Edição nº 554

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 18 de março de 2013 a 24 de março de 2013 – ANO 2013 – Nº 554

A retórica como arma


Ao estudar Thomas Hobbes (1588-1679) na sua tese de doutorado, o teólogo Isaar Soares de Carvalho constatou que, apesar dele ter sido visto como ateu na História da Filosofia, na sua interpretação o que ele fez foi ensinar as escrituras à própria Igreja, que as usavam de forma tendenciosa. A tese, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), teve orientação do professor João Carlos Kfouri Quartim de Moraes. O autor avaliou o Leviatã, obra magna de Hobbes, cujo título ilustra a soberania absoluta do Estado, aludindo a uma metáfora do livro de Jó.

O filósofo defendia que Cristo não enviou os apóstolos para dominar o mundo e sim para pregar o reino de Deus. Deste modo, ele reensinou a Igreja a ler a Bíblia ou mostrou-lhe que não a lia honestamente. Do contrário, jamais diria que o líder da religião era superior ao poder do Estado.

Sua argumentação no Leviatã era para um público mais amplo e menos erudito que os leitores do De Cive (Do Cidadão), livro de sua autoria também estudado por Isaar. Nos dois, manteve argumentos filosóficos sobre a soberania, buscando as escrituras para justificá-los.

Na dedicatória do Leviatã avisou que leria as escrituras de forma diferente da Igreja, que a usou para defender sua supremacia sobre o Estado. O filósofo provou pela Bíblia que a soberania vinha do povo: quando Moisés chegou ao Egito, quem legitimou o poder dele foram os anciãos; Saul recebeu o poder pelo consentimento do povo, assim como Davi.

Isaar escolheu o tema pela falta dessa abordagem na obra hobbesiana. Encontrou na Unicamp orientadores da envergadura de Michel Debrun e Fausto Castilho, no mestrado, bem como de Marcos Müller e Luis Orlandi, membros da banca examinadora, e de João Quartim no doutorado, além de Eneias Forlin e José Almeida Marques, leitores da tese.

O pesquisador se interessou pelo assunto quando, lendo o capítulo 14 do Leviatã, verificou que Hobbes se servia do evangelho para justificar a segunda lei de natureza: “Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo”. Esse princípio foi justificado com a citação do evangelho: “É esta a lei do evangelho: faz aos outros o que queres que te façam a ti. E esta é a lei de todos os homens”.

Filho de um pároco anglicano, o filósofo morreu aos 91 anos. Viveu a crise da soberania e paz civil na Inglaterra, no tempo em que Carlos I foi decapitado e Oliver Cromwell tornou-se ditador. Foi beneficiado pela Restauração com Carlos II. Predominou o parlamentarismo, ao qual ele fazia severas críticas. Ironizava seus defensores, afirmando que seu real interesse era participar do poder. Hobbes traduziu para o inglês a História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, e a Arte Retórica, de Aristóteles. Erudito, tinha sempre à mesa um exemplar do Novo Testamento Grego e da História da Guerra do Peloponeso.

Em 1642, publicou De Cive, obra erudita sobre a qual o filósofo Mersenne observou: “Este livro vale um tesouro e seria desejável que os caracteres usados para a sua impressão fossem de prata”. Na edição de 1651, replicando aos que criticaram sua visão negativa do homem, disse que as escrituras evidenciavam que todos os homens eram maus: “a imaginação do coração do homem era má desde a sua meninice” e que “não há um justo, nem um sequer”. “E Hobbes não teria razão ao afirmar que ‘o homem é o lobo do próprio homem’?”, indaga Isaar. Ocorre que nem sempre suas referências às escrituras eram textuais. Só o leitor atento as percebia.

Isaar não conhece teólogo mais sabedor da Bíblia que Hobbes, que aplicou seu conhecimento de Filosofia Política para abordar a Bíblia sob nova ótica. Mostrou que os dez mandamentos tinham 60% de deveres em relação ao próximo e 40% em relação a Deus; que Cristo nada fez contra as leis dos judeus ou de Roma e que nem ensinou a desobediência civil.

O filósofo defendeu o poder absoluto, a priori contra as pretensões políticas do clero, que, conforme Renato Janine Ribeiro, “invocando o nome de Deus, pode brandir a ameaça de castigos eternos”. “Hobbes foi um profeta que pregou contra a própria Igreja, porque ela deixou o reino de Deus em segundo plano e quis criar um Estado dentro do Estado, o que é impossível, pois a soberania, por natureza, é única”, acentua Isaar.

Em relação à “heresia”, Hobbes relatou na obra Narração Histórica sobre a Heresia e as Formas de seu Castigo, de 1680, que o termo significava escolha, e surpreendeu ao falar que, na Filosofia Antiga, “uma vez que cada um escolhia a opinião que lhe agradasse, cada uma das muitas opiniões era chamada uma heresia” e que “os introdutores dessas heresias foram mormente Pitágoras, Platão, Aristóteles, Epicuro, Zenon; homens que, tal como sustentavam muitos erros, assim também descobriam muitas doutrinas verdadeiras e úteis”. Ele se opôs ao controle da verdade pela Igreja, declarando que os que pensavam diferente deviam ser tratados com brandura, segundo II Timóteo.

Isaar descobriu que Hobbes não usaria as escrituras por mera retórica. Devotava, antes, respeito pela Bíblia no capítulo 44 do Leviatã: “Erramos quando não conhecemos as escrituras”. Além disso, pontuou 269 vezes que Cristo era o salvador e ressaltou no capítulo 15 do De Cive que “Deus é rei sobre toda a Terra, pouco importando que os homens o queiram ou não, e não deixará seu trono, ainda que alguém negue a sua existência ou providência”.

O que mais impressionou o teólogo foi que coube a um filósofo “estranho ao reino” lembrar à guardiã das escrituras e de sua interpretação que foi Cristo quem disse, perante o poder civil, “o meu reino não é deste mundo”.

INVESTIGAÇÃO

O objetivo de Isaar era examinar como Hobbes usava a Bíblia para reafirmar a soberania civil, pois ela era o livro por excelência. Aliás, a herança da Reforma sobre o livre exame das escrituras permitia que várias ideologias políticas se alicerçassem em sua leitura.

Richard Tuck, estudioso do filósofo, realçou que a parte 3 (sobre o Estado Cristão) e a 4 (Reino das Trevas) do Leviatã eram as principais da obra (a primeira parte aborda o Homem e a segunda a República ou o Estado) e que o Reino das Trevas era uma metáfora para falar da Igreja. A partir do século IV, o Bispo de Roma (papa) passou a interferir nos assuntos do Estado.

Na Idade Média, pensadores como Marsílio de Pádua, Ockham, João de Paris e Dante já mencionavam os abusos do poder papal e da separação entre Igreja e Estado. Como a Igreja influía nas heranças, casamentos e sucessão dos governos, Hobbes disparou que isso não lhe cabia e que ela ainda cometia grave erro ao punir e matar o cidadão na Inquisição. O filósofo dizia mais: se o próprio Estado tentasse matar o cidadão, este poderia reagir.

Hobbes fundamentou a soberania absoluta em princípios racionais, comentando também que tinha a certeza de que eram “princípios tirados da autoridade das escrituras”. Por isso Isaar deu à tese o título “Enfrentando o inimigo com as suas próprias armas”, pois Hobbes enfrentou a hierarquia eclesiástica com seu próprio livro.

As escrituras eram armas nas mãos da Igreja e qualquer interesse era justificado com a hermenêutica bíblica. Para Hobbes, as escrituras eram as fortificações avançadas do inimigo, de onde este ameaçava o poder civil. A Igreja era o inimigo. Então Isaar entendeu que Hobbes pegaria essas armas e as voltaria contra a Igreja. Como estrategista, o filósofo usou o texto para provar que a soberania civil era uma instituição intocável, mesmo em se tratando da Igreja.

Um aspecto esquecido por pesquisadores de Hobbes é que ele julgava que, nas situações de crises, quando não houvesse mais autoridade e segurança, a piedade faria com que os homens se respeitassem.

O capítulo 14 do Leviatã descreve que “não há nada que seja capaz de reforçar qualquer pacto de paz, a que se tenha anuído, contra as tentações da avareza, da ambição, da concupiscência, ou outro desejo forte, a não ser o medo daquele poder invisível que todos veneram como Deus, e na qualidade de vingador de sua perfídia”. Nesse ponto, ele dá valor à religião como fator de coesão social. Hobbes não negou a fé cristã. Viu que era impossível entender Deus plenamente. “Apesar de o chamarmos de invisível, imortal e eterno, isso é insuficiente para defini-lo. São expressões de culto e veneração, mas não querem dizer que o entendamos exatamente como ele é”, ressalva Isaar.

‘Leviatã’ e a herança bíblica

Leviatã, no livro de Jó, significa monstro marinho ou crocodilo. A metáfora é irônica: “Você poderia levar o Leviatã para a sua casa para brincar com as suas filhinhas? Você poderia içá-lo com o anzol ou tocá-lo com as mãos? Saem tochas da sua boca e fumaça das suas narinas”. Tomás de Aquino fez uma interpretação simbólica desse texto, concluindo que o autor se referia a Satanás. Em Salmos, o Leviatã aparece como um monstro de várias cabeças aterrorizando o homem. Em Isaías, como um monstro veloz e sinuoso, chamado de serpente e dragão. Hobbes tomou a metáfora do livro de Jó: “Foi feito para não ter medo” e “Sobre a terra não tem ele igual”, e a aplicou ao Estado, que paira acima das instituições humanas, incluindo a Igreja. Para ele, acima do Estado vem Deus, e os líderes da religião podiam, quando muito, servir de conselheiros do soberano civil.

No capítulo 44 do Leviatã, Hobbes define o Reino das Trevas, que “nada mais é do que uma confederação de impostores que, para obterem o domínio sobre os homens neste mundo presente, tentam, por meio de escuras e errôneas doutrinas, extinguir neles a luz, quer da natureza, quer do evangelho, e deste modo desprepará-los para a vinda do reino de Deus”.

Isaar se admira ao ver que Hobbes avança contra o poder eclesiástico no capítulo 47 do Leviatã: “não deve haver nenhum poder sobre as consciências dos homens, a não ser da própria palavra, produzindo fé em cada um, nem sempre de acordo com o objetivo daqueles que plantam e regam, mas do próprio Deus que dá a geração”.

O filósofo ainda sinalizou: “o que talvez possa ser tomado como ofensa são certos textos das sagradas escrituras por mim usados com uma finalidade diferente da que geralmente por outros é visada”. Com essa deixa, Isaar idealizou o seu projeto e mandou-o a Franck Lessay, docente da Universidade de Sorbonne, Paris, que o reputou oportuno.

Lessay é autor do livro Hobbes: Heresia e História e traduziu para o francês o texto “Narração histórica sobre a heresia e as formas do seu castigo”. Isaar traduziu o texto original de Hobbes para o português e pretende usá-lo no pós-doutorado. Na Itália, há o livro Thomas Hobbes Scritti Teologici, de Arrigo Pacchi, com cinco textos teológicos do filósofo, os quais também deve empregar no pós-doutorado.

Publicação

Tese: “Enfrentando o inimigo com as suas próprias armas: a presença e a importância das escrituras na argumentação de Thomas Hobbes”
Autor: Isaar Soares de Carvalho
Orientador: João Carlos Kfouri Quartim de Moraes
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)