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Edição nº 563

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de junho de 2013 a 09 de junho de 2013 – ANO 2013 – Nº 563

O crítico que avisava toda a gente

Unicamp recebe doação de acervo do poeta e jornalista português João Apolinário, que se estabeleceu em São Paulo e acompanhou importante fase do teatro brasileiro nos anos 60 e 70

Durante quase seis anos, a professora de história Maria Luiza Teixeira Vasconcelos leu, em primeira mão, a crítica teatral do jornalista João Apolinário (1924-1988), no apartamento onde moravam na rua Capote Valente, zona oeste de São Paulo. De sua mesa, rodeado por livros e uma janela com vista para árvores, que o aproximavam de Portugal, o crítico gostava de ouvir o texto na voz da esposa antes de sair para o trabalho no jornal Última Hora. Passadas mais de quatro décadas do início dessa história, os olhos dela ainda brilham quando reconstrói de memória a cena vivida pelo casal. Agora, o costume que os unia levará a obra de Apolinário para quem quiser conhecer e estudar mais sobre o crítico. Maria Luiza acaba de publicar dois livros contendo textos do jornalista (de 1964 a 1974), e de doar o acervo dele para o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) da Unicamp, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), que preserva registros dos mais diversos movimentos sociais ocorridos no Brasil.

No contexto do regime militar, o jornalista e poeta português João Apolinário escreveu sobre um teatro brasileiro que buscava construir uma identidade nacional e conviveu com uma reconhecida geração de diretores, dramaturgos e atores, entre os quais Oduvaldo Viana Filho, Ademar Guerra, Antonio Abujamra, Gianfrancesco Guarnieri, Jô Soares, José Celso Martinez, José Renato Pécora, Augusto Boal, Plínio Marcos, Eva Wilma e Raul Cortez. O crítico acompanhou e escreveu sobre o trabalho dos principais grupos da história teatral brasileira, como o Teatro Brasileiro de Comédia, o Teatro de Arena e o Teatro Oficina. “Foi o período de maior intervenção do teatro na sociedade, repercutindo no palco as inquietações coletivas”, afirma o jornalista, ator e dramaturgo Oswaldo Mendes, em texto publicado no livro sobre Apolinário, seu amigo. “Suas críticas [...] nunca esconderam a opção política e ideológica por um teatro engajado nas lutas dos homens do seu tempo.”

O acervo doado à Unicamp reúne mais de 500 críticas teatrais publicadas no jornal Última Hora, em São Paulo, de maio de 1964 a março de 1974. A primeira delas foi escrita sobre a peça “Toda a donzela tem um pai que é uma fera”, de Gláucio Gil, dirigida por Benedito Corsi no Teatro Oficina. O número de textos do arquivo deve aumentar, porque a pesquisadora ainda completará o trabalho de coleta até o final de 1974. O AEL da Unicamp recebeu ainda mais de 1.200 fotografias e 250 programas de espetáculos. Com a derrubada do salazarismo (Revolução dos Cravos) e depois de 12 anos exilado no Brasil, João Apolinário retornou a Portugal em 1975, acompanhado da esposa, e encerrou a carreira de crítico do teatro brasileiro.

“Os textos que ele escreveu nos permitem ter ideia do cenário político e cultural daquele período”, afirma a diretora adjunta do AEL, Lucilene Reginaldo, ao avaliar o material recebido pela Unicamp. “Impressiona a profundidade e a qualidade da crítica que ele escrevia.” Segundo ela, o acervo deve abrir novos campos e cenários de investigação sobre a história política e cultural brasileira. Além disso, permitirá a complementação e o cruzamento com os acervos já existentes no AEL, como o do Teatro Oficina e o de Vanda Lacerda, que guardam fontes importantes sobre a história social, cultural e política do teatro brasileiro.

Todo o material entregue à Unicamp foi reunido ao longo de cinco anos pela viúva de João Apolinário, a partir de pesquisas na coleção pessoal de recortes de jornais da época do próprio jornalista, em fotos que ele guardava e em coleções do jornal Última Hora doadas ao Arquivo Público do Estado de São Paulo. “O papel do crítico, para ele, era formar um público atento, esclarecido sobre o espetáculo e com espírito crítico”, define Maria Luiza Vasconcelos. No futuro, a família também enviará os livros da biblioteca do jornalista que se autoimpôs uma missão de vida, traduzida em um de seus poemas: “É preciso avisar toda a gente”, de 1955, que virou música em Portugal, na voz de vários cantores, e no Brasil, nas mãos do filho dele, João Ricardo, no grupo “Secos & Molhados”.


Método

O teatro épico e engajado de Bertolt Brecht é uma presença comum nas críticas de João Apolinário, assim como a preocupação de ambos (influência do primeiro) com o nível de consciência e participação crítica do espectador em relação à peça. Apenas no primeiro volume, de cada dez críticas, Brecht é mencionado explicitamente em pelo menos uma delas. O texto do crítico português é claro, simples, didático e carregado de conteúdo. Para ele, o teatro era “a poesia em movimento”.

Pelo jornal, em público, Apolinário discutiu o papel da crítica e do crítico, como demonstrado no artigo “Introdução ao método” , publicado em julho de 1968. “O público e os criticados esperam dele [crítico] a tese (movimento criador das ideias ou uma teoria do conhecimento), a antítese (ação interpretativa, material, objetiva, dos elementos analisados) e, por fim, a síntese hegeliana que a obra de arte oferece. Este é a mais simples das soluções, hoje em dia adotada por muitos comentaristas”, escreveu, explicando aos leitores seu método de trabalho para analisar o teatro paulista.

Para manter-se com liberdade, o jornalista não recebia pelas críticas. Sobrevivia com o salário de redator, mais tarde editor de Variedades, no jornal Última Hora, o mesmo para o qual produzia os textos sobre teatro. Certa vez, um diretor do periódico mudou algo em uma crítica de Apolinário, conta Maria Luiza. De imediato, o jornalista foi até o andar do setor de pessoal para resgatar o contrato que assinara, confirmando que nada receberia pelo trabalho desde que nada fosse mudado. “Isso nunca mais voltou a acontecer”, diz a professora de história.

O turno no jornal começava à tarde. Os textos das críticas eram produzidos pela manhã, enquanto a esposa estava fora, em sala de aula com alunos. A organizadora do acervo descreve essas manhãs, repetidas por anos, como um período de intensa ebulição criativa diante do teatro brasileiro, dos acontecimentos e das transformações políticas e sociais que marcaram esse período na história do país. Por coincidência, o jornalista refugiou-se no Brasil para escapar das perseguições do regime português e, três meses depois de sua chegada (março de 1964), viu acontecer o golpe de Estado que só terminaria em 1985.

Segundo a organizadora, Apolinário era entusiasta do teatro predominantemente brasileiro, como o realizado pelo Teatro de Arena, mas mantinha certo distanciamento profissional para preservar a natureza e a essência de sua crítica teatral. Mas isso não o impediu de participar de certas articulações, algumas para a criação de entidades de classe, como a Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), e de reuniões com grandes nomes do teatro paulista, realizadas na redação do jornal Última Hora, na Alameda Barão de Limeira, em São Paulo.


Livro

A pesquisa realizada para a montagem do acervo de João Apolinário resultou na publicação de dois livros, com cerca de 1.200 páginas, contendo 329 imagens históricas do teatro nacional e mais de 300 textos (críticas e artigos) produzidos pelo crítico no Brasil.

Além do trabalho de resgate da obra do jornalista, Maria Luiza recuperou imagens da época, organizadas de forma cronológica nos dois livros, vinculadas a cada texto das críticas que Apolinário escreveu, de forma que é possível ler e “construir” na mente as principais cenas do teatro paulista. As imagens são do arquivo pessoal do crítico e do acervo jornal Última Hora (periódico carioca que chegou a ter uma edição em São Paulo, fundado nos anos 50 pelo jornalista Samuel Wainer/1912-1980), cedidas pelo jornal Folha de S.Paulo.

“A Crítica de João Apolinário – memória do teatro paulista de 1964 a 1971”, volume I e II, publicada pela Imagens, com o apoio da Petrobras, foi lançado em São Paulo, no dia 15 de maio. Apesar do espaço temporal delimitado no título da publicação, os principais artigos e críticas do jornalista de 1972 a 1974 foram integradas ao segundo volume, como um apêndice especial. Apenas com os textos posteriores a 1972, a organizadora estima que será possível publicar mais dois volumes para completar a obra do crítico teatral.

No livro, Maria Luiza escreve sobre a obra do marido. Ela também convidou amigos de Apolinário, todos ligados ao teatro, para falar sobre o legado deixado por ele. Mas as intervenções da organizadora param por aí. Essa é outra marca daquele período em que a professora de história lia as críticas recém-acabadas para o marido. “Jamais houve a pergunta: gosta ou não gosta [da crítica]. Jamais a faria. Ele gostava de ouvir e eu adorava sair das minhas aulas e ler. E ele gostava de me ouvir ler a crítica que ele escrevia”, recorda Maria Luiza.

De volta a Portugal, Apolinário publicou cinco livros de poesia e deixou inéditos os “Sonetos Populares Incompletos”. Morreu de câncer, aos 64 anos, em 1988.

 

 

Drama superou a comédia

Nos cinco primeiros anos do regime militar, a comédia perdeu espaço no teatro paulista para o gênero drama. A observação, feita em 1970 por João Apolinário, está no artigo “Senhores do teatro paulista, vamos dar uma olhada no passado”, que integra uma série de textos nos quais o crítico avalia o teatro paulista. Para classificar o gênero do espetáculo, o jornalista explicou ter se utilizado do propósito do encenador, sem ficar preso ao estilo original da peça.

O artigo citado não analisa o motivo de o gênero tragédia ter saltado da faixa de 30% do total de peças encenadas em São Paulo, em 1965, para quase 60% no período de 1967 a 1969, enquanto a comédia manteve-se abaixo de 30%. Nesse período, o Brasil mergulhou nos “anos de chumbo”, com a edição do Ato Institucional nº 5 (1968) e o agravamento da repressão e da luta armada. Para a diretora adjunta do AEL, Lucilene Reginaldo, a evidência do gênero drama revela o “clima tenso em relação às liberdades e à expressão” vigente naquele período.

Entre 1970 e 1971, Apolinário contabilizou números do teatro paulista, as estreias, os espetáculos, classificou as peças por gênero, por nacionalidade dos autores (a produção dos brasileiros ultrapassa a dos estrangeiros nos cinco anos analisados) e as classificou em categorias: 1) teatro realizado em 1970 de acordo com o nosso subdesenvolvimento (“produzidas dentro das condições mínimas de consumo”); 2) teatro realizado de acordo com a nossa vanguarda (“espetáculos experimentais que consideramos mais representativos da nossa capacidade criadora”); 3) teatro inferior ao nosso subdesenvolvimento (“’Quadrados’ ou acadêmicos, velhos em vários aspectos da sua produção”); 4) teatro acadêmico de acordo com o nosso subdesenvolvimento (encenações tão contraditórias quanto as anteriormente classificadas”); e 5) teatro importado inferior à nossa vanguarda. A lista completa das peças, segundo essas categorias, está no livro (volume II, páginas 375 a 377).

Nessa série de textos, o jornalista defendeu a criação de uma “política cultural” para São Paulo. “A nossa preocupação, com efeito, tem sido achar os motivos da crise teatral que em 1970 assumiu uma contradição gravíssima: ao mesmo tempo em que se fomentou uma produção de espetáculos nunca antes vista, batendo todos os recordes de investimentos, alcançando as mais variadas experiências e realizações, a ausência de público, a indiferença do espectador tradicional e ou o desencanto da crítica, vieram provar que alguma coisa está errada, algo muito grave está levando o teatro para um beco sem saída, beco onde se aglomeram, hoje, perplexos ou desiludidos, os nossos mais responsáveis artistas: dramaturgos, atores, diretores etc”, escreveu em 1971 (“A quem interessa uma ‘política cultural’?”).

O crítico analisou ainda o público do teatro paulista (“Qual é, afinal, essa minoria para quem se produz teatro?”, 1971), avaliou a quantidade de espectadores, o valor dos ingressos, a política de incentivos do governo e o formato de “oferta-procura” adotado na época para a seleção de peças que seriam encenadas. “Estamos na estaca zero. As classes populares estão para o teatro como os analfabetos estão para a escola. Há que alfabetizar uns e outros. Isto se, verdadeiramente, o Estado está interessado em popularizar o teatro, como parece, subvencionando as companhias teatrais de quem tem exigido, como único reembolso, as chamadas ‘temporadas populares’”, escreveu em março de 1971 (“Sugestões simples e urgentes à Comissão Estadual de Teatro”).

Nos anos 70, Apolinário trabalhou para a unificação de todos os críticos de arte sob uma mesma entidade, uma forma de contrapor-se à censura da época, como escreveu o jornalista, ator e dramaturgo Oswaldo Mendes, que o acompanhou nessa empreitada. Assim, nasceu a Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), criada a partir da Associação Paulista de Críticos Teatrais (APCT). “A militância de João Apolinário no teatro paulista se deu também em outras frentes. Ele se juntou a Eva Wilma, John Herbert, Raul Cortez e Antunes Filho – ainda lembro encontros na redação do jornal Última Hora – para criar uma entidade que defendesse os artistas-produtores, em tempos sem patrocínios de leis de incentivo e sem políticas públicas. Assim nasceu a Associação de Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo (Apetesp), para propor estratégias comuns de produção, divulgação e proteção do seu trabalho”, afirma Mendes.


Doação enriquece acervo do AEL

Quase 100 mil imagens digitalizadas, 27 mil fotografias, 4,3 mil títulos de jornais e 20 mil livros para pesquisas, entre outros números, ajudam a compreender a importância do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) da Unicamp para recontar a história dos principais movimentos sociais e políticos no Brasil. Em relação ao teatro brasileiro, estão disponíveis o acervo do teatro Oficina, um dos mais importantes movimentos culturais de vanguarda da década de 60 no país; da atriz Vanda Lacerda (1923-2001), expoente do teatro nacional; e do produtor do gênero revista Zilco Ribeiro (1921-1993), com mais de 1.300 fotografias sobre o teatro de revista, esquetes, figurinos, cenários e vedetes.

Logo na abertura das caixas do acervo de João Apolinário, a diretora técnica do AEL, Elaine Marques Zanatta, encontrou um catálogo da peça “Rei da Vela” (de Oswald de Andrade), do Teatro Oficina, em excelente estado de conservação, guardado há mais de 40 anos pelo jornalista e, depois de sua morte, pela família dele. A descoberta exemplifica o potencial de cruzamentos e de complementação entre os arquivos já existentes na Unicamp. O acervo do Teatro Oficina, de 1958 a 1986, já está no Arquivo Edgard Leuenroth.

A peça “Rei da Vela” (de Oswald de Andrade), como curiosidade sobre o potencial do arquivo doado ao AEL, foi considerada por Apolinário uma “encenação-manifesto”. “É um espetáculo destinado a fazer história”, escreveu em 1967, sobre o espetáculo dirigido por José Celso Martinez Corrêa.


Fotos da primeira página

1) Juca de Oliveira e Eva Wilma contracenam em “Corpo a Corpo” (1971); 2) Paulo César Pereio e Francisco Cuoco, em “O Assalto” (1969); 3) Renato Borghi e atriz, “Na selva das cidades” (1969); 4)Cecil Thirré, Jardel Filho e Maria Della Costa, em “Falando das rosas” (1969); 5) Jairo Arco e Flecha e Rodrigo Santiago em cena de “Cada um de nós” (1965); 6) Maria Cristina, em “Hair” (1969); 7) Armando Bogus e Eva Wilma, “A megera domada” (1965); 8) Maria Bethânia, João do Vale e Zé Kéti em “Opinião” (1965); 9) Clauce Rocha (segunda, à esquerda) e elenco, em “Electra” (1965); 10)Lima Duarte, Dina Sfat (à direita) e atores de “Arena conta Zumbi” (1965).