Edição nº 550

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 17 de dezembro de 2012 a 31 de dezembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 550

O intelectual 'feiticeiro' sai enfim do limbo


Escritor, historiador, etnógrafo, jornalista e folclorista, o baiano Édison de Souza Carneiro (1912-1972) dedicou-se aos estudos sobre o negro brasileiro e tornou-se uma das maiores autoridades nacionais sobre cultos afro-brasileiros. Mas a trajetória desse intelectual, a despeito do relevante papel que desempenhou na história das ciências sociais no Brasil, sobretudo na história dos estudos das relações raciais, ainda não havia recebido atenção condizente com a importância de seu trabalho e de seu legado. A tese de doutorado O intelectual “feiticeiro”: Édison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil tem o mérito de realizar pela primeira vez um resgate de fôlego da vida e obra desse personagem um tanto oculto na história. A tarefa coube ao antropólogo social Gustavo Rossi, orientado pela professora Heloisa André Pontes, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. O esforço na elaboração da aprofundada pesquisa e suas contribuições à compreensão do processo de gênese e formação do campo de estudos das relações raciais no Brasil valeram ao trabalho de Rossi o econhecimento da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) de melhor tese de doutorado nas áreas de Antropologia e Arqueologia defendida em 2011. O prêmio, entregue no último dia 13, também valorizou o trabalho realizado no âmbito do programa de pós-graduação em Antropologia Social do IFCH.

Ao investigar a trajetória social e intelectual de Carneiro, Rossi evitou produzir somente uma biografia convencional ou uma interpretação da totalidade da obra do autor. O seu acurado olhar analítico direcionou-se aos aspectos da prática e da produção intelectuais que dão conta do envolvimento do etnógrafo com o campo de estudos ao qual ele esteve mais sensivelmente ligado (o de estudos das relações raciais e das culturas de origem africana na sociedade brasileira) e que permitiram sua inserção no debate sobre a “questão negra” brasileira.
“Diferente de certos intelectuais, escritores, ou artistas que, graças aos efeitos de consagração, poderíamos invocar pela simples relevância autoevidente que seus nomes despertam, o caso de Édison Carneiro se encontra no âmbito daqueles em que não se dispensam as apresentações”, observa Rossi. “Ele não se consagrou como um acadêmico ou professor universitário, no entanto tornou-se um personagem cuja vida e obra mereciam ser estudadas de maneira mais densa, até para permitir enxergar o que elas nos expressam tanto em termos de sociedade e vida intelectual brasileiras quanto em termos de gestação e constituição do campo de estudos das relações raciais no país a partir da década de 1930.”

FOGO NA ESTRADA
Nessa empreitada, foi necessário um minucioso garimpo de informações biográficas praticamente a partir do zero, já que aspectos básicos da trajetória do folclorista eram desconhecidos. De acordo com Rossi, talvez por falta de tempo, interesse ou até pela forma abrupta como adoeceu e morreu (vítima de uma trombose cerebral), no Rio de Janeiro, Carneiro praticamente não deixou páginas, artigos, volumes ou manuscritos de memórias, onde refletisse sobre sua história de vida ou suas práticas intelectuais. Outra hipótese que explicaria a inexistência de eventuais escritos autobiográficos de Carneiro é a de que eles tenham sido perdidos ou, literalmente, “queimados”, conforme informou seu filho, Philon. Segundo ele, um volume considerável da papelada do pai foi queimado acidentalmente, logo após a morte do intelectual, quando a então recente viúva Magdalena Carneiro resolveu se transferir do Rio de Janeiro para Salvador. Na ocasião, o caminhão de mudanças tombou na estrada e pegou fogo. Portanto, em teoria, tudo o que sobrou do acervo pessoal de Carneiro estaria disperso pelos arquivos de algumas instituições (no Rio de Janeiro, Museu do Folclore Édison Carneiro, Biblioteca Nacional e Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro; em Salvador, Fundação Clemente Mariani, Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, Fundação Casa de Jorge Amado, Biblioteca Pública do Estado da Bahia e Arquivo Público do Estado da Bahia) e até em mãos de amigos e parentes, como chegou a constatar Rossi ao longo dos quatro anos investidos na pesquisa. Os três capítulos que compõem a tese são, na definição do próprio autor, ensaios que podem ser lidos separadamente, cada um abordando eixos distintos da vida do personagem pesquisado, e, em seu conjunto, acabam por compor uma espécie de mosaico analítico de sua carreira. No primeiro, há uma recuperação da trajetória social e familiar de Carneiro na Bahia, com a finalidade de ajudar a entender como ele e a família, a partir de suas origens, retraduziam suas identidades étnicas na estrutura social da Salvador dos anos 1920 e 1930.

O segundo trata das primeiras experiências intelectuais do biografado, abordando sua tentativa de se tornar um literato, a sua participação no grupo literário Academia dos Rebeldes (cujo líder era o jornalista Pinheiro Viegas e que contava também com a participação do escritor Jorge Amado), o engajamento no Partido Comunista e o despertar de seu interesse pelos cultos afro-brasileiros. No terceiro, o autor revela como o biografado começa a abandonar suas pretensões literárias para investir na carreira jornalística, escrevendo sobre ritos e festas dos candomblés baianos para diferentes periódicos, tornando-se um dos maiores defensores da liberdade da prática dessas atividades. A síntese desses três painéis sobre a vida de Carneiro revela um percurso social e intelectual caracterizado por relativo isolamento. Segundo apurou Gustavo Rossi, Carneiro vivera ainda muito jovem, em Salvador, sua cidade natal, uma de suas primeiras frustrações intelectuais, ao ver minguar, na virada das décadas de 1920 e 1930, suas chances de se firmar como literato, não concretizando as fantasias de consagração e reconhecimento
autorais que, imaginava, iriam livrá-lo da incômoda condição de “escritor de subúrbio”.


TURBULÊNCIAS
Com relação ao campo dos estudos afrobrasileiros dos anos de 1930, a inserção de Carneiro não foi menos turbulenta, revela a premiada pesquisa: conviveu com pretensões frustradas de estágio de estudos e especialização no exterior e relações muitas vezes tensas com os então “donos dos assuntos” afro-brasileiros, Arthur Ramos (1903-1949) e Gilberto Freyre (1900-1987). Acrescente-se, ainda, de acordo com Rossi, os recorrentes períodos de penúria financeira; as dificuldades de reconhecimento como folclorista frente a uma ciência social emergente nas
décadas de 1940 e 1950; o desinteresse das instituições acadêmicas e de incentivo a pesquisas científicas, que fecharam suas portas às suas ambições e aos seus projetos como pesquisador da cultura afro-brasileira e do folclore nacional; as tentativas malsucedidas de ingresso como professor no magistério superior e, por fim, uma militância comunista que lhe rendeu prisões, perseguições e cassações de postos.


“Não se pode desprezar ainda o fato de Édison Carneiro ter sido um ‘não branco’ que, a despeito de sua intensa dedicação ao estudo da população negro-africana no Brasil, atuando politicamente em prol da liberdade de suas manifestações culturais e religiosas, vivenciou a partir de um dado momento uma relação rasgada de tensões e cisões com o próprio movimento negro brasileiro, que produziram um distanciamento simbólico significativo dele, mesmo depois de morto, para com os projetos, os destinos, as conquistas e, neste sentido, as memórias do movimento negro”, pondera Rossi. “Resta dizer também que havia sempre a possibilidade concreta de, em muitos dos episódios em que se envolveu, a ‘raça’ de Édison ter funcionado como fator de exclusão, preterimentos ou interdições veladas às posições e aos postos por ele pleiteados”, enfatiza o autor.

Para Rossi, a vida de Carneiro expressa com vigor dilemas e transformações que acometeram não apenas o campo de estudos das relações raciais, mas também as ciências sociais brasileiras como um todo, cujo processo de institucionalização destravou, a partir da década de 1930, o rompimento com um modelo de intelectual que o biografado encarnava muito bem: o polígrafo, autodidata. Sua atuação e suas metamorfoses na evolução do debate racial nacional urdiram uma experiência, senão exemplar, certamente expressiva do processo de gênese e formação
deste campo de estudos, enfatiza o antropólogo. De outra parte, nelas também se revelam os estágios de “transição” das ciências sociais em que começaram a se desenvolver os rituais de instituição e segregação de linguagens, estilos de abordagem e padrões de cientificidade, buscando-se, assim, suplantar o ensaísmo e as diversas formas de heteronomias na interpretação da vida social, aponta o autor. “Os dilemas de Édison Carneiro revelam esse processo pelo inverso, uma vez que ele passou a personificar o modelo de intelectual que as ciências sociais modernas buscaram justamente combater e expelir como cientificamente autorizados a falar sobre o social”, salienta Gustavo Rossi em sua tese. Sinal eloquente nesse sentido foram as indefinições classificatórias que resvalaram na carreira intelectual de Carneiro: escritor, historiador, etnógrafo, jornalista, folclorista. Ele foi todas elas, sem conseguir ser nenhuma delas por inteiro.

 

Publicação

Tese: “O intelectual “feiticeiro”: Édison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil”
Autor: Gustavo Rossi
Orientadora: Heloisa André Pontes
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)