Edição nº 554

Nesta Edição

1
2
4
5
6
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 18 de março de 2013 a 24 de março de 2013 – ANO 2013 – Nº 554

Mulheres que desbravaram caminhos

Livro reconstitui experiências de sete feministas


Profundas modificações e rupturas culturais ocorreram na sociedade ao longo das últimas quatro décadas sob o impacto das pressões históricas do feminismo. Como reflexo desse fenômeno, as mulheres não apenas têm ocupado lugares antes interditados a elas, como também têm inserido novos valores, ideias e concepções no mundo masculino, influenciando desde a produção científica e a formulação das políticas públicas até as relações corporais, subjetivas, amorosas e sexuais.

Os meios pelos quais as mulheres têm modificado o mundo e se transformado a si mesmas são o objeto de três recentes estudos desenvolvidos no âmbito do programa de pós-graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, amparados em referências teóricas e políticas do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984).

A professora Luzia Margareth Rago investigou a maneira como um grupo de feministas históricas abriu novos espaços na esfera pública e na vida política do Brasil, desde os violentos anos do regime militar, e revolucionou muitas das concepções e maneiras de ser de uma nova geração de mulheres – e de homens também. A pesquisa será publicada em breve no livro A aventura de contar-se: feminismos, narrativas autobiográficas e invenções da subjetividade (Editora da Unicamp).

Ela também orientou dois outros trabalhos. Na tese de doutorado Políticas e poéticas feministas: imagens em movimento sob a ótica de mulheres latino-americanas, Maria Célia Orlato Selem mostra como diretoras utilizam suas produções cinematográficas na América Latina para abordar temáticas de interesse feminista, como tráfico de mulheres, estupro e feminicídio, entre outros. Já na dissertação União de Mulheres de São Paulo: feminismo, violência de gênero e subjetividades, a aluna de mestrado Júlia Glaciela da Silva Oliveira conta a trajetória da associação feminista UMSP e destaca os esforços da entidade para que a violência direcionada às mulheres ganhasse visibilidade na sociedade.


Livro reconstitui experiências de sete feministas

A gênese do livro de Margareth Rago é a pesquisa Espaços autobiográficos e invenções de si nos feminismos brasileiros, apoiada pelo CNPq, em que ela preocupou-se em entender como os feminismos, nas últimas quatro décadas, possibilitaram profundas e positivas mudanças na cultura e na sociedade brasileiras. A partir da observação das experiências da inserção política de sete militantes feministas de esquerda, nascidas entre os anos de 1940 e 1950, no Brasil, e do resgate de suas lembranças, a historiadora analisa os desdobramentos gerados pela irrupção do feminino na cultura brasileira.

A matéria-prima do estudo conduzido por Margareth são as narrativas autobiográficas (ou “escritas de si”) das ex-presas políticas Criméia Schmidt de Almeida e Maria Amélia de Almeida Teles, fundadoras da União de Mulheres de São Paulo; da filósofa e teóloga feminista Ivone Gebara, autora de inúmeros livros e antiga assistente de Dom Helder Câmara, no Recife, por 17 anos; da líder do Movimento Autônomo das Prostitutas e fundadora da grife Daspu, Gabriela Silva Leite; da socióloga feminista e professora da Unicamp Maria Lygia Quartim de Moraes; da antropóloga e historiadora Norma Telles (PUC-SP), autora de inúmeros livros e artigos e da historiadora Tania Navarro Swain (UnB), editora da Revista digital feminista Labrys, Estudos Feministas. Margareth colheu relatos em entrevistas gravadas com as ativistas ou que já haviam sido publicadas em periódicos, reuniu artigos e livros que elas escreveram, além de processos penais, quando existiam.

“Foi impressionante constatar como elas subverteram o conceito de ser mulher no país. Educadas para a virgindade, o casamento monogâmico indissolúvel, a maternidade e os cuidados com a família e para a passividade e o silêncio, abriram caminhos singulares em suas trajetórias pessoais e profissionais, sem contar com referências anteriores”, ressalta a autora, que substituiu o relato historiográfico tradicional pela reconstituição de diferentes experiências individuais.

“Essas mulheres notáveis não apenas se reinventaram; com as suas práticas concretas e com os seus modos de pensar feministas, produziram importantes rupturas, especialmente no que tange às questões da moral, da sexualidade e dos modelos de feminilidade e corporeidade.”

“ESTRANGEIRIDADE”

Conforme aponta Margareth em seu trabalho, cada uma dessas mulheres tem uma relação com a vida e consigo mesma muito diferente umas das outras, embora todas elas registrem uma experiência de incômodo e inadaptação frente aos modelos tradicionais de feminilidade, um sentimento de “estrangeiridade” vivido desde cedo em suas vidas.

“Tiveram, então, de construir novos espaços físicos e subjetivos, sociais e de gênero, e o feminismo foi a grande porta de entrada para seus deslocamentos e reinvenções. Nesse sentido, posso dizer que suas experiências convergem, mantendo, ao mesmo tempo, suas dispersões.”

Assumidamente de esquerda, mas em ruptura com o que se convencionou chamar de “esquerda tradicional”, desconfortáveis com a estrutura político-partidária masculina, elas tiveram participação política na luta contra a ditadura militar vigente no país, entre 1964 e 1985, e continuaram lutando no regime democrático. Algumas foram exiladas, outras, encarceradas. Feministas, denunciaram e continuam denunciando as inúmeras formas da violência sexual, física ou simbólica que aniquilam as possibilidades de inscrição diferenciada das mulheres no mundo público e no privado. Na literatura, na produção acadêmica, na religião, nas lutas que promovem no “movimento feminista organizado” e fora dele, essas libertárias abriram trincheiras de combate ao poder dos homens, dos partidos, do Estado, da Igreja e da ciência, contribuindo com a força de suas manifestações para a construção de um pensamento crítico ao autoritarismo.

“Se uma nova geração de mulheres brasileiras desfruta de uma independência impensável há 40 anos, se hoje temos uma mulher na presidência da República, nada disso ocorreu por acaso. Essas conquistas femininas, que também modificaram o cotidiano dos homens, são frutos da história contemporânea do país, mas esse fato é muito pouco percebido pelas próprias mulheres”, enfatiza a docente da Unicamp.

“A minha estratégia foi resgatar e evidenciar essa história, a partir das experiências individuais de mulheres que empunharam no país as bandeiras da luta pelos direitos reprodutivos, pelos direitos ao próprio corpo e ao controle da própria vida, contra o assédio sexual, contra a violência doméstica, contra o estupro e pela descriminalização do aborto, levando essas questões para a esfera das grandes discussões políticas no Brasil ao longo das últimas quatro décadas.”

LACUNA

Segundo Margareth, ao reconstituir suas memórias, as feministas que, de algum modo, estiveram envolvidas na resistência ao regime militar, acabaram contribuindo não só para reconstruir o próprio passado, mas também para preencher o vazio de narrativas autobiográficas femininas sobre episódios tanto do período da ditadura e da contracultura, como a respeito das profundas transformações sociais, econômicas e culturais no Brasil nas últimas décadas.

De acordo com a pesquisa, após o fim da ditadura militar no Brasil, as memórias, os testemunhos, as autobiografias ou os romances memorialistas que tratam da experiência da militância política em partidos de esquerda e da prisão foram, em sua maior parte, produzidos por militantes do sexo masculino, embora muitas mulheres tivessem tido uma atuação de destaque nos grupos políticos “revolucionários” e na resistência contra a ditadura militar.

Ainda hoje, observa o estudo, são poucas as autobiografias femininas relativas aos chamados “anos de chumbo”, e mesmo as que foram lançadas nas décadas seguintes, em que se fortalece o movimento feminista.


Associação pioneira é tema de pesquisa de mestrado

O estudo de Júlia consistiu no mapeamento da experiência da associação feminista União de Mulheres de São Paulo (UMSP), fundada em 1981, na capital, dedicada à luta pelos direitos femininos, entre os quais a erradicação da violência de gênero. A partir de pesquisa em documentos arquivados pela entidade e por meio de narrativas de militantes, o trabalho discorre sobre as iniciativas do grupo que contribuíram para que a violência direcionada às mulheres ganhasse visibilidade na sociedade nas últimas três décadas.

“Constatei como o tema da violência contra as mulheres deixou de ser algo considerado de fórum privado e foi politizado por meio do movimento feminista a partir dos anos 1980, no Brasil. Se por muito tempo essa situação foi aceita pela sociedade como ‘natural’, hoje, apesar de não ter desaparecido, já não é encarada como algo normal no cotidiano”, afirma a autora.

Conforme ela apurou, a UMSP foi criada por integrantes do PCdoB (Partido Comunista do Brasil), que desde muito jovens construíram um estilo de vida norteado pela militância revolucionária, entre as quais as ativistas Criméia Alice Schmidt de Almeida, Deise Leopoldi, Dinalva Tavares, Maria Amélia de Almeida Teles (Amelinha), Kátia Antunes, Maria de Lourdes Rodrigues (Lurdinha), Rosana Fernandes e Terezinha de Oliveira Gonzaga.

Suas trajetórias foram marcadas por posturas de resistência e enfrentamento aos discursos sexistas que existiam dentro do próprio partido e o contato com o feminismo, nos anos 1970, despertou o desejo de construir outro espaço de atuação onde temas referentes ao feminismo, considerados “burgueses” pelas lideranças masculinas, pudessem ser contemplados.

Desse modo, da mesma forma que lutou pelas liberdades democráticas, a associação também esteve à frente de campanhas pela descriminalização do aborto durante o processo da constituinte de 1988, e acompanhou a implantação, na cidade de São Paulo, da primeira delegacia especializada no atendimento às mulheres vítimas de violência, como decorrência da atenção que passou a dar a novas demandas.

“As militantes se reuniam para discutir o direito à creche ou ao aborto. Aí aparecia alguém com o olho roxo. Pronto: a violência no cotidiano das mulheres vinha à tona nos encontros e não tardou para que a denúncia de assassinatos de mulheres pelos companheiros começasse a ganhar força dentro do movimento”, observa Júlia.

Se, a princípio, os assassinatos de mulheres cometidos por seus pares afetivos e justificados como crimes de motivação passional estavam no centro das denúncias, os anos 1990 assistem a um desdobramento do que estava sendo compreendido como violência contra a mulher.

“É quando crescem substancialmente as denúncias de espancamentos, ameaças, estupros, tráfico de mulheres, prostituição infantil e de assédio sexual nos locais de trabalho. Toda essa gama de violência, que antes ia para debaixo do tapete, ganha visibilidade”, explica a pesquisadora.

De acordo com seu trabalho, há também um aumento significativo das produções teóricas sobre a violência direcionada às mulheres, bem como surgem definições e ramificações conceituais sobre a mesma, ora qualificada como violência doméstica, ora como violência familiar, ou, como mais recentemente, como violência de gênero. As discussões teóricas sobre a violência contra a mulher acabam sendo espelhadas e inseridas no discurso da UMSP e nas propostas de luta na década de 1990.

No enfrentamento da desinformação e do descaso jurídico que colaborava para a banalização das agressões e dos assassinatos de mulheres, a UMSP implantou, em 1994, o projeto de educação jurídica Promotoras Legais Populares (PLP). Realizado em parceria com a ONG feminista gaúcha Themis e baseado na experiência de grupos feministas latino-americanos, o PLP proporciona às mulheres noções básicas de Direito e cidadania, e transformou-se em um importante instrumento de luta ao possibilitar que as mulheres constituam outras formas de pressão política.

“Elas saem transformadas desse processo, fortalecidas em sua autoestima e capazes de encontrar, por si só, outras respostas para as situações que vivenciam”, enfatiza Júlia.

“O convívio, a troca de experiências pessoais e a oportunidade de conhecer as construções históricas e culturais acerca do feminismo lhes permitem lançar novos olhares sobre si mesmas e traçar novos caminhos para suas vidas.”


A poesia e a militância de cineastas da AL

Uma câmera na mão e o feminismo na cabeça? O ponto de partida da pesquisa de Maria Célia foram algumas de suas inquietações acerca da atual produção cinematográfica feminina latino-americana: após três décadas de feminismo organizado na América Latina, seria possível identificar políticas comuns em filmes dirigidos por mulheres latino-americanas de diferentes países neste início de século? Seria possível falar de um olhar feminino por detrás das câmeras? Em busca de respostas, selecionou e analisou doze películas produzidas entre 2001 e 2010, além de alguns festivais de cinema feminino na década de 1980 e na atualidade, identificados como espaços de construção da crítica feminista de cinema latino-americana.

Seu estudou abordou os filmes La teta asustada, de Claudia Llosa (Peru – 2009); Que tan lejos, de Tania Hermida (Equador – 2006); Rompecabezas, de Natalia Smirnoff (Argentina, 2009); Entre nós, de Paola Mendoza e Gloria La Morte (Colômbia, 2009); Sonhos Roubados, de Sandra Werneck (Brasil, 2009); En la puta vida, de Beatriz Flores Silva (Uruguai, 2001); A falta que me faz, de Marília Rocha (Brasil, 2009), Senhorita extraviada, de Lourdes Portillo (México, 2001), Tambores de água, un encuentro ancestral, de Clarissa Duque (Venezuela, 2009), Memória de un escrito perdido, de Cristina Raschia (Argentina, 2010), e Maria em tierra de nadie, de Marcela Zamora (El Salvador, 2010).

Segundo Maria Célia, a escolha dessas películas justifica-se pelo fato de serem roteirizadas e dirigidas por mulheres latino-americanas na primeira década deste século e por abordarem subjetividades femininas em diferentes contextos. Não se ateve a produções exclusivamente latino-americanas, uma vez que vários dos filmes são coproduções com outros países não pertencentes à América do Sul e América Central, e reuniu tanto obras ficcionais e documentais, algumas comerciais e outras mais alternativas.

“O que procurei ressaltar foi a nacionalidade somada às vivências das diretoras em contextos latino-americanos, que direcionam seu olhar para o sul, conferindo a seus trabalhos marcas perpassadas pela colonialidade e pelo feminismo”, observa a historiadora.

Em filmes como Entre nós, En la puta vida e no documentário Señorita extraviada, questões como o estupro, o tráfico de mulheres e o feminicídio aparecem como pano de fundo ou como o próprio cerne de suas narrativas, em conexão com as pautas que tem norteado as lutas feministas na América Latina. La teta asustada (vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2009) desvela o estupro de mulheres indígenas durante o conflito armado no Peru; Memória de un escrito perdido retrata em sua poética as minúcias da memória e da subjetividade de mulheres presas e torturadas durante a ditadura militar argentina; Tambores de água, un encuentro ancestral visibiliza a resistência de mulheres de comunidades afro-venezuelanas por meio do cuidado com a memória ancestral; e Rompecabezas aposta nas minúcias desprezadas no cotidiano doméstico para abordar as possíveis reinvenções femininas como práticas de liberdade.

Com a finalidade de pensar uma possível política feminista comum no campo do cinema, Maria Célia realizou também sucinta análise de quatro atuais festivais de cinema de mulheres (Festival Internacional de Cinema Feminino – Femina, no Brasil; Mujeres en Foco- Festíval internacíonal de cine por la equídad de género, na Argentina; Festival Cine de Mujeres, no Chile; e Mostra Mujeres en el Cine y la Televisión, no México) e ainda um breve histórico de três festivais ocorridos nos anos 1980: o argentino La Mujer y el Cine, o brasileiro I Video Mulher e o mexicano Cocina de imágenes : primera muestra de cine y video realizados por mujeres Latinas y Caribeñas.

“Minha intenção, ao realizar esse diálogo entre os citados eventos, foi perceber as possíveis aproximações e distanciamentos entre eles, suas transformações e relações com o discurso feminista latino-americano ao fomentarem e respaldarem a construção discursiva de um cinema de mulheres”, explica.

De algum modo, os filmes foram percebidos como atravessados pelas consequências do capitalismo e do patriarcado, embora de maneiras diversas, avalia. Desses trabalhos, emergiram temas ligados aos processos migratórios, violência de Estado, feminicídio, desigualdade social, entre outros tantos, que também são objetos de interesse dos feminismos, em suas possibilidades de resistência. Em relação aos festivais, foi possível constatar que, embora guardem alguns aspectos comuns, no que diz respeito à visibilidade das mulheres no cinema, acontecem, por vezes, de forma desconectada das pautas feministas locais e da crítica ao sistema político-econômico que tem norteado o feminismo latino-americano.

Publicações

Livro: “A aventura de contar-se: feminismos, narrativas autobiográficas e invenções da subjetividade” (no prelo, Editora da Unicamp) | Autora: Margareth Rago
Tese: “Políticas e poéticas feministas: imagens em movimento sob a ótica de mulheres latino-americanas”
Autora: Maria Célia Orlato Selem
Orientadora: Margareth Rago
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)

Dissertação: “União de Mulheres de São Paulo: feminismo, violência de gênero e subjetividades”
Autora: Júlia Glaciela da Silva Oliveira
Orientadora: Margareth Rago
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)