Edição nº 571

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 19 de agosto de 2013 a 25 de agosto de 2013 – ANO 2013 – Nº 571

Outros índios


Mesmo pertencendo à Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), o pintor brasileiro Rodolfo Amoedo (1857-1941) subverteu a retórica nacionalista sustentada pela escola fundada por dom João VI no Rio de Janeiro. Durante a segunda metade do século XIX, a política da AIBA visava promover as bases para uma identidade brasileira baseada na mítica do índio, ‘verdadeiro herói nativo’.

Ao investigar duas das principais obras de Amoedo, o artista visual e historiador da Unicamp Richard Santiago Costa constata que o pintor promoveu um processo de ressignificação do índio, até então símbolo da pátria no período do Império do Brasil (1822 e 1889). As obras O Último Tamoio (1883) e Marabá (1882) manifestam traços de um indianismo tardio, sem fôlego, esgotado às vésperas da proclamação da República, conclui o pesquisador da Unicamp.

“O estudo destas pinturas revela que o tema do indianismo ganha uma configuração diferenciada na última década do Império. Amoedo percebe que esta retórica de exaltação já está desgastada e procura dar uma nova roupagem”, sustenta Richard Costa, que defendeu recentemente mestrado sobre o tema junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). A orientação coube à docente Claudia Valladão de Mattos.

De acordo com ele, em O Último Tamoio e Marabá Rodolfo Amoedo atribui aos índios o signo da contemporaneidade. “O artista ‘desmonta’ esse índio herói, e faz isso expressando o que estava vendo naquele momento, que era o cotidiano de exterminação racial. O índio deixa de ter, portanto, um status mítico e passa a ser humanizado”.

A dissertação produziu uma abordagem nova sobre o tema. “Estas pinturas nunca foram investigadas detalhadamente. Infelizmente, a obra do Rodolfo Amoedo ainda é pouco estudada. E os estudos existentes são muito fragmentados”, justifica Richard, que recebeu financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

Ele acrescenta que não há, até hoje, uma catalogação das pinturas de Amoedo. Muitas obras pertencem a acervos públicos, principalmente, ao Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Mas há também várias telas em acervos privados, o que torna a obra do artista pouco conhecida. “Ele é um pintor intrigante, pois promove uma renovação da temática da Academia Imperial de Belas Artes, junto com esta última geração de artistas do Segundo Reinado, como os irmãos Henrique e Rodolfo Bernardelli”, opina.

O artista visual formado pelo Instituto de Artes (IA) também analisou outras obras indianistas do período, comparando com as pinturas de Rodolfo Amoedo. Uma correlação relevante no estudo é estabelecida entre Marabá e a escultura Faceira (1880), de Rodolfo Bernardelli. As duas obras possuem forte proximidade ao manifestarem a figura de uma índia mestiça provocante.


Literatura

Para pintar Marabá e O Último Tamoio, Rodolfo Amoedo parte de referenciais literários do mesmo período: respectivamente, o poema homônimo de Antônio Gonçalves Dias (1823-1864) e A Confederação dos Tamoios, de Domingos José Gonçalves de Magalhães (1811-1882).

O poema A Confederação dos Tamoios, publicado em 1856, é considerado como a grande epopeia nacional daquele período. A obra foi financiada pelo imperador para divulgar o começo heroico e mitológico do Brasil, tento o índio como referência. O objetivo era simbolizar a autonomia política e cultural do país em relação a Portugal.

Na tela, Amoedo inverte, no entanto, a representação deste heroísmo. Ao invés de apresentar o protagonista da ação numa situação de bravura, a obra exibe o personagem num momento de morte, apodrecendo afogado. É quando o padre José de Anchieta o acolhe na Baía de Guanabara. “Isso expõe a decadência do Império, mostrando os primeiros sinais de falência do regime. As políticas indigenistas também faliram porque a realidade era de extermínio e apartamento social do índio”, relaciona Richard Costa.

Em O Último Tamoio, toda a atenção da crítica se voltou para o fato do padre Anchieta estar representado como um monge capuchinho e não como um jesuíta. “A crítica considerou um delito grave porque um dos parâmetros da pintura histórica era a verdade, ela tinha que estar rigorosamente ligada ao seu referencial. Na medida em que o Amoedo faz um Anchieta capuchinho e não jesuíta, ele dá sinais de que alguma coisa está errada, pois é difícil acreditar que isso não tenha sido proposital”, particulariza o pesquisador.

Ele explica que, ao longo do século 19, o indígena foi o símbolo da nação. Isso aconteceu, sobretudo, a partir da independência. “O índio era visto como um elemento essencialmente brasileiro, pois ele estava aqui antes da chegada do homem branco. Portanto, vai haver toda uma literatura baseada neste indígena heroico que forma a nação. E a partir da década de 1860 com o Vitor Meireles, que foi professor do Amoedo na Academia Imperial de Belas Artes, isso ganha as artes visuais de uma maneira mais consistente”, esclarece.

Quando se torna aluno da escola fundada por Dom João, Rodolfo Amoedo ganha o direito de fazer um pensionato artístico em Paris a partir de 1879 após vencer um concurso interno na academia. Foi em terras francesas que o artista produziu Marabá e O Último Tamoio. As telas estão entre as mais importantes obras do pintor, que nasceu na Bahia e viveu no Rio de Janeiro.

No caso de Marabá, a presença do elemento mestiço é notável. “Muitos intelectuais passaram a ver não mais o indígena como um símbolo da nação, mas o mestiço, porque ele era a mistura das raças que formavam o Brasil. A tela de Amoedo é baseada num poema curto em que uma índia se lamenta pelo fato de ser mestiça. No poema, ela chora por não poder usufruir do encontro amoroso, já que nenhum guerreiro a desejaria justamente por estar mais próxima do branco do que do indígena”, observa Richard Costa.

Conforme o pesquisador, o artista não segue rigorosamente a descrição que Gonçalves Dias faz desta mestiça. No poema, Dias a descreve como loira de olhos azuis. Já a Marabá que Amoedo pinta é morena e tem os cabelos enrolados. Richard Costa ressalta que Amoedo fez um estudo preparatório para esta obra, bastante diferente da pintura oficial.

“Na pintura oficial, Marabá é, de fato, uma mestiça melancólica que chora e que se parece, em essência, com a descrição de Gonçalves Dias. Mas no estudo ela é uma mulher quase femme fatale do final do século 19. Ela encara o espectador. Acredito que Amoedo tinha em mente que a Marabá não era esta mestiça coitadinha que o Gonçalves Dias descreveu. Mas como ele ia expor no salão parisiense e mandar a obra para a Academia como uma espécie de prova do seu aprendizado, ele preferiu minimizar essa originalidade que ia dar ao tema. Produziu, então, uma mestiça de acordo com o que o poeta tinha descrito”, conclui.

Para o autor do estudo, a postura subversiva de Rodolfo Amoedo não objetivava deliberadamente criticar o regime que, justamente, o patrocinava. Richard lembra que a trajetória artística de Amoedo é bem sucedida, seu pensionato é prorrogado por três anos e sua obra tem boa acolhida na crítica. Além disso, logo após a sua volta ao Brasil, o artista é nomeado professor da Academia de Belas Artes.

“Fica evidente que Amoedo não é uma figura marginal no cenário artístico brasileiro, e, igualmente, não quer essa condição para si. O fato de ter sido aceito pelo regime só faz crer na qualidade plástica de suas obras. É por meio da alta qualidade de suas pinturas, comprovada e consagrada, que ele dará intensidade à sua mensagem artística”, sinaliza.



Publicação
Dissertação: “O corpo indígena ressignificado: Marabá e O Último Tamoio de Rodolfo Amoedo e a retórica nacionalista do final do Segundo Império”
Autor: Richard Santiago Costa
Orientadora: Claudia Valladão de Mattos
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)