Edição nº 563

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de junho de 2013 a 09 de junho de 2013 – ANO 2013 – Nº 563

Pesquisa esmiúça universo
dos motoboys de Campinas

Precarização do trabalho marca atividades
da categoria, formada em sua maioria por jovens

Eles têm pressa e, muitas vezes, não pedem passagem. Somam cerca de 900 mil só no Estado de São Paulo. Personagens polêmicos no cenário urbano brasileiro, os motoboys, termo vulgarizado para a profissão de motofretistas, foram o objeto de estudo da economista Stela Cristina de Godoi. Em seu doutorado defendido na Unicamp, ela desvendou a formação, o processo de exploração desta força de trabalho e a identidade da categoria em Campinas, constituída majoritariamente por homens jovens.

A investigação situa-se num momento importante em que novas regras para o setor acabam de ser aprovadas, com a entrada em vigor, no começo deste ano, da lei federal nº 12.009 de 2009. O objetivo seria regulamentar o exercício das atividades, estabelecendo princípios de segurança para estes profissionais.

Dados do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) revelam que, de cada dez acidentes no trânsito, sete envolvem motocicletas. O impacto para a saúde pública é considerável. Conforme estatísticas divulgadas em 2011 pelo Ministério da Saúde, 48% das internações por acidentes no país foram de motociclistas. Em média, são gastos R$ 200 milhões por ano com o total dos acidentados.

“A pesquisa ajuda a pensar a questão da recente regulamentação, que é insuficiente para trazer mais segurança, tanto para a sociedade como para a própria categoria. Apenas exigir itens de segurança e cursos de pilotagem defensiva é muito pouco para resolver esta situação. Seriam necessárias mudanças mais estruturais na forma de contratação e no ritmo que se exige desta atividade produtiva”, expõe Stela de Godoi.

A sua pesquisa, conduzida junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), foi orientada pelo docente Ricardo Luiz Coltro Antunes. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) concedeu bolsa à pesquisadora da Unicamp. O estudo foi aprovado pela comissão julgadora em setembro do ano passado. Diversos motofretistas de Campinas foram ouvidos com base na técnica de história oral, metodologia sustentada pela coleta de entrevistas e fontes primárias de dados. Pela análise das entrevistas, o estudo permitiu identificar, conforme Stela de Godoi, três fenômenos importantes para entender a formação e o modo de ser deste grupo profissional: os fluxos migratórios; o domínio de mercado das indústrias automotivas; e o processo de precarização do trabalho.


Fluxos migratórios

A origem dos motofretistas de Campinas remete aos fluxos migratórios que contribuíram para a formação da Região Metropolitana de Campinas, sobretudo a partir da década de 1970. São imigrações, principalmente, do norte do Paraná, sul de Minas Gerais e também da região metropolitana de São Paulo, explica a pesquisadora e especialista em sociologia do trabalho.

“Muitos vieram a Campinas por conta do processo de interiorização do parque industrial do Estado de São Paulo nas últimas décadas do século 20. Isso é um fato importante na formação e trajetória destes profissionais, conforme retratam as suas histórias de vida”, aponta Stela de Godoi.


Mercado de automóveis

Outro fenômeno importante para o entendimento da realidade dos motofretistas é a força de mercado conquistada pela indústria automotiva no país. “Iniciou-se no governo de Juscelino Kubitschek, que atraiu boa parte dos fabricantes internacionais para o Brasil. Essas indústrias tinham interesses em fazer a transnacionalização do seu parque produtivo. Desde então, a indústria automotiva foi ganhando uma força de mercado muito grande dentro do país”, contextualiza a economista.

Conforme Stela de Godoi, o poder de mercado dessas corporações definiu os rumos do desenvolvimento urbano, impondo, consequentemente, um meio de transporte mais ágil que permitisse a rápida circulação de mercadorias. “Os motofretistas permitem que o sistema produtivo continue funcionando mesmo nesse contexto de caos do trânsito urbano. Por isso, geralmente os profissionais que fazem este serviço são vistos pela sociedade como um ‘mal necessário’, ora um ‘exército da salvação’, ora ‘visitantes indesejados’”, analisa.


Precarização

Para a economista, o processo de precarização do trabalho ajuda a compreender diversas características da identidade deste grupo de profissionais. Ela esclarece que a vulnerabilidade na atividade dos motofretistas é decorrente da reestruturação produtiva do capital e da flexibilização das regras trabalhistas.

“A terceirização se fortaleceu no final da década de 1990, justamente num momento em que o capitalismo estava se reformulando para uma modalidade de acumulação que chamamos de flexível. Esta acumulação está caracterizada, principalmente, por três fatores: aceleração do tempo e da necessidade de circulação de mercadorias; terceirização da força de trabalho; e pela lógica de tornar as indústrias enxutas, sem estoques”, explica.

Estes três elementos podem ser transpostos para o caso dos motofretistas, sustenta Stela de Godoi. “Eles trabalham num ritmo acelerado e são majoritariamente terceirizados. Atuam num ambiente que antes era improdutivo para o capital, que é o espaço de circulação das cidades. Os galpões fabris aonde estes motofretistas atuam são justamente as ruas da cidade. Este é o espaço de trabalho dos motoqueiros”.

Ela acrescenta que está imbricada nesta atividade profissional a própria negação do direito trabalhista. “Trata-se de traço bem marcante nos relatos de todos os motofretistas justamente por conta das diferentes formas de contratações precárias. Eles têm que trabalhar, de modo a garantir, por conta própria, todo o suporte que a legislação deveria lhes dar. Não há proteção social que assegure condições dignas de trabalho. A maioria trabalha sob pressão dos empregadores e com jornadas sobrepostas, que chegam até a 15 horas”, argumenta.

Essas circunstâncias de trabalho se agravam ainda mais devido às condições desiguais entre patrões e empregados, afirma a pesquisadora da Unicamp. “Apesar do teto da categoria, cada patrão negocia individualmente com o seu trabalhador. Isso é complicado porque pressupõe uma relação de igualdade que não existe no sistema capitalista. Na verdade, a maior parte destes motoqueiros ganha por produção. Há uma variedade de formas de pagamento que dificulta qualquer acordo mais coletivo”, destaca.

Além disso, a terceirização e precarização do trabalho produzem o que a especialista identificou e classificou como “roubos patronais”. “Eu usei esta expressão forte mesmo porque é isso que me foi contado. É muito comum os motoqueiros executarem um trabalho e não receberem o valor no final do mês. Há casos de terceirizadas que devem de R$ 500,00 a R$ 5.000,00. A precarização, portanto, dá margem a este tipo de irregularidade”, revela.


Virilidade

O discurso da virilidade, compartilhado tanto por patrões como empregados, serve de instrumento para a dominação desta classe de trabalhadores, considera Stela de Godoi. Ela afirma que é possível associar, neste contexto, a articulação de dois sistemas: o capitalismo e o patriarcado.

“Este grupo de trabalhadores é majoritariamente masculino. Este dado da virilidade, da ‘coragem’, serve muito aos interesses das empresas que usam o trabalho destes motoqueiros. Um trabalhador, bem jovem, falou assim: ‘a moto mexe com o psicológico da gente. Eu sinto vontade de provar que eu consigo correr mais’”, relata.

Stela de Godoi assegura que os próprios empregadores também pressionam neste sentido. “Em uma entrevista com um patrão eu perguntei: ‘por que você não contrata mulheres?’ Ele me disse que não contratava porque as mulheres chorariam se ele falasse com elas da mesma forma que fala com os seus funcionários”, descreve.


Publicação
Dissertação: “No tempo certo, sobre duas rodas: um estudo sobre a formação e a exploração dos (as) motofretistas de Campinas (SP)”
Autora: Stela Cristina de Godoi
Orientador: Ricardo Luiz Coltro Antunes
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
Financiamento: Capes