade, esta reflexão se faz constante e a abordagem somática também está presente nas salas de aulas de muitos professores do curso de dança da Unicamp.

A autora aposta que os métodos abordados na pesquisa podem contribuir para a disseminação de maneiras diferentes de prática e ensino da dança. Falando diretamente ao leitor da dissertação e aos professores de dança e coreógrafos, diz ela: “Que sejamos os responsáveis por dar corpo e voz às flores que surgirem em nossas mãos, proporcionando um ensino que instrumentalize, seja criativo e potencialize as habilidades individuais. Que alimentemos sonhos criando raízes para que os futuros artistas da dança sejam capazes de, com os pés firmes no chão, voar”.

 

Publicação

Dissertação: “Resquícios e rosas: as memórias na criação em dança contemporânea”
Autora: Rosely Conz
Orientadora: Júlia Ziviani Vitiello
Unidade: Instituto de Artes (IA)