Edição nº 563

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de junho de 2013 a 09 de junho de 2013 – ANO 2013 – Nº 563

De São Paulo a Assunção, movido a hidrogênio

Bioquímico avalia a viabilidade da implantação de uma rota para uso do combustível

Imagine uma rodovia que ligue São Paulo a Assunção que esteja preparada para abastecer, com hidrogênio, toda a frota de transporte coletivo de passageiros que por ela circule. Mais do que pensar nessa hipótese, o bioquímico Gustavo Arturo Riveros Godoy desenvolveu um estudo técnico para a sua tese de doutorado, no qual analisa a viabilidade técnica, econômica e ambiental da implantação dessa rota, que tem um percurso de cerca de 1.350 km. Conforme o trabalho, que foi defendido na Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp, sob a orientação da professora Carla Kazue Nakao Cavaliero, já existe tecnologia com maturidade aceitável para a execução de um projeto de tal envergadura. Além disso, a substituição do diesel pelo hidrogênio possibilitaria uma redução na emissão de dióxido de carbono (CO2), gás causador do efeito estufa, da ordem de 2.098 toneladas ao ano. A principal questão a ser revolvida é o custo do aparato tecnológico, que faz com que a utilização do combustível alternativo custe duas vezes mais do que o de origem fóssil.

De acordo com Godoy, a proposta do estudo focou-se no aproveitamento de uma infraestrutura rodoviária já disponível. O pesquisador percorreu a rota escolhida, denominada no trabalho de Rodovia do Hidrogênio Brasil-Paraguai, para identificar pontos chaves para a instalação das estações de abastecimento do combustível. “A ideia é usar as instalações dos postos de combustíveis existentes, de maneira a diminuir os investimentos exigidos. Nesse caso, o hidrogênio seria produzido no mesmo local, por meio da eletrólise da água”, explica o bioquímico. Na tese, ele dimensionou os equipamentos necessários a cada uma dessas bases, a saber: eletrolisador, compressor e sistemas de armazenamento e abastecimento.

Godoy afirma que optou pela ligação Brasil/Paraguai por três motivos principalmente. O primeiro é o grande fluxo de passageiros existente entre os dois países, em torno de 46.000 pessoas por ano. O segundo foi o apoio institucional da Universidade Nacional de Assunção, somado ao aporte financeiro da Itaipu Binacional. Por último, também pesou o fato de o pesquisador ser paraguaio. Atualmente, ele trabalha no Parque Tecnológico Itaipu/Paraguai (PTI) e está envolvido num projeto de produção e utilização de uma mistura de hidrogênio e metano sintético, conhecida como hidrano, em parceria com a Universidade de Genova, na Itália, onde cumpre estágio.

O autor da tese conta que iniciativas como a estrada sugerida em seu trabalho ainda são incipientes no mundo. Todavia, existem dois projetos do gênero, que estão em execução: Scandinavian Hydrogen Highway Partnership (SHHP) e California Hydrogen Highway Network (CHHN). O SHHP prevê a instalação de pelo menos 20 postos de abastecimento de hidrogênio ao longo de uma rede rodoviária formada por três países (Noruega, Suécia e Dinamarca) até 2015, com a entrada em operação de uma frota de 100 ônibus com células a combustível e 500 carros de passeio movidos a hidrogênio. Em 2009, foi inaugurado um percurso de 580 km, com a operação de quatro estações de abastecimento e 16 veículos.

Já o Estado da Califórnia, nos Estados Unidos, é um dos pioneiros nesse tipo de iniciativa, e desde 1990 mantém um forte estímulo ao desenvolvimento de uma rede urbana de postos de abastecimento de hidrogênio. “Este caso é um tanto diferente da minha proposta, por se tratar do uso urbano e não rodoviário, mas é um exemplo de uma ação que busca a utilização veicular em larga escala”, esclarece Godoy. No caso da rodovia Brasil/Paraguai, prossegue o bioquímico, a sua tese propõe a instalação de sete estações de produção/abastecimento do combustível, sendo duas em território paraguaio. “Em termos técnicos, nosso estudo concluiu que a tecnologia disponível apresenta um grau de maturidade aceitável para viabilizar o projeto e também se comprovou a possibilidade de aproveitar a estrutura física dos postos existentes [foi realizada uma visita e entrevistas com responsáveis dos potenciais locais de instalação]. Do ponto de vista da análise ambiental, teríamos a redução da emissão de 2.098 toneladas de CO2 ao ano, o que possibilitaria a comercialização de créditos de carbono, medida que geraria uma receita de cerca de US$ 65 mil anuais”, elenca.

O pesquisador admite que esse tipo de ganho não é suficiente para conferir viabilidade econômica para a substituição do diesel pelo hidrogênio. “Os custos de produção do hidrogênio, nas condições atuais, sem qualquer incentivo governamental, são pelo menos duas vezes superiores aos do óleo diesel, tanto no Brasil quanto no Paraguai”, aponta. Godoy adverte, entretanto, que o uso do hidrogênio em larga escala traz outros ganhos, especialmente para a saúde da população e para o ambiente. “A utilização do hidrogênio pode ser uma eficiente estratégia para a redução da emissão de CO2, apontado como principal causador do efeito estufa, assim como de outros gases prejudiciais à saúde. Além disso, a tese demonstrou que, caso toda a frota que circula pela rota proposta passe a utilizar o combustível alternativo, o consumo de diesel seria reduzido em aproximadamente um milhão de litros ao ano”, compara.

Mas, qual seria o montante necessário para financiar a execução de um projeto com tal amplitude? Essa estimativa foi igualmente projetada pelo pesquisador, que levou em conta dois cenários. No primeiro deles, Godoy considerou a introdução de somente um ônibus movido a hidrogênio. “Nesse caso, os custos de implantação alcançariam US$ 5 milhões, sendo que 30% seriam destinados à instalação de estações de produção e abastecimento no Paraguai e o restante no território brasileiro. Nesse caso, o custo operacional anual seria de US$ 1 milhão. Quanto ao custo do veículo, ele variaria entre US$ 550 mil e US$ 1,6 milhão, tendo como base projeções para o período de 2012 a 2014”, informa.

No segundo cenário, que considera a substituição de toda a frota, o custo de implementação da rota saltaria para US$ 17 milhões, sendo 25% para a instalação das estações de abastecimento no Paraguai e o restante em solo brasileiro. A estimativa de custo operacional anual, nesta hipótese, alcançou os US$ 5 milhões. “Portanto, estes valores configuram-se como o custo máximo de execução do projeto. Quanto ao custo de compra dos ônibus, este ficaria na faixa dos US$ 3,3 milhões a US$ 9,6 milhões”, acrescenta. Tais recursos, na opinião do pesquisador, poderiam ser levantados através do esforço conjunto dos setores público e privado, nos dois países. “Nesse modelo combinado, o principal papel dos governos é estabelecer regimes fiscais que sejam atraentes para o setor privado”, complementa.

A instalação das bases de produção e abastecimento nos dois países, sustenta o bioquímico, não apresentam diferenças significativas, visto que todos os equipamentos necessários devem ser importados. “No entanto, é importante ressaltar o impacto que o custo da energia elétrica causa no preço final do hidrogênio. No Paraguai, onde o custo da energia elétrica é muito mais baixo que no Brasil, o custo de produção do hidrogênio é duas vezes menor”. A despeito desse tipo de disparidade, Godoy entende que Brasil e Paraguai constituem um exemplo de integração energética por meio da Usina Hidrelétrica de Itaipu, e podem repetir a mesma experiência em relação ao hidrogênio.

O pesquisador avalia que, apesar de o Brasil ser um dos líderes em pesquisa, desenvolvimento e inovação tecnológica no tema, notadamente no âmbito do Cone Sul, a implantação da Rodovia do Hidrogênio Brasil-Paraguai representaria um grande passo para o país em direção à estruturação de uma economia baseada no hidrogênio. “Já para o Paraguai, seria uma medida estratégica que o colocaria também no mapa mundial da tecnologia desse combustível, com as potenciais vantagens a ela atreladas, especialmente o desenvolvimento de pesquisas e a geração de novos investimentos. Em suma, esse empreendimento seria um catalizador para a nacionalização e regionalização da tecnologia do hidrogênio”, acredita o autor da tese, que contou ainda com a coorientação de Paulo Fabrício Palhavam Ferreira, da Hytron, empresa brasileira dedicada a esta tecnologia.


Lá e cá

No cenário internacional, o desenvolvimento de tecnologias para aplicação do hidrogênio em larga escala está em fase pré-comercial, como observa Godoy. Diversas empresas dos setores de gás, energia e veículos já possuem equipamentos tecnicamente adequados, embora arcando com altos custos. Companhias como Honda, General Motors, Ford e Toyota, entre outras, têm veículos que atendem às necessidades do mercado, que já foram demonstrados em diversos locais do mundo. Quanto ao Brasil, como já dito, o país exerce a liderança nas áreas de pesquisa, desenvolvimento e inovação na América do Sul.

Aqui, um marco nos estudos envolvendo o uso do hidrogênio como combustível foi a entrada em operação, em 2009, do projeto Ônibus Brasileiro a Hidrogênio, o que fez com que o país passasse a figurar no grupo de nações fabricantes desse tipo de veículo, formado ainda por Estados Unidos, Alemanha, Japão e China. Este ônibus, aliás, foi utilizado nas estimativas presentes no estudo de Godoy. “Apesar disso, a maior parte da tecnologia desenvolvida no Brasil ainda se encontra em estágio laboratorial. Isso faz com que o país esteja defasado em vários anos quando comparado com outras nações que participam dessa ‘corrida do hidrogênio’”, avalia o pesquisador.

Recentemente, observa Godoy, o governo brasileiro lançou o Plano Inova Energia, resultado de uma ação conjunta entre o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Uma das linhas do plano refere-se ao financiamento de Infraestrutura de Abastecimento Veicular. A medida contempla o desenvolvimento e implementação de projetos-piloto de sistemas de recarga/abastecimento elétrico ou de hidrogênio para veículos automotores com tração elétrica. “Trata-se da primeira iniciativa do tipo no país. É um bom incentivo para as empresas e instituições que trabalham com o desenvolvimento da tecnologia do hidrogênio. Incentivos deste tipo podem fazer com que Brasil venha a ter uma rede de abastecimento do hidrogênio para uso veicular, tanto urbano quanto rodoviário”, analisa o bioquímico.

O hidrogênio pode ser produzido a partir de diferentes fontes, como a reforma do gás natural ou de etanol; gaseificação de carvão ou biomassa; eletrólise da água; rotas fermentativas; e processos combinados, como energia solar associada à eletrólise. Quando obtido de fontes renováveis, ele causa reduzidos impactos ambientais, dado que as reações químicas necessárias para reconvertê-lo em energia produzem somente água como produto final, ou seja, não há emissão de gases causadores de efeito estufa.


Publicação
Tese: “Rodovia do hidrogênio Brasil-Paraguai: estudo técnico, econômico e ambiental”
Autor: Gustavo Arturo Riveros Godoy
Orientadora: Carla Kazue Nakao Cavaliero
Unidade: Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM)