Edição nº 579

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 14 de outubro de 2013 a 20 de outubro de 2013 – ANO 2013 – Nº 579

Para além do ‘céu grande’

A trajetória da psicóloga Maria Aparecida Quina de Souza, da Zona da Mata mineira à Unicamp

Taruaçu, vilarejo pertencente ao distrito de São João Nepomuceno, na Zona da Mata de Minas Gerais, conta com aproximadamente 400 habitantes atualmente. Década de 1970, o destaque do lugar é a Igreja Nossa Senhora das Dores, frequentada até os 11 anos pela pequena sonhadora deste perfil. Em torno daquelas imagens sacras, acontecem todos os eventos sociais de Taruaçu. O nome, que significa céu grande, pode não ser familiar a muitas pessoas, mas a menina garante: “Está no mapa. No google world”.

Para chegar à escolinha municipal, feita de zinco, ela e as outras crianças da zona rural têm apenas duas opções: a pé ou a cavalo. A escola tem até estacionamento para cavalos, mas não tem o ginásio (segundo ciclo do fundamental). 

Sob o zinco, é possível ser feliz, brincar, socializar-se e sonhar, garante a menina, mas, para continuar a estudar, talvez lhe caiba alguma ousadia, como se imaginar em Juiz de Fora, com aquela sua cara de cidade grande e um leque generoso de ofertas de trabalho para tecelões, costureiras, contabilistas, secretárias... Esta sim, com 525 mil habitantes e congregando a maior parte da Zona da Mata Mineira, poderia lhe garantir progresso acadêmico. Pelo menos até o segundo grau (hoje ensino médio).

Taruaçu, lembrada pelas rezas do terço seguidas imediatamente pelo jantar, deixa de ser um espaço privilegiado nos sonhos da garota, que decide buscar algo além dos possíveis afazeres debaixo de chuva ou sol a pino na fazenda. Sempre sob a recomendação dos pais de que “estudar e fazer tudo direitinho é importante, para ter uma vida melhor”.

Os avós, religiosos, fazem questão da presença de todas as pessoas da fazenda no terço, às 18 horas. E a menina, sempre atenta às exigências e à cultura familiar, nem ousa desobedecer, mas as orações, a partir de então, serão feitas na “metrópole”, lá onde tem a catedral, a pastoral universitária e a influência da moda Rio. Sim, por ser muito próxima da sociedade carioca, Juiz de Fora produz loucamente para a moda Rio. 

Ao mesmo tempo em que se matricula na quinta série, entrega sua carteira para ser assinada por um empresário do setor têxtil em Juiz de Fora. É a vida da família desapercebida de recursos para custear a formação acadêmica de sua prole, no final dos anos 1970. Nessa época, é possível trabalhar durante o dia e estudar à noite a partir dos 14 anos. Coisa que grande parte dos funcionários da Unicamp conhece bem. 

São muitas as condições que podem, adiante, mudar a essência da menina, mas ela garante que seu desenvolvimento pessoal se dá a partir da cultura local da infância: escola de zinco, igreja, avô, avó, pai e mãe. Ouro de mina, como escreveu o compositor? Ou de Minas? Ouro das Minas Gerais? De Taruaçu?

O trajeto até Campinas é longo e marcado pela participação na Pastoral da Juventude e na Operária de Juiz de Fora. Os sonhos? Frutificam e são alimentados pela compreensão de que os jovens da Pastoral Universitária cantam na catedral e os da Operária, na igreja de bairro. Queria cantar na catedral e um dia, formada, dar condições a outros sonhadores.

Chega a juventude, em meados da década de 1980, e com ela a ousadia necessária aos jovens sonhadores que querem se transportar de sua condição para outra mais próxima. O antídoto para tal ascensão tem nome: universidade. 

Com um grupo de amigos da pastoral, decide se corresponder com pessoas de diferentes lugares para decidir sobre o melhor lugar para ser universitário. Depois de uma “boa alma” de Campinas responder para oferecer informações sobre Campinas e São Paulo, o grupo escolhe a Universidade de São Paulo (USP), por oferecer moradia e bolsa trabalho, já que os pais não têm condições de mantê-los na Universidade Federal de Juiz de Fora, sem curso noturno.

A resposta do missivista leva um amigo, funcionário do Banco do Brasil, a pedir transferência para São Paulo, a fim de facilitar a mudança dos amigos para o novo Estado. É chamado para assumir uma vaga em Campinas e aceita. Tempos depois, envia aos amigos um telegrama com o seguinte recado: “Tem concurso público para a Unicamp. Por favor, mandem documentos e procuração para eu fazer inscrições”.

Em 1987, a jovem sonhadora assume a vaga na Tesouraria da Diretoria Geral de Administração, mas certa de que seria um trabalho passageiro, por meio do qual pagava o curso pré-vestibular para estudar psicologia clínica na USP. Depois de muitas tentativas, decide fixar residência em Campinas e assumir o encantamento pela Unicamp. Fica e começa a cursar psicologia na PUC-Campinas.

Sonhos concretizados? Nem tanto, pois, com a decisão de ser uma trabalhadora estudante, muitos enfrentamentos se impunham diante de sua vontade e seu direito aos estudos. Se a necessidade trouxe a jovem sonhadora para a Unicamp, o amor e a dedicação a fizeram permanecer e lutar contra a mentalidade de que o jovem ou trabalha, ou estuda. E aí entra a justa aplicação da frase do compositor: “Quando vim de Minas, trouxe ouro em pó”. A experiência a partir da cultura local, como ela diz, motiva uma reinvindicação coletiva em seu novo ambiente cultural, a Unicamp: um inédito e humanizado tratamento a todos os funcionários estudantes da instituição. 

Entre alguns leves choques culturais, depara com a realidade do jovem trabalhador no terceiro ano de psicologia, em 1993, ao precisar pedir flexibilização da jornada de trabalho na Tesouraria da Diretoria de Geral de Administração, e obtém como resposta de sua superiora: “Ou trabalha, ou estuda”. Precisava cursar disciplinas ministradas em período integral, mas a negativa, a frustrou.

Nada que o jeitinho mineiro não resolva. Convence a “chefe”, mas tem de trabalhar das 7 às 12, ir para a faculdade e voltar para completar a jornada das 19 às 22 horas. Detalhe: vários dias, às 21h55, a superiora liga em seu ramal para saber se não saiu mais cedo do trabalho. 

Ao perceber a desconfiança com a qual o funcionário estudante é encarado, na década de 1990, e ver vários colegas percorrendo uma trilha estreita para chegar à PUC-Campinas para estudar, à noite, outros utilizando fretados para estudar nas cidades vizinhas, inquieta-se. Relembra as experiências com os padres dominicanos da pastoral de juventude e operária, o compartilhamento de ideais com o grupo de amigos sonhadores e decide dividir o ouro em pó de Taruaçu com os jovens da Unicamp. 

Dos olhos perspicazes da jovem, chamam atenção a reforma administrativa, em 1989, iniciada pelo processo de informatização da Universidade; o movimento para mudança das rotinas administrativas; a implantação recente da carreira e a criação do Serviço de Apoio ao Servidor (SAS). 

Momento propício para os funcionários estudantes revelarem suas dificuldades e necessidades. E a menina de Taruaçu é uma das mentoras da pauta a ser ouvida pelo então chefe de Gabinete da gestão do reitor Carlos Vogt, José Tadeu Jorge. Atento às ideias originais da funcionária, ele pede para que reúna outras pessoas para organizar a pauta. Assim, a cultura local de rezar juntos, ensinada pelo avô, lá na roça, é posta em prática na Unicamp. Ao pisar pela primeira vez o chão da Reitoria, pediram uma sequência de direitos para que jovens trabalhadores não precisassem mais desistir do sonho de ter uma graduação e, com ela, ter perspectiva profissional, dentro de sua área, na carreira da Unicamp. 

Sonho de menina que vira realidade na vida de muitos servidores. Sonho do qual os dominicanos e seu ouro de mina se orgulhariam, pois com ela, outras pessoas se envolvem na busca da merecida ascensão. Hoje, o quadro da Unicamp tem 54% de seus servidores graduados. 

Experiente em reunir mais de 300 jovens, para falar sobre suas condições sociais, em Juiz de Fora, relaciona as reivindicações, entre elas, bolsa de estudos; direito a estágio; perspectiva profissional dentro da Universidade na área de formação; asfaltamento da estrada que liga Unicamp à PUC-Campinas (muitos colegas iam a pé); ajuda de custo para cópias em xerox, vale estudante e vale-transporte. 

A pauta conduz a uma discussão aprofundada por parte da Reitoria e de conselheiros da Universidade que leva ao lançamento do Programa Institucional de Apoio ao Servidor Estudante (ProSeres), em 10 de agosto de 1993, numa mesa extensa, na qual a menina de Taruaçu jamais se imaginaria sentada, ao lado dos apoiadores do programa, José Tadeu Jorge, Carlos Vogt e Edison Cardoso Lins. 

Ao ouvir as palavras saírem com suavidade e saudades do discurso da “menina”, o interlocutor pensa que, para onde vai, ela carrega mesmo ouro em pó de Minas para compartilhar. Nesta edição, quem conta a história é ela: a menina da Zona da Mata, a funcionária da Tesouraria, a psicóloga, ou melhor – ao bem da atualidade –, a diretora-geral de Recursos Humanos da Unicamp, que assina Maria Aparecida Quina de Souza, mas atende, na maioria das vezes, como Cidinha Quina.  

Continua a lidar com pessoas e comemora os 20 anos do ProSeres, programa que tornou psicóloga também a diretora de Desenvolvimento da Diretoria Geral de Recursos Humanos (DGRH), Luciene Rodrigues de Oliveira Borges, sua companheira na comissão de trabalho na implementação do programa, em 1993. Assim como permitiu a Osmar Almeida – coordenador de Finanças na Diretoria Geral de Administração – e muitos outros profissionais ocupar cargos gerenciais na Universidade. Até porque ninguém muda uma mentalidade e um sistema sozinho. 

O material do ProSeres, incluindo a pauta de discussões e o primeiro manual, é guardado pela psicóloga até hoje para lembrar um tempo em que a Universidade começava a sorrir para seus funcionários estudantes. Um tempo em que a juventude, também na Unicamp, ousou sonhar com dias melhores. 

Lá, na Zona da Mata mineira, onde ficava a escola de zinco, com estacionamento para cavalos, seu “ouro de mina” recebeu o primeiro manual com a filosofia do ProSeres. Para quê?

– Para eles saberem o que faço por aqui, uai. 

Comentários

Comentário: 

Cidinha é um belo exemplo de ser humano. Que bom ter tido a oportunidade de trabalhar e conviver com ela, com sua simplicidade, humildade e sabedoria.
Que mineirice boa!
Maria Alice, parabéns pelo texto.
Lúcia Ferreira Costa

Comentário: 

A Cidinha é aquele tipo de pessoa que faz a gente pensar: "Que bom, ter a Cidinha!"

Comentário: 

Hoje, dia do professor é maravilhoso receber um presente como esse.....
Frutos como a Cidinha dignificam nossa profissão de educadores.Só por essa demonstração de sensibilidade ,
fé no humano e garra já valeu a pena.....
Obrigada por ter permitido participar de sua caminhada.

Magda

Comentário: 

Conheci a Cidinha, por pouco tempo que trabalhei na DGRH, e sempre achei uma pessoa simples, simpática e generosa, enfim uma ótima pessoa. Parabéns pela escolha para a Diretoria do DGRH!

Comentário: 

Exemplo de vida e superação da Cidinha e mais um texto de extrema qualidade da Maria Alice! Parabéns!

Comentário: 

Parabens, Cidinha pelo exemplo e pela historia de vida.
parabens Maria Alice pelo texto

Comentário: 

Maria Alice, parabéns por retratar tão bem o espírito mineiro desta querida amiga. Foi muito gostoso ler a trajetória de vida, parabéns amiga Quina.

Comentário: 

Cidinha que lindo!
Estes exemplos de ouro em pó, só fazem a gente ter certeza, que podemos deixar marcas positivas por onde passamos.
Linda matéria!

Comentário: 

Sua trajetória e seu exemplo de vida, nos dá condições de acreditar que sonhar vale a pena. Tropeços vão existir sempre, mas o importante é levantar e continuar com dignidade...parabéns Cidinha.

Comentário: 

Parabéns Cidinha, a sua vida conta a história de quem andou por caminhos áridos distribuindo flores, prova real de que é possível manter valores e ideais até alcançá-los! Conte comigo nesta nova parceria!

patricia@cecom.unicamp.br

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